No ano em que o golpe de Estado em Honduras completa dez anos, o país centro-americano vive uma série de protestos com repressão intensa por parte do atual governo, comandado por Juan Orlando Hernández (Partido Nacional), contra os manifestantes.
Embora a instabilidade social e política no país não seja recente, os conflitos sociais têm se aprofundado após o governo anunciar reformas na saúde e na educação por pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Este foi o estopim para as mobilizações, iniciadas por estudantes, médicos e outros trabalhadores das duas áreas há mais de um mês. Segundo eles, o decreto de Hernández abre caminho para a privatização dos dois sistemas e significaria a demissão em massa de trabalhadores, em um país com altos índices de desemprego.
Entre as reivindicações apresentadas pelos manifestantes estão a derrogação do decreto das reformas, o pedido de um diálogo nacional e a renúncia do presidente. Durante um dos protestos, realizado na última segunda-feira (24), a polícia invadiu a Universidade Nacional Autónoma, em Tegucigalpa, capital do país, e reprimiu os manifestantes utilizando balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Wendy Cruz, representante da Via Campesina de Honduras, comenta que esta crise atual se agrava em um contexto de fragilização da democracia, que começou com o golpe que destituiu o presidente eleito Manuel Zelaya, em 2009, e levou o Partido Nacional ao poder, seguido de duas eleições consideradas fraudulentas.
A última delas, realizada em 2017, quando Juan Orlando Hernández foi reeleito, é questionada até hoje pela população do país e por observadores e organismos internacionais, como a Organização de Estados Americanos (OEA).
Ainda segundo a militante, que veio ao Brasil participar de um seminário sobre resistência e alternativas feministas no enfrentamento ao neoliberalismo, são as empresas transnacionais, em articulação com os poderes locais, que controlam a política do país, enquanto a população enfrenta graves problemas sociais, já que quase 70% dos hondurenhos vive na pobreza.
Ela comenta que a pobreza extrema, mais as altas taxas de feminicídios e violência contra a mulher, tem levado ao aumento da migração forçada no país. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), as principais vítimas são crianças, mulheres e pessoas LGBTs.
A seguir, a entrevista completa:
Brasil de Fato: Honduras vive uma intensa jornada de protestos contra o governo, que tem respondido com repressão. Quais são os motivos desta mobilização?
Wendy Cruz: Os protestos em Honduras atualmente são uma luta pelo direito à saúde e à educação. São mais de dois meses nessa batalha, porque o governo promoveu um decreto que privatizava a saúde e a educação e que causaria, sobretudo, demissões massivas nessas áreas. Por isso, foi formada uma plataforma pelo direito à saúde e educação, que está sendo apoiada pelo povo hondurenho. Os protestos ocorrem devido ao fato de o governo não atender à demanda dos integrantes da plataforma e não dialogar sobre as mudanças estruturais nesses setores e por ter instalado um diálogo com setores pró-governo, um diálogo que os movimentos sociais consideram mentiroso, que não vai oferecer nenhuma resposta ao que o povo hondurenho está demandando.
Atualmente, existe um diálogo alternativo dessas duas áreas e essa plataforma está formada por diversos setores. A partir dos movimentos populares, temos a posição de apoiar o diálogo alternativo que está sendo conduzido pela plataforma.
É uma luta permanente devido à falta de institucionalidade, o colapso do governo neoliberal, mas estamos muito preocupados com o apoio dos EUA ao governo interino, que afirmaram que enviarão um maior número de militares estadunidenses para o país.
Qual é o atual cenário político em Honduras e qual a importância dos movimentos populares neste contexto?
Honduras tem uma democracia totalmente debilitada, frágil, que está vinculada às elites transnacionais e nacionais. Isso impõe a fragilidade institucional que temos, que não deixou nada para o povo, muito pelo contrário, deixou uma sociedade totalmente quebrada econômica, social e culturalmente. Nós, em Honduras, levamos mais de dez anos de golpe de Estado, porque o golpe de Estado não foi só em 2009, continuamos vivendo em uma ditadura. Estamos vivendo uma instabilidade política no país devido à cooptação da democracia e do Estado, os grupos de poder ocuparam-o e e não atendem às necessidades da população. Estamos vivendo processos de pobreza extrema, 67% da população vive na pobreza, mais de 40% na extrema pobreza. Isso significa que há um clima de desesperança.
Portanto, é urgente descobrir que tipo de democracia queremos apostar enquanto povo, porque vivemos uma falácia em que os processos eleitorais não resolveram nada. Então seguir jogando as mesmas regras da "democracia" do imperialismo, das transnacionais, porque o que querem é ter controle dos bens que temos na América Latina. Paradoxalmente, somos um continente cheio de riquezas em bens naturais e são tão pobres e miseráveis nossas populações. Em Honduras, queremos uma democracia nas mãos dos povos, mas também com a perspectiva de direitos para as mulheres.
Você falou da perspectiva de direitos para as mulheres. Quais são os desafios que as mulheres camponesas enfrentam hoje no país?
As mulheres rurais têm um papel de resistência em uma luta titânica contra o modelo extrativista. Hoje cerca de 80% do território em Honduras está nas mãos das transnacionais, para instalar hidrelétricas, mineradoras, para os monocultivos. Isto gera muita violência e migração forçada. Nos últimos dez anos, mais de 4500 mulheres foram assassinadas, e mais de 90% dessas mortes estão impunes.
E nós contribuímos para a luta, somos ativas, passamos muitas horas trabalhando, mas nosso trabalho ainda é pouco reconhecido. Nosso papel de resistência nos movimentos populares é importante, mas precisamos também transformar essas relações de poder desiguais internamente, propor a igualdade entre homens e mulheres para uma democracia efetiva. Nosso desafio é construir um novo pensamento político que coloque a vida no centro, sobretudo, que defenda os direitos das mulheres como um ponto fundamental na defesa da humanidade.
O assassinato de Berta Cáceres, líder comunitária assassinada em 2016 por defender terras indígenas num crime articulado entre militares e funcionários de transnacional da energia, é emblemático da situação política de Honduras, do aumento da violência e perseguição de líderes sociais. Qual o legado da militante para os movimentos do país?
O assassinato de Berta Cáceres foi um caso que expôs as pessoas de poder do país. O processo condenou somente aos executores do crime, mas temos uma justiça muito fragilizada. A família de Berta e os movimentos camponeses e populares pedem que os mentores de seu crime, vinculados ao poder nacional e internacional, também sejam condenados pelo assassinato.
Sem dúvida é uma luta gigantesca porque aqui em Honduras não temos separação de poderes e o Judiciário está comandando pela elite. Isso prejudica a cidadania em geral, porque não temos confiança na justiça, que está sendo cooptada junto com os outros poderes. Mas diversos setores da sociedade se somaram às mobilizações de justiça por Berta. Sem dúvida, Berta atravessa nossas lutas e transcendeu sua luta e lembramos sempre sua frase, "despertemos, despertemos, já não temos tempo". Isto é, já não temos tempo, é urgente defender a terra, essa é a semente que deixou para os povos e movimentos internacionalmente. E Berta nos dá esperança para seguir exigindo justiça aos quatro ventos, apesar de saber que estamos num contexto de Estado fragilizado, invisível, mas o tempo certo chegará e terão que fazer justiça, porque a justiça não vem dos grupos de poder, mas da luta que façamos.
Para você, qual a importância de traçar alianças com movimentos de outros países, sobretudo das Américas, Ásia e África?
Eu venho da Via Campesina e temos como um elemento prioritário a unidade. Não podemos lutar de forma desunida, a unidade e a resistência devem ser coletivas, com camponeses, feministas, estudantes. Hoje eu acredito que é irresponsável ser militante e ter uma visão individualista, não entender a luta coletiva. Hoje [no seminário], eu mencionava que nós, mulheres rurais, não vamos avançar nos nossos direitos à terra se a sociedade em geral não lutar para defender os bens comuns e a natureza, porque esta é uma questão de toda a sociedade, não de setores específicos. Devemos traçar alianças e trabalhar naquilo que nos une para resistir contra o capitalismo e o neoliberalismo.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira