Sob o comando de governos de direita em anos recentes, os países da América do Sul aderiram à chamada campanha de "pressão máxima" contra a Venezuela, criada pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump, e passaram a excluir o país de foros regionais. Além disso, governos como o de Jair Bolsonaro, no Brasil, Iván Duque, na Colômbia, e Mauricio Macri, na Argentina, deixaram de reconhecer o mandato do presidente Nicolás Maduro e forneceram apoio total ao ex-deputado Juan Guaidó quando ele se autoproclamou "mandatário interino".
Neste último ano, entretanto, com a vitória de candidatos de esquerda em alguns países sul-americanos, a política externa em relação à Venezuela passou a ser menos hostil e foi marcada pela retomada de relações diplomáticas de vários governos com Caracas. A mais recente ocorreu na última segunda-feira (25), quando o novo embaixador da Argentina, Oscar Laborde, entregou suas credenciais a Maduro, após sete anos sem que houvesse um representante diplomático de Buenos Aires no país.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo venezuelano Ociel López diz que o ato simboliza uma mudança na estratégia regional de tratamento com a Venezuela, ainda que a nomeação de um embaixador argentino tenha demorado mais do que deveria.
"Ter relações com um país vizinho, receber um embaixador de algum país é algo natural, normal e não deveria ser visto como um grande avanço. É claro que simbolicamente trata-se do fim de um modelo de tratamento em relação à Venezuela que está ocorrendo no Cone Sul e, neste caso, na Argentina. Entretanto, a guinada à direita na Argentina foi muito radical e muito rápida, mas a virada ao centro, pelo menos, foi excessivamente lenta", afirma.
Durante os anos em que esteve na presidência argentina, entre 2015 e 2019, Macri teve papel ativo nos esforços da região para isolar a Venezuela. Foi sob sua gestão que o país deixou de reconhecer o mandato de Maduro, aceitou a presidência fictícia de Guaidó e fez parte do Grupo de Lima, mecanismo criado para pressionar o governo venezuelano.
Após derrotar o direitista nas eleições de 2019, o atual presidente da Argentina, Alberto Fernández, começou, aos poucos, a mudar a política externa do país em relação à Venezuela. Entretanto, ainda que tenha retirado o reconhecimento dos supostos diplomatas nomeados por Guaidó e saído do Grupo de Lima, foi só agora, três anos depois do início do seu governo, que Fernandéz decidiu nomear um novo embaixador para o país.
Para o cientista político Gustavo Borges, a situação econômica argentina, que sofre uma severa crise herdada do governo Macri, impediu que o país tivesse autonomia em sua política externa e demorasse em reatar laços com a Venezuela.
"É evidente que com Macri houve uma postura de intervenção e agressão contra o governo venezuelano, mas o governo Fernández não interrompeu imediatamente essa estratégia. A situação argentina é complicada porque o país está inserido em uma permanente chantagem do governo dos Estados Unidos pela dívida que tem com o Fundo Monetário Internacional, então de alguma maneira é compreensível que sua política externa esteja determinada por essa situação", diz.
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Após a entrega de credenciais, o embaixador argentino na Venezuela afirmou que "o momento é de integração regional" e que a América do Sul deve "ser um polo autônomo, que defenda seus interesses contra os poderosos". Além disso, Laborde encorajou o retorno da Venezuela ao Mercosul e a participação dos parlamentares da Assembleia Nacional venezuelana no Parlasul.
Caracas, por sua vez, celebrou a chegada de Laborde ao país afirmando, em nota, que o ato tem "uma importância especial, pois as relações bilaterais entre Argentina e Venezuela se tornaram tensas durante o mandato do liberal Mauricio Macri, que reconheceu a figura de governos paralelos [...] e apoiou fórmulas de ingerência que promoveram o ataque econômico e financeiro contra a Venezuela."
Por outro lado, o governo venezuelano também lembrou dos supostos exercícios militares argentinos projetando uma invasão à Venezuela durante a gestão Macri. A informação foi revelada pelo portal argentino El Cohete a la Luna em fevereiro deste ano, após ter acesso a documentos datados de 2019 que indicavam práticas do exército que simulavam uma invasão ao país vizinho.
"Cabe destacar que esses exercícios militares ocorreram no momento em que o ex-presidente Donald Trump estava planejando formas de derrubar o presidente venezuelano, incluindo sanções comerciais que contavam com o respaldo de vários países sul-americanos, entre eles a Argentina", disse a Venezuela.
Venezuela será reintegrada
A chegada de novos governos progressistas na América do Sul tem aberto caminhos para que a Venezuela saia da situação de isolamento à qual foi empurrada nos últimos anos. Além da Argentina, Peru e Bolívia retomaram as relações com Caracas, anteriormente rompidas por ex-presidentes de direita.
A restauração dos laços com a Colômbia também já são dados como certos, pois o presidente eleito Gustavo Petro, que assumirá o cargo no dia 7 de agosto, já prometeu normalizar os vínculos diplomáticos com o país vizinho.
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Nesta quinta-feira (28), os primeiros passos para a reconciliação foram dados quando o futuro chanceler colombiano designado por Petro, Álvaro Leyva, visitou a Venezuela e se reuniu com o ministro das Relações Exteriores venezuelano, Carlos Faria.
O encontro marcou a primeira visita de uma autoridade da Colômbia ao país vizinho desde que as relações foram rompidas, em 2019. Os ministros assinaram um acordo que prevê "a nomeação de embaixadores em Caracas e Bogotá" e a retomada de relações após a posse de Petro.
Em nota, a chancelaria da Venezuela afirmou que a reunião entre Leyva e Faria ocorreu "em função de restabelecer as relações diplomáticas entre ambos os países irmãos". "Após a ruptura das relações diplomáticas entre Venezuela e Colômbia, em 2019, o novo presidente Gustavo Petro, ganhador do segundo turno em 19 de junho, abriu um canal de diálogo para iniciar o restabelecimento dos vínculos binacionais", afirma o Ministério venezuelano.
Apesar do cenário positivo, especialistas ainda veem com cautela esse processo. Para Borges, os interesses dos Estados Unidos, principal promotor de sanções econômicas contra a Venezuela, podem influenciar na postura que os governos sul-americanos adotarão em relação ao país.
"Claro, podemos dizer que existem mudanças profundas no relacionamento, na diplomacia e na forma de entender o problema venezuelano, mas isso ainda não é definitivo. Os governos de esquerda que estão chegando na América do Sul seguem uma lógica ocidental, que é a lógica de chantagem a partir da narrativa dos direitos humanos, da narrativa da democracia, da liberdade, que neste momento são conceitos líquidos porque são eles que os ajustam de acordo com suas agendas e interesses", afirma.
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No Brasil, as eleições presidenciais que acontecerão em outubro também podem trazer mudanças para a Venezuela. O atual presidente, Jair Bolsonaro, foi um dos principais promotores de ações de desestabilização do país nos últimos anos, chegando até a auxiliar a direita do país durante uma tentativa de invasão em 2019.
Por outro lado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aparece como favorito nas pesquisas e, caso seja eleito, pode alterar a linha diplomática do Brasil em relação à Caracas. Durante sua primeira passagem pela Presidência, Lula manteve relações muito próximas com o governo venezuelano, liderando diversos projetos de integração regional ao lado do ex-presidente Hugo Chávez.
Segundo o sociólogo Ociel López, ainda que o cenário se apresente como positivo para o governo de Nicolás Maduro, um processo de reintegