Em memória de Berta e das centenas de lutadores mortos.
Honduras foi um território estratégico da contrarrevolução e os EUA nos anos 1960 aos 1990, período de revoluções em Cuba e Nicarágua, da luta camponesa na Guatemala e do processo revolucionário em El Salvador.
Os EUA instalaram duas bases militares e despejaram armamentos, dinheiro e o país virou um centro da contrarrevolução da América Central. Falta de projeto nacional, repressão, fluxos migratórios para os EUA, etc., foram agudizando a situação crítica. O poder de setores oligarcas e das grandes empresas transnacionais aprofundou o quadro.
Na virada para o século XXI as contradições internas eram explosivas. Uma massa empobrecida, setores médios em crise e o bloco da oligarquia aprofundando sua condição e poder. O controle submetido pelos EUA nos anos dos processos revolucionários na região havia mudado de qualidade.
As lutas camponesas, de povos originários garifunas, indígenas, movimento de mulheres, sindical, cultural e especialmente da juventude e professores/as ocupavam as ruas e pressionava por mudanças.
Uma fissura no Partido Liberal permite uma candidatura de uma liderança com apoio popular: Manuel Zelaya, em 2006, que disputou com Porfirio Lobo, do Partido Nacional. O centro do debate era segurança (tráfico e as gangues juvenis, chamadas de "maras") e o desemprego. A eleição foi pareada e ele venceu por uma diferença pequena.
Zelaya havia atuado para dinamizar sistemas de participação política e também gerido um fundo estatal para investimento social. Era um produtor rural rico, mas que havia conhecido profundamente as mazelas do povo nos anos 1990.
Seu governo em 2007 já se posicionava criticamente aos EUA, chegando a defender que deveria liberar as drogas para conter o tráfico e a violência no seu país. Combateu o bloco midiático reacionário e seguia buscando enfrentar os graves problemas nacionais. Elevou o piso salarial nacional, buscou criar políticas de moradia, educação gratuita etc. um governo com um claro direcionamento social.
Mas duas coisas mudaram a rota ou aceleraram o processo. A crise econômica de 2008 e o principal: Honduras adere formalmente ao bloco da Alba [Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América], liderado por Chávez e Fidel. Estabelece acordos para levar médicos cubanos, compra de petróleo subsidiado, obtenção de empréstimos, acordos educacionais para milhares de hondurenhos pobres estudarem em Cuba e Venezuela. E aumentou o tom contra os EUA, que seguia tratando Honduras como uma área de domínio político, ideológico, econômico e militar.
As reformas realizadas na Venezuela e Equador, com o novo constitucionalismo – reformas nas constituições pra superar os limites e a situação em geral – influenciou fortemente o governo já claramente ligado ao bloco anti-imperialista e de resistência aos EUA.
2009 seria o ano das eleições gerais hondurenhas, em novembro. Zelaya não poderia disputar, mas encampou uma batalha central: organizar um debate nacional sobre os desafios do povo hondurenho, que seria realizado na discussão da nova constituição. Mas o caminho seria longo. Em março anunciou que faria uma consulta popular em junho daquele ano para saber a opinião do povo. A pergunta submetida ao povo era: "Você está de acordo que, nas eleições gerais de novembro de 2009, se instale uma quarta urna para decidir sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte que aprove uma nova Constituição política?"
A consulta seria feita no sábado, 28 de junho. Se a resposta fosse majoritamente "sim", haveria uma quarta questão na votação de novembro e seria se a população seria favorável à convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para construir uma nova constituição.
As semanas que antecederam o dia da consulta foram de muita tensão. De um lado, uma forte base de apoio sustentada pela Coordenação Nacional de Resistência Popular, nascida meses antes e conformando como um centro político unitário e dirigido para lutas e mobilizações. E do outro lado, uma pressão grande da embaixada dos EUA, os grandes meios de comunicação e os setores da oligarquia acusando Zelaya de bolchevismo, comunismo etc. e o Exército dando sinais de adesão ao golpismo.
O semestre foi intenso de disputa, culminando com um gesto simbólico um dia antes da data da consulta: o Exército seria o responsável por distribuir as urnas e estruturar o processo de votação no dia 28 de junho. Na sexta, 27, o comandante declara que não cumprirá a ordem. Zelaya sai do palácio a pé, ladeado de lideranças populares e de uma massa de apoiadores, e vai até o comando do Exército. Ao chegar, um soldado raso impede a entrada do presidente, que força e é repelido com uma arma apontada para seu peito. Ali já havia uma evidência de que as Forças Armadas não estavam apoiando a consulta ao povo, mas já haviam definido barrá-la.
