A guerra da Ucrânia completa exatos dois anos de duração neste sábado, 24 de fevereiro, uma data que já é considerada como um dos mais marcantes divisores de águas na política internacional no século XXI. O conflito iniciado pela Rússia começou com a expectativa de ser uma guerra-relâmpago, dada a disparidade militar entre Moscou e Kiev, mas, passados dois anos, a guerra se arrasta em um impasse permanente, sem perspectiva de resolução ou qualquer vislumbre de negociações entre as partes envolvidas.
Se o ano de 2023 foi marcado em grande parte pela expectativa criada em torno da contraofensiva ucraniana, angariando grande apoio econômico e militar do Ocidente, hoje já é consenso de que o movimento fracassou. A Ucrânia não conseguiu retomar o controle de territórios expressivos em sua reação e a eclosão da guerra de Israel em Gaza a partir de 7 de outubro colocou o conflito no leste europeu em segundo plano.
Segundo o analista do Conselho Russo de Relações Internacionais, Nikita Smagin, o agravamento da situação na Palestina com certeza é favorável para a Rússia, apesar do país obviamente não ter se posicionado a favor desse agravamento. Ao Brasil de Fato, o analista afirmou que "a situação em torno da Palestina convence o governo russo, as elites russas, que o seu vetor de política externa em geral está correto".
De acordo com ele, a estratégia russa "aposta que no mundo vão continuar ocorrendo crises, e que a situação da Ucrânia não será o único incômodo para o Ocidente". "Com o Ocidente desviando sua atenção para outros problemas, não conseguirá se concentrar apenas na Ucrânia", argumenta.
Nos últimos meses, o status do conflito ucraniano vinha sendo classificado por analistas como "guerra por esgotamento", em que não há grandes alterações na linha de frente, com as partes buscando esgotar os recursos do adversário para se colocar em uma posição favorável de barganha. A suposta "estabilidade" do front, no entanto, não significa uma suavização da tragédia em curso.
Bombardeios russos seguem atingindo áreas civis na Ucrânia e matando pessoas inocentes. Eventuais ataques de drones ucranianos também começam a atingir regiões russas perto da fronteira, deixando mortes de civis. Na linha de frente, as mortes de soldados de ambos os lados só crescem.
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Neste cenário de conflito, a Rússia fica em vantagem, pois detém maiores recursos econômicos, militares e humanos para repor as tropas – independente da quantidade de baixas. Afinal, a guerra acontece em território ucraniano, o que faz com que a infra-estrutura econômica do país seja muito mais atingida.
É o que afirma o chefe do Centro de Análise e Previsão Política da Bielorrússia, Pavel Usov. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que o prolongamento da guerra beneficia a Rússia por conta do "esgotamento da Ucrânia, esgotamento do Ocidente e suas expectativas, pelo reforço da frustração, do cansaço de tudo o que se observa".
O que sustenta – e sempre sustentou desde o início da guerra – a resistência ucraniana é o amplo apoio militar e econômico do Ocidente, sobretudo dos EUA. Mas mesmo este robusto suporte começa a dar sinais de falta de coesão. Pavel Usov observa que hoje é possível identificar um "desmantelamento do front de solidariedade à Ucrânia" da parte do Ocidente.
De acordo com Pavel Usov, a Rússia se aproveita do desgaste que o Ocidente sente em relação à falta de perspectiva de uma contraofensiva de êxito por parte da Ucrânia.
"Se aproximam as eleições dos EUA e a agenda interna é mais importante para a sociedade americana do que a agenda externa. [...] Já há o caso da esfera de influência da Eslováquia, onde um populista semelhante a Orban (primeiro-ministro húngaro) chegou ao poder, que também a princípio não irá apoiar a Ucrânia", afirma Usov.
O analista aponta que isso gera uma pressão dentro da UE para a necessidade de realizar negociações de paz com a Rússia. "A Europa terá cada vez populistas de direita dessa natureza que irão apoiar a Rússia", analisa.
Agora, mesmo da parte ucraniana, não se contesta que quem detém a iniciativa nas ações militares é a Rússia.
Territórios em disputa
No último dia 17 de fevereiro, as Forças Armadas da Ucrânia anunciaram a retirada das tropas da região Avdeevka, no leste ucraniano, para "posições mais vantajosas", ao passo que o Ministério da Defesa russo declarou ter "libertado" o território, palco de intensas batalhas entre as forças russas e ucranianas desde o início da guerra.
"O Ministério da Defesa da Federação Russa publicou novas imagens de equipamentos militares abandonados nas margens das estradas nos subúrbios de Avdeevka durante a fuga caótica das Forças Armadas da Ucrânia. No momento, militares das Forças Armadas Russas estão realizando medidas destinadas a limpar as áreas suburbanas de Avdeevka dos militantes das Forças Armadas da Ucrânia e bloquear as suas unidades", diz o comunicado do ministério russo anunciando a conquista da região.
Moscou afirma que a "libertação" da cidade tornou possível afastar a linha de frente de Donetsk e "protegê-la significativamente dos ataques inimigos".
Vale lembrar que Donetsk é uma das regiões do leste ucraniano, junto com Lugansk, Kherson e Zaporozhye, que foram anexadas pela Federação Russa em outubro de 2022. No entanto, Moscou não detém o total controle dessas regiões incorporadas ao seu território, ou seja, a linha de frente da guerra atravessa muitos pontos dos territórios que a Rússia reivindica como conquistados.
Um estudo publicado na última semana pelo Instituto para Estudos da Guerra (ISW) aponta que, após a tomada de Avdeevka, as forças russas estão buscando tirar proveito dos atrasos no fornecimento da ajuda ocidental a Kiev, conduzindo ataques contra as posições das Forças Armadas da Ucrânia em três direções ao mesmo tempo: Zaporozhye, Kharkov e Donetsk.
Os especialistas militares norte-americanos indicam, no entanto, que após a retirada de Avdeevka, as Forças Armadas da Ucrânia provavelmente conseguirão criar uma nova linha de defesa perto da cidade, o que poderá levar a novas intensas batalhas na área.
Sem espaço para negociações
Na última quinta-feira (22), o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, esteve no Rio de Janeiro para participar da reunião de chanceleres do G20 e a guerra da Ucrânia foi um dos principais assuntos das discussões entre os ministros. Em coletiva exclusiva à imprensa russa após a reunião com os ministros, à qual o Brasil de Fato teve acesso, Lavrov explicitou a falta de perspectiva em relação a possíveis negociações sobre o conflito ucraniano.
O ministro russo alegou que os países do Ocidente não querem realizar um diálogo sério sobre a situação da Ucrânia, observando que não houve quaisquer contatos com os chefes da diplomacia britânica e dos EUA.
Segundo ele, é impossível restaurar a confiança nas relações com os EUA quando "a Rússia é abertamente declarada um Estado hostil, uma ameaça imediata que deve ser destruída e estrategicamente derrotada". Lavrov acrescentou que Moscou não recebeu quaisquer "propostas sérias" de Washington para retomar o diálogo sobre estabilidade estratégica.
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O ministro das Relações Exteriores russo ainda declarou que a "arrogância e a preocupação do Ocidente com a russofobia" não permite falar de negociações sobre a Ucrânia. "[O Ocidente] não quer um diálogo sério", completou.
No G20, chanceler russo diz que 'arrogância do Ocidente' não permite negociações sobre Ucrânia.
— Brasil de Fato (@brasildefato) February 23, 2024
O repórter @sergueimonin esteve presente e gravou a fala para o #BrasildeFato
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Ao mesmo tempo, a diplomacia reitera repetidamente que não se fecha para possíveis negociações com Kiev e o Ocidente para buscar uma resolução para a crise ucraniana. De acordo com o analista Pavel Usov, a busca por congelar o conflito não está desassociada da pressão da ofensiva militar russa, pois quanto mais a Rússia estiver em vantagem no campo de batalha, mais favoráveis serão as suas condições de barganha.
"Sem dúvida, a Rússia vai fazer de tudo para, por um lado, esgotar as forças da Ucrânia, aumentar a pressão, avançar mais, mas, por outro lado, vai buscar chegar a um acordo de trégua, porque uma trégua, um congelamento do conflito na configuração territorial que hoje está colocada, isso vai representar uma vitória para a Rússia", afirma o analista.
Edição: Nicolau Soares