Um terreiro de candomblé é um lugar sagrado. A afirmação, que pode parecer simples, embasa juridicamente a ação que tenta barrar uma reintegração de posse do barracão onde, desde 1966, funciona o Abassá Oxum Oxossi, um templo de matriz africana no bairro de Cangaíba, em São Paulo. Neste momento, o futuro do terreiro está entre uma decisão favorável à sua venda na Justiça e um Projeto de Lei (PL) que pede o reconhecimento do espaço como patrimônio histórico e imaterial da capital paulista. O caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal (STF).
O conflito que cerca o terreiro deriva de um embate familiar. Após a morte da matriarca, a Yalorixá Mãe Caçulinha D’Oxum, em 2016, os filhos biológicos da sacerdotisa – majoritariamente convertidos à religião evangélica – decidiram vender o templo. Apesar dos filhos serem legalmente considerados herdeiros, a neta da Yalorixá, Kátia Sampaio, que segue o candomblé e foi iniciada no terreiro da avó, reivindica o posto de herdeira espiritual a partir de rituais realizados no templo.
Em um testamento escrito a punho e registrado em cartório, Mãe Caçulinha, que é nacionalmente reconhecida pelo seu trabalho religioso, pediu que as atividades do terreiro não fossem descontinuadas por pelo menos cinco anos após sua morte. O templo realmente seguiu em funcionamento nesse período. Mas, passado o prazo, os filhos biológicos de Mãe Caçulinha escolheram vendê-lo, alegando acúmulo de dívidas.
Kátia Sampaio, chamada na hierarquia da religião de Mametu Kutala Diamuganga, assumiu a liderança do terreiro e buscou legalmente garantir a permanência das atividades. Porém, um pedido de reintegração de posse feito em 2022 pelos filhos de Mãe Caçulinha deu início ao conflito entre herdeiros carnais e espirituais da matriarca.
“A Justiça decidiu, em dezembro de 2022, que o espaço deveria ser vendido. Eu acho importante dizer que minha defesa não é por dinheiro, pelo valor material deste lugar, mas existe algo sagrado aqui”, explica Kátia Sampaio.
Atualmente, dez filhos de santo iniciados no terreiro, realizam lá as suas obrigações religiosas. No salão principal, onde estão atabaques e outros objetos sagrados, imagens dos orixás ilustram paredes do chão ao teto. Mais a frente, no local de honra onde ficam as lideranças religiosas durante festividades e rituais, fotos de Mãe Caçulinha D’Oxum durante o trabalho espiritual preservam a memória da matriarca. Ao redor do salão estão salas menores, utilizadas para o atendimento religioso.
“Não tem como entrar neste lugar e não entender que se trata de um templo”, diz Sampaio. “Existe um sagrado a se honrar, rituais a fazer. Encontrar um novo lugar depende da aprovação dos orixás e eu preciso jogar os búzios para saber. Antes de entrar nesse novo lugar, há fundamentos que devem ser feitos. Não é como se eu pudesse pegar todos esses objetos e colocar num depósito. Não é uma casa, não é um barracão qualquer”, acrescenta a Mãe de Santo.
No processo de reintegração de posse, os filhos de Mãe Caçulinha argumentam que as atividades religiosas não eram realizadas no barracão, onde Kátia Sampaio, sucessora da Yalorixá, chegou a morar durante certo período com um acordo de “empréstimo” entre os próprios familiares. A principal motivação para a venda seriam dívidas do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), acumuladas desde o falecimento da matriarca, que ultrapassam os R$ 47 mil sobre o imóvel de 345 metros quadrados (m²).
No Brasil, templos religiosos são isentos do IPTU desde 2022. A presença na dívida ativa, com acúmulo de débitos anteriores e a falta de alguns dos documentos necessários para a formalização do Centro, porém, prejudicam a obtenção do direito.
Os advogados de Kátia Sampaio recorreram da decisão judicial que determinou a venda do terreno, com documentação que comprova o funcionamento do terreiro no local. Esses registros não chegaram a ser avaliados pela juíza Mônica Gonzaga, da 7° vara da família e sucessões do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), segundo os advogados, e o pedido de reintegração de posse segue em curso.
“Uma das coisas que nos chama muita atenção é que nós elaboramos uma petição com documentação farta, utilizando diversos tipos de provas de que o terreiro estava em funcionamento, e ela sequer foi citada no acórdão. Eu não vejo como um ataque direto, como algo proposital, mas não deixa de ser curioso que logo um caso que envolve uma religião de matriz africana seja vítima desse descaso”, comenta o advogado Mike Stucin, à frente da defesa dos filhos de santo da casa e de Sampaio no TJSP.
No recurso, ao qual a Agência Pública teve acesso, a defesa do centro religioso argumenta que “com o tempo, ante o caráter informal da comunidade, as atividades religiosas continuaram a ocorrer sem que, todavia, houvesse o devido cuidado com a institucionalização da congregação (registro de atas, eleições etc.), o que, nesse momento, culminou com grave ameaça à manutenção do seu histórico local de culto sem que a associação possa se manifestar enquanto pessoa jurídica legalmente constituída”.
A equipe de advogados de Kátia Sampaio conta que uma petição, que argumenta pela permanência do local enquanto terreiro de candomblé foi enviada ao Supremo Tribunal de Justiça e, mais recentemente, ao Supremo Tribunal Federal. “Nós esperamos que chegue ao status de repercussão geral no STF porque nós sabemos que não se trata de apenas um único terreiro envolvido nessas questões”, comenta a advogada Talita Fonseca.
“Há uma clara omissão da identificação daquele lugar como sagrado, porque em todo o processo, o lugar é tratado como um ‘galpão’. Ou seja, a gente passou do ponto de discutir tão somente propriedade de direito. Isso é sobre direito constitucional, que vem antes da propriedade. Você está desrespeitando a dignidade humana de uma mãe e de seus filhos e você está desrespeitando o fato que a mudança de um local é um ato litúrgico”, comenta a advogada Talita Fonseca, que representa Sampaio no processo enviado ao STF, onde o documento segue a disposição do ministro Luiz Fux.
PL quer transformar terreiro em patrimônio histórico
A fim de proteger o terreiro, a deputada Leci Brandão (PCdoB-SP), propôs o Projeto de Lei (PL) nº 771/2023, que pede o reconhecimento do espaço enquanto patrimônio histórico material e imaterial. Até então, apenas o voto favorável do relator Conte Lopes (PL-SP) consta na tramitação.
“A casa de Mãe Caçulinha sempre foi um patrimônio e é uma das grandes referências para os povos tradicionais de terreiro do estado de São Paulo. Por isso, consideramos que esse assunto não pode ser tratado apenas na esfera jurídico-institucional, porque se assim for se corre o risco da comunidade religiosa enfrentar o racismo institucional, não apenas por parte do Judiciário e das instituições de um modo geral, mas também da relação que a família carnal tem com as religiões de matriz africana”, diz a deputada Leci Brandão.
À Pública, a parlamentar informou ainda que “o que está em debate não é apenas um bem patrimonial, mas a construção e legitimidade de um espaço sagrado e de uma cultura tradicional que está plantada naquele local há 60 anos”. “Garantir o direito à liberdade de crença também tem a ver com isso. Será que haveria esse tipo de questionamento se no lugar de um terreiro ali estivesse uma igreja católica ou evangélica?”, questionou.
O reconhecimento dos espaços de matriz africana como essenciais à cultura ainda é raro no Brasil. O primeiro tombamento de uma casa religiosa de matriz africana, em São Paulo, aconteceu em 1990. Depois disso, apenas em 2019 outros cinco templos, cujos pedidos de reconhecimento ocorreram entre 2013 e 2017, foram tombados. O tombamento é uma forma de proteger locais e reconhecer sua contribuição à cultura brasileira.
Com atendimentos espirituais anunciados nas redes sociais de segunda a sexta-feira e rituais religiosos internos, não é possível calcular quantos candomblecistas já foram iniciados desde a fundação do terreiro de Mãe Caçulinha. “Esta foi a primeira casa da rua”, diz a Mãe de Santo Kátia Sampaio. “Nunca tivemos problemas com vizinhos, nem mesmo durante as festas que acontecem de madrugada, porque isso movimenta o local que costuma ser ermo à noite. A comunidade nos acolhe e é acolhida há 60 anos. Mesmo quem não segue a religião é bem-vindo aqui há muito tempo e seguirá sendo.”
Os herdeiros legais de Mãe Caçulinha não concederam entrevista à Pública. Em posicionamento enviado à reportagem, os familiares que desejam vender o espaço discordam que exista qualquer motivação religiosa nessa objetivo. Eles questionam também a validade de qualquer ritual que tenha concedido à Mãe Kátia a herança espiritual de Mãe Caçulinha.
Por enquanto, o processo de reintegração de posse, que pode acarretar no despejo do terreiro, não tem data para ser concluído.