Zelaya não desistiu e mobilizou setores das Forças Armadas para garantir a votação na manhã seguinte. A noite foi tensa e, antes do amanhecer, o presidente e sua família são sequestrados, levados para o aeroporto e obrigados a embarcar num voo secreto para a Costa Rica. A situação também havia sido acompanhada de uma ofensiva jurídica e, no dia 26 de junho, havia sido decretada a sua prisão pela Corte Suprema de Justiça.
Após o embarque dele, esposa e filha, militares forjaram uma renúncia, logo desmentida. Mas isso não os impediu de declararem que o presidente teria fugido e de empossarem uma liderança da direita e golpista.
Isso ocorreu na manhã de sábado. Mal Zelaya e a família haviam chegado do voo do sequestro e expulsão ilegal, a Coordenação Nacional de Resistência Popular já havia convocado o povo para um grande ato ainda naquele dia. Esse foi o primeiro de uma longa jornada de lutas: foram 160 dias com atos diários de segunda a sábado em Tegucigalpa, San Pedro Sula e em outras cidades. As lutas decorrentes do golpe exigiram uma mudança na unidade do povo: nascia a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), centro político de organização da luta contra o golpe.
Os atos foram acompanhados de greves estudantis e de professores, sindicatos organizaram paralisações e greves, movimentos populares de camponeses, mulheres, garifunas, jovens dinamizavam e davam o tom nos bairros populares, pequenas cidades e em marchas gigantescas pelo país.
Os EUA e seu embaixador sinalizavam apoio discreto ao golpismo, fatos que eram negados, mas que foram confirmados anos depois pelos vazamentos do WikiLeaks sobre o papel da Hillary Clinton e do embaixador na busca por articular o apoio dos países da região ao novo governo golpista.
O povo na rua e denunciando o golpe foi acompanhado de uma forte repressão. Foram centenas de mortos. Jovens, estudantes, sindicalistas e especialmente camponeses, executados em uma onda de repressão intensa.
O golpismo buscou saídas legais, realizou eleições e, para não ser derrotado, impediu candidaturas da Resistência Popular e fraudou a votação descaradamente.
Elegeu, em janeiro de 2009, o Porfirio Lobo, derrotado por Zelaya em 2006, e na eleição seguinte, de 2013, elegeu Juan Orlando, que governou até 2022. O uso da repressão intensa, a perseguição judicial aos opositores, a fraude nas duas eleições, o apoio da oligarquia e das grandes empresas, sem falar no apoio dos EUA, sustentaram o golpe por longos anos. Todos os indicadores pioraram: fome, extrema pobreza, desemprego, analfabetismo, violência, com destaque para o lugar de país mais perigoso do mundo em 2010 e por vários anos na lista dos cinco mais violentos, com o crescimento das gangues (maras), do narcotráfico (que usa Honduras para chegar aos EUA), a formação de grupos paramilitares financiados por empresários para perseguir e matar, como fizeram com centenas de lideranças e com Berta Caceres.
O golpe lançou Honduras no abismo, o povo pagou um alto preço e as oligarquias golpistas seguem impunes.
A resistência popular em Honduras foi grandiosa. Pessoas simples, grande parte com dificuldades para a sobrevivência básica, sem acesso a estudo e ao mínimo, caminhavam horas e horas, realizavam marchas longas, vigílias, ocupações. Uma resistência que mostrou a tenacidade de um povo simples e decidido a resistir e construir um caminho para mudanças profundas e urgentes.
A eleição de Xiomara Castro em 2021 foi um sopro de esperança. Mas mais do que isso, foi o resultado dessa longa jornada de lutas e resistência. Nesses 15 anos, é preciso lembrar essa história como parte de uma longa luta dos povos pela sua libertação. E que deu exemplos fortes de disposição e luta. Uma canção era entoada nos atos e nas ruas naqueles dias intensos e a canção anunciava: nos tienen miedo porque no tenemos miedo.
* Ronaldo Pagotto é advogado e integra o Projeto Brasil Popular.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato,
Edição: Nicolau Soares