Na última semana, nos dias 21 e 22 de fevereiro, o Rio de Janeiro recebeu a reunião de chanceleres dos países do G20, reunindo 45 delegações internacionais das nações mais ricas do mundo. Em particular, o evento reuniu na mesma sala o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, em meio à grave crise diplomática entre os dois países no contexto da guerra da Ucrânia.
Rússia e EUA são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e expressam visões antagônicas sobre o futuro da governança global, tema-chave da presidência brasileira no G20.
A diplomacia brasileira estabeleceu três prioridades durante a sua presidência no G20 este ano: a reforma da governança global, combate às mudanças climáticas e a criação de uma aliança global contra a fome a pobreza. A recente crise diplomática entre Brasil e Israel, provocada pelas declarações de Lula acusando o governo de Benjamin Netanyahu de realizar um genocídio em Gaza, e a continuidade do conflito ucraniano, concentraram as atenções nas negociações bilaterais e multilaterais.
Por isso, entre os tópicos estabelecidos pela agenda brasileira, a reforma da governança global teve maior destaque. Afinal, o poder de veto utilizado pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU têm sido a causa do impasse da organização diante dos conflitos da Ucrânia e de Gaza. De um lado, os EUA sistematicamente vetam qualquer resolução crítica a Israel. Por outro, a Rússia bloqueia as resoluções referentes à guerra da Ucrânia.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, em seu discurso de abertura no G20, deu o tom da posição brasileira sobre a necessidade de reformar o sistema de governança global. Segundo o chanceler, há uma "inaceitável paralisia do Conselho de Segurança da ONU em relação aos conflitos em curso".
"Nossas posições sobre os casos ora em discussão no G20, em particular a situação na Ucrânia e na Palestina são bem conhecidas e foram apresentadas publicamente nos foros apropriados, como o Conselho de Segurança da ONU e a Assembleia Geral da ONU"…] Enquanto o norte do mundo está unido em torno de uma aliança militar, os países do sul do mundo estão empenhados em estabelecer acordos de paz e cooperação. A situação extraordinária em que todo o hemisfério sul do planeta optou por ser completamente desnuclearizado é mantida fora da narrativa predominante", destacou.
Ao enfatizar a importância do Sul global nos rumos da política internacional, a diplomacia brasileira buscou consenso entre os ministros das 20 maiores economia do mundo para promover uma reestruturação da ONU, bem como outras instituições de governança. Foi o que o chanceler brasileiro destacou em sua declaração final na conferência:
“Na sessão de hoje, pela manhã, tratou-se da reforma da governança global, que, para o Brasil, é urgente e prioritária. Todos concordaram quanto ao fato de que as principais instituições multilaterais – ONU, Organização Mundial do Comércio, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, entre outros – precisam de reformas para se adaptarem aos desafios do mundo atual. […] Todos mencionaram a necessidade de se conferir o impulso da organização (ONU), em especial do seu Conselho de Segurança, com a inclusão de novos membros permanentes e não permanentes, sobretudo da América Latina e Caribe e da África”, afirmou.
A reforma do Conselho de Segurança da ONU também foi defendida pela Rússia, mas com uma crítica mais enfática ao Ocidente. Em entrevista coletiva à imprensa russa, à qual o Brasil de Fato teve acesso, o ministro das Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov, disse que os aliados dos EUA no Conselho de Segurança estão “super representados”.
“Em conexão com a reforma das estruturas de governança global, muitos participantes abordaram a reforma do Conselho de Segurança. Também expressamos a nossa posição, que é a de que o Conselho de Segurança precisa ser reformado, eliminando a principal injustiça: a sub-representação dos países em desenvolvimento. Atualmente, dos 15 membros do Conselho de Segurança, seis representam aliados dos EUA, quase todos atuam a partir das posições ditadas por Washington”, argumentou.
No G20, chanceler russo diz que 'arrogância do Ocidente' não permite negociações sobre Ucrânia.
— Brasil de Fato (@brasildefato) February 23, 2024
O repórter @sergueimonin esteve presente e gravou a fala para o #BrasildeFato
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Desta forma, o ministro russo ressaltou que no caso de uma expansão do Conselho de Segurança, Moscou defenderá a adesão exclusivamente de países do Sul global.
“Portanto, quando decidirmos, no plano prático, sobre a questão da expansão do Conselho de Segurança da ONU, apoiaremos exclusivamente representantes da Ásia, África e América Latina”, completou.
A discussão sobre a reforma da ONU, com ampliação para novos membros no Conselho de Segurança, se insere na promoção de um mundo multipolar, com uma distribuição de poder mais equilibrada, maior inclusão de países do Sul global e menor domínio de uma potência hegemônica.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora de Relações Internacionais da PUC-Rio e diretora do BRICS Policy Center, Marta Fernández, afirmou que a defesa de uma multipolaridade liga as posições do Brasil e da Rússia. Se, de um lado, a Rússia buscar reverter o isolamento do Ocidente, pretendendo status de liderança em um mundo multipolar, o Brasil investe na sua tradição de mediação e neutralidade, bem como de liderança regional, para ganhar maior protagonismo nos processos decisório na arena internacional.
“O Brasil nesse momento, nesse governo petista, é defensor desse mundo multipolar, que também é algo que a Rússia defende, que a China defende, e é algo que está sendo colocado pelo Brasil. inclusive no discurso do Mauro Vieira ele coloca isso, ou seja, não um mundo unipolar que você tenha um (país) hegemônico, mas um mundo com uma distribuição de pode mais equânime”, argumenta.
Democratização da ONU
A dificuldade de buscar consenso em fóruns como o G20 se dá justamente porque é uma plataforma que reúne tanto os países mais ricos, representados pelo G7, quanto os países do BRICS e do Sul global. Por outro lado, o G20 também serve como oportunidade para pressionar os países ricos a rediscutir a distribuição de poder na arena internacional.
De acordo com a pesquisadora Marta Fernández, o discurso sobre a reforma da governança global abre portas para que os países que foram derrotados na Segunda Guerra, Japão e Alemanha, e que não fazem parte do Conselho de Segurança como membros permanentes, possam ter espaço no Conselho de Segurança.
“Muito do discurso hoje de reforma da governança global está dizendo assim: o mundo mudou, o mundo já não é aquele de 1945, quando a ONU e as instituições de Bretton Woods foram criadas, e é preciso, vamos dizer assim, adaptar o Conselho de Segurança à nova configuração de poder global, à nova configuração de poder econômica e política”, afirma.
Por outro lado, a professora de Relações Internacionais aponta que essa reforma da ONU deve ser acompanhada de uma ideia de redemocratizar a distribuição de poder no sistema internacional. Neste sentido, a Rússia e o Brasil convergem.
“O outro ponto é o seguinte: para além de adaptar as novas potências, o Conselho de Segurança tem que se democratizar, e nesse sentido faz muito mais sentido inserir países no Sul global e você ter uma distribuição de poder, que não necessariamente corresponda exatamente à correlação de forças internacional, mas que de fato consiga bloquear um pouco esse poder do Ocidente dentro do Conselho de Segurança”, completa Fernández.
Com as posições bem marcadas na reunião de chanceleres, a expectativa é que a pauta da reforma da ONU volte com mais peso na cúpula presidencial do G20, que será realizada em novembro, também no Rio de Janeiro.
Edição: Rodrigo Durão Coelho