Nas duas últimas décadas cresceu a crítica sobre a “forma de minerar” no país. Os que pensam criticamente o setor vão formando um campo popular decorrente das afetações do modelo mineral, entre outras questões da sua origem, e estimulam o debate de que nós não somos “um país minerador”, mas “minerado”. Isso porque os efeitos geofísicos das minas e das diversas formas de minerar ficam aqui, mas o dinheiro, quase todo, vai embora.
Essa lógica perversa se torna evidente pelo modo de agir incontrolável da indústria da mineração de contínuo fator na demanda emergencial – do desenvolvimento e progresso do capital – que lhe escapou sem ordem de chegada para um sem-fim de conflitos, mensuráveis na economia nacional e nos muitos enclaves e embaraços institucionais à luz de outras demandas da sociedade brasileira.
Estamos submetidos à rotina abrupta do ato de minerar que não tem paralelos na nossa história recente. Uma indústria que não tem a quem dar satisfação, pois age sobre destroços, na rolagem do capital, numa absorção sempre de fora para dentro e em manuseio empresarial sem concorrência.
Não fosse o desconforto dos rompimentos de barragens entre os anos 2015 e 2020, a sua avalanche de violações ainda lhe permitiria se notabilizar como mera e compensável questão ambiental pelas corporações mediáticas e nos vários e ostensivos encontros do setor, das suas revistas ideológicas, assim como pelas inúmeras associações e entidades de classes do seu interesse.
No entanto, seja pelos seus efeitos práticos em zonas moderadas, como é a mineração no Nordeste brasileiro, ou em zonas de acumulação intensiva, como é o Programa Grande Carajás (PGC), ou zonas de colapso, como é o sistema sul, Minas, Rio e Espirito Santo, assim como inúmeros estudos sobre o setor, já é possível traduzi-lo como “problema” com origem no passado mais até há pouco indecifrável no presente.
Não tem sido tarefa fácil, por assim dizer, entender a deturpação que provoca nas diversas escalas da vida social onde o imperativo se estabelece. É a chamada minerodependência. No caso do Nordeste, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) torna-se o principal financiador para empresas de médio e pequeno porte, com maior parte do recurso oriundo da Vale.SA. Querem dinamizar a mineração na região, apoiando cerca de 1.800 empresas na atividade de minerais estratégicos, o que lhe põem em expansão, ou de consolidação como sistema integrado.
Metamorfose destruidora
Se há um ramo da economia política que mais se metamorfoseou, se transformou de fora para dentro e dentro para fora, foi a economia extrativista da mineração no Brasil.
A começar pela privatização do modelo mineral em 6 de maio de 1997, antecedida, dois anos antes, em 1995, pela Proposta de Emenda Constitucional PEC 5/1995 que altera o direito de pesquisa e lavra no Brasil para a atração de investimentos transnacionais. Era o fim do modelo mineral protagonizado por empresa pública, organizado desde 1942 com a criação da Companhia Vale do Rio Doce-CVRD.
Neste interlúdio está a sanção da lei complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, que “dispõe sobre o imposto dos estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências”.
Publicamente conhecida como Lei Kandir, ou "plano FHC de modernização da economia nacional", estimula justamente o contrário.Os princípios da industrialização são trocados pelos da reprimarização, na crença de que os bens da natureza brasileira são competitivos no mercado internacional.
Como economista, o paulista formado pela Unicamp Antônio Kandirian Gomm – daí o nome "Lei Kandir" – já havia participado da equipe da ministra da economia Zélia Cardoso de Mello, quando ajudou a criar o plano Collor em 1990. Ao regulamentar na emenda constitucional de 1995, a lei de sua autoria como deputado federal, antes de vir a ser ministro do Planejamento no mesmo ano, alterou o regulamento do ICMS, desonerando a exportação de produtos primários. Em outras palavras, as chamadas commodities deixaram de pagar impostos para sair do país
Em compensação, as mudanças da Lei Kandir, explodiram a oneração nas operações internas através da instituição do cálculo "por dentro", em que a própria alíquota do imposto passou a integrar a base de cálculo.
Tudo para gerar suerávit primário
O milagre econômico da ditadura civil-militar, que vai de 1964 até 1985, deixou como herança a “hiperinflação”. É aí que está parte importante da explicação para as origens dessa fase incontrolável da mineração no Brasil em sentido amplo.
Antes da Lei Kandir, vivemos uma sucessão de medidas econômicas que pretendiam corrigir o espectro inflacionário herdado da ditadura. Assim reverberam o congelamento das contas dos brasileiros em 1990, e, posteriormente, entre as moedas desvalorizadas, sem poder de compra e de investimentos, o “Plano Cruzeiro” e o “Plano Cruzado”.
Até chegarmos à Unidade real de valor (URV), que se transformaria no Plano Real de 1994. A base da criação de valor para a nova moeda foram empréstimos ao Fundo Monetário Internacional (FMI), além da vinculação à moeda estrangeira, o dólar. As bolsas de valores ganham protagonismo na nova política econômica, e ganham com a taxa de juros que está entre as mais elevadas do mundo.
Por fim, o controle da inflação torna-se dependente do equilíbrio da balança comercial (entre o que o país importa e o que exporta). Em outra nomenclatura, a geração de superávit primário, usado para pagar os juros da dívida pública, passa a ser vista como mecanismo fundamental para atração de novos investimentos.
Entramos nessa política econômica e nunca mais saímos dela. A noção de que o modelo de desenvolvimento depende de vender mais do que comprar do exterior. E por vender mais, leia-se, produtos primários, sem industrialização prévia.
No documento do Banco Mundial “Fazendo e desfazendo a Lei Kandir”, fica claro que havia outras opções ao seu lugar. No entanto, ela é a opção mais cômoda porque o conflito fica para dentro, e não para fora (não desagrada ao capital internacional, muito pelo contrário). Resultado: perda de receita aos entes federados de um valor que já beira R$ 500 bilhões só pela exportação de commodities minerais, desde que a lei entrou em vigor.
Lei Kandir e o pacote da destruição
Majora-se a ela o equilíbrio da balança comercial. No entanto, vista por outro ângulo, desencadeou perda de natureza e distorções na economia, na organização do mundo do trabalho e na concepção de desenvolvimento econômico, impondo legislações regressivas ao ambiente, limites de controle público e disfunções na distribuição da renda mineral.
Na mineração, na aparência, o Estado parece obter vantagem, no entanto, a renda não replicável do setor, por uma opção política, impõe-se como renda de monopólio a favor do capital mineral.
A Lei Kandir provocou erosão nas contas públicas do país, regrediu a economia das regiões e dos estados exportadores, a exemplo do Pará, e fragmentou o pacto federativo.
A insustentável relação entre União e estados tumultuou expectativas. Superávit primário, segurança jurídica de capitais e reservas estratégicas foram as caricaturas públicas do que essa lei produziu ao custo ambiental até agora incalculável. Um dos resultados negativos sem dúvida mais expressivos (por essa forma de transferir dinheiro ao rentismo interno e externo e por sua duração sem questionamentos) foi a emenda constitucional que congelou os investimentos públicos por duas décadas, conhecida como “PEC do Teto de Gastos”, levada a cabo pelo governo Temer 2016/17. Estas diatribes modelam a miséria social, imobilizam o cotidiano.
Outro Antônio, esse, Anastasia, ex-governador e ex-senador da República por Minas Gerais, reconheceu no Seminário Internacional Justiça Fiscal, Desigualdade e Desenvolvimento, realizado pelo Sindicato dos Servidores do Fisco Estadual do Pará (Sindifisco-PA), em 2022, que a Lei Kandir “era o ato de fazer cortesia com chapéu dos outros”.
Hoje, como Ministro do Tribunal de Contas da União, pensa diferente sobre a emenda constitucional que ajudou a criar quando seu partido, o PSDB, teve dois mandatos seguidos na presidência da República, de 1994 a 2002, e quando se consolidou a estratagema rentista sobre a economia nacional.
Para reverter o neocolonialismo é preciso rever a Lei Kandir
O pan-africanista e socialista Kwame Nkrumah, líder da indpendência de Gana, escreve que “a essência do neocolonialismo é que o Estado que lhe está sujeito é, em teoria, independente e tem todas as características externas da soberania internacional. Na realidade, seu sistema econômico e, com isso, sua política são dirigidas de fora."
O resultado, continua Nkrumah, do colonialismo é que "o capital estrangeiro se utiliza para a exploração, mais que para o desenvolvimento das partes menos desenvolvidas do mundo".
"O neocolonialismo é também a pior forma de imperialismo. Para quem pratica, significa poder sem responsabilidade e, para quem sofre, significa exploração sem reparação", conclui Nkrumah.
A reforma tributária aprovada no Congresso Nacional em dezembro de 2023, que substituiu cinco impostos por três, criou o imposto seletivo destinado a taxar produtos que fazem mal à saúde, como cigarros e bebidas, e que poluem o meio ambiente.
Sendo a mineração um tipo de economia exaurível que não é renovável, pressupõe-se que o aumento das alíquotas da Compensação Financeira sobre Extração Mineral-CFEM e a lei Kandir deveriam ter sido reconfiguradas pela reforma, assim como os royalties do petróleo e gás.
Mas, em vez disso, a redação dada pelos senadores à alíquota para estas predações chega apenas a 1%. A reforma passa ao largo da justiça fiscal e abona a rolagem do capital dos capitais transnacionalizados. A Lei Kandir e o baixo CFEM, isolado da taxa de lucro do capital, saíram ilesos da reforma tributária.
Além de inibir a política de industrialização do país com incentivos à exportação, o conteto atual ainda adiciona mais natureza mineral ao pacto do capital no Brasil. Olhando para a renda deste setor, cuja tendência é de crescimento mesmo na retração.
Outro aspecto importante é o fim da contenda envolvendo estados e municípios com a União, em 2020, capitaneado pelo Supremo Tribunal Federal. O acordo prevê o pagamento, até 2037, de R$ 57 bilhões, aos municípios e estados pelo que deixaram de arrecadar com as isenções da Lei Kandir.
No fundamental, estados importantes como Pará, Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, entre outros, encerram a luta jurídica com a União, desistindo das ações que questionem suas perdas.
Neste aspecto, ao menos duas questões precisam ser observadas. A primeira é: de onde virá esse recurso? Na origem do acordo, a União se compromete a pagar com o dinheiro obtido com leilões de venda de poços de petróleo. Ou seja, vamos reparar os danos com aprofundamento da lógica de privatização dos bens da natureza e primarização da economia.
A outra questão é que o acordo não deixa claro como e onde os governadores usaram os recursos oriundos desse “acerto de contas”. Não há qualquer garantia de que esses recursos, mesmo que muito inferiores ao valor reivindicado, sejam investidos em políticas públicas locais e regionais que recuperem as décadas perdidas.
Tivesse apelo popular esta demanda, o controle deste recurso em forma de um fundo estadual de investimento, para evitar a criação de grupo de poder na destinação e a rolagem de capitais sem função social. Esta é uma questão política e que devemos nos ater a ela para não permitir um aprofundamento ainda maior da dinâmica predatória a que estamos submetidos.
*Charles Trocate é membro do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e da Via Campesina - Brasil
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato
Edição: Rodrigo Chagas e Geisa Marques