Mal começou o novo governo e a disputa entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, tomou conta do noticiário. O debate acalorado entre os dois tem como foco a taxa básica de juros da economia, a Selic, que traz repercussões para toda a economia e a política nacional.
Lula ganhou a eleição presidencial do ano passado prometendo fazer a economia do país voltar a crescer. Para isso, prometeu retomar investimentos públicos e reforçar programas de transferência de renda aos mais pobres, como o Bolsa Família.
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Os gastos do governo tendem a fazer crescer o Produto Interno Bruto (PIB), exatamente como Lula deseja. Mas alguns economistas veem esses gastos como um fator causador de inflação, o que prejudica principalmente os mais pobres.
O BC é o órgão estatal responsável pelo controle da inflação no país e, para isso, usa, principalmente, a taxa básica de juros.
A forma como o BC tem usado essa taxa, entretanto, atrapalha o crescimento da economia, na visão de Lula. Por isso, o presidente tem criticado a gestão do órgão até o fato de ele ser, atualmente, independente do governo federal.
Selic, juros e inflação
A Selic é a taxa de juros referência da economia nacional. Seu patamar é definido pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BC conforme sua avaliação sobre a economia.
Quando o Copom vê a inflação subindo, tende a aumentar a Selic. Quando ela aumenta, aumentam também os juros cobrados em empréstimos, financiamentos e crediários. Empresários e consumidores tendem a adiar decisões de compra. Com menos demanda, espera-se que os preços baixem ou pelo menos deixem de subir. Em tese, a inflação é controlada.
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De março de 2021 a agosto de 2022 – durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) – , o Copom aumentou a taxa básica de juros 11 vezes seguidas por conta da inflação. A Selic, que estava em 2% ao ano, atingiu 13,75% ao ano, e assim permanece desde então.
Os juros altos atrapalham a economia como um todo, por inibir investimentos e compras, além de comprometer o orçamento do governo já que, quanto mais alto estão, mais a União gasta para arcar com sua dívida. Sobra menos dinheiro para construir escolas, hospitais, gerar empregos e renda.
Segundo o próprio BC, de agosto de 2021 a julho de 2022, o governo gastou R$ 586 bilhões para pagar os juros da dívida pública nacional. Isso corresponde a 6,31% PIB do período.
É também quase o dobro do gasto com juros acumulados de agosto de 2020 a julho de 2021. Naquele período, quando a Selic ainda estava entre 2% ao ano e 4,25% ao ano, o gasto com juros foi de R$ 323,5 bilhões, o que representava 3,94% do PIB.
Briga pública
Levando esses dados em consideração, o governo defende a redução da Selic. O BC, no entanto, não dá sinais que concorde com o presidente.
No último dia 1º, o Copom reuniu-se pela primeira vez durante o governo Lula. Poderia ter reduzido a taxa de juros. Decidiu mantê-la, contrariando o desejo de Lula.
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Mais do que isso, o Copom declarou em comunicado que "incertezas no âmbito fiscal” reforçavam expectativas sobre alta da inflação. Traduzindo: o BC disse que a possibilidade de o governo aumentar seus gastos pressionava o órgão a manter a alta Selic.
Lula não gostou da decisão do Copom, muito menos do comunicado sobre ela. Concedeu uma entrevista à RedeTV! no dia seguinte quando disse que, para que o país volte a crescer, os juros precisam cair. “O Brasil precisa voltar a crescer. Não existe nenhuma razão para a taxa de juros estar em 13,75%”, afirmou.
Autonomia atrapalha
Lula também criticou a autonomia do BC, concedida a partir de 2021. Naquele ano, o então presidente Bolsonaro sancionou uma lei que impede que o presidente do órgão seja trocado a cada governo, como acontecia até então. Essa lei agora obriga Lula a lidar com Campos Neto, o qual foi nomeado pelo próprio Bolsonaro.
Campos Neto tem mandato no BC até o final de 2024, ou seja, até metade do mandato de Lula. O presidente declarou também na entrevista à RedeTV! que pode até encaminhar um projeto de lei ao Congresso para que a autonomia do BC seja revista depois disso.
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“Vou esperar esse cidadão [Campos Neto] terminar o mandato dele para a gente fazer uma avaliação do que significou o Banco Central independente”, disse Lula. "Esse país está dando certo? Esse país está crescendo? O povo está melhorando de vida? Não. Então, eu quero saber de que serviu a independência.”
Meta sob revisão
A mesma lei que deu autonomia ao BC também determina que ele atue como o guardião contra a inflação no país. Assim, o órgão persegue uma meta para a inflação que é previamente definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
O CMN é composto pelo presidente do BC e também pelos ministros da Fazenda e do Planejamento. Hoje, eles são Fernando Haddad (PT) e Simone Tebet (MDB), respectivamente.
Esse mesmo Conselho Monetário Nacional (CNM), ainda na gestão Bolsonaro, estabeleceu que a inflação teria de ser de 3,25% neste ano de 2023, podendo chegar, no máximo, a 4,75%. Mas as previsões mais atuais sobre o índice indicam que este pode superar os 5,5%.
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A previsão reforça o discurso do BC de que a Selic precisa permanecer alta. Ao mesmo tempo, dá argumentos para que o novo governo, já que não pode intervir no BC, altere a meta de inflação - via CMN - para abrir espaço para um corte nos juros.
Disputa abre debate
Economistas mais alinhados à agenda liberal e ao mercado financeiro reprovam as críticas de Lula ao BC e defendem a autonomia do órgão. Para eles, o governo deveria, na verdade, cortar seus gastos para que a inflação caísse e os juros fossem reduzidos.
“O BC é independente, ponto”, disse Andrew Storfer, diretor do Núcleo de Economia da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). “O Executivo tinha que parar de jogar álcool fogueira e dar diretrizes sobre austeridade, para melhorar o ambiente de negócios, o nível de emprego e a renda do cidadão. Não ficar criticando juros ou qualquer coisa desse tipo.”
Outros economistas, porém, veem o BC sendo gerido com base nos interesses dos grandes bancos, que têm lucrado como nunca por conta dos altos juros no Brasil. Para eles, o governo Lula está sendo "chantageado" para contrariar seu projeto político.
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“É preciso denunciar a chantagem que o Banco Central está praticando para pressionar o governo a abraçar uma política de austeridade, desnecessária e incompatível com o projeto de reconstrução da nossa sociedade que o presidente Lula apresentou ao povo durante a campanha eleitoral”, disse o economista Daniel Conceição, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na mesma linha, vai Márcio Pochmann, economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que lembra que o Brasil é o país com maior taxa de juros real do mundo (juros descontados o percentual da inflação).
“Lula está correto nas afirmações que tem feito em relação a posição adotada pela direção do Banco Central, que insiste em manter o patamar da taxa de juros básicas muito elevado, sem paralelo mundial.”
Segundo Pochmann, as críticas são corretas principalmente porque a gestão de Campos Neto não tem conseguido cumprir seu dever de colocar a inflação dentro da meta estabelecida pelo CNM mesmo com os juros altos.
Campos Neto preside o BC desde o final de 2019, indicado por Bolsonaro. Apesar do discurso austero, sob sua gestão em 2021 e 2022, a inflação estourou a meta.
Tensão crescendo
Nesta terça-feira, Campos Neto defendeu num evento em Miami a autonomia do BC. Segundo ele, ela serve justamente para desconectar o órgão dos ciclos políticos, impedindo um presidente democraticamente eleito de intervir na instituição.
“Acho que [a autonomia] é muito importante por diferentes razões. A principal razão, no caso da autonomia do BC, é desconectar o ciclo de política monetária do ciclo político, porque eles têm diferentes lentes e diferentes interesses”, disse ele.
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Já Lula disse que a responsabilidade sobre os juros é do BC, presidido por Campos Neto. Disse ainda que só o Senado Federal para tirá-lo do cargo.
“Eu acho que esse cidadão [Campos Neto] que foi indicado pelo Senado tem a possibilidade de maturar, de pensar e saber como é que vai cuidar desse país porque ele tem muita responsabilidade”, afirmou. “A culpa dos juros é do BC. Agora é o Senado que pode trocar o presidente do BC.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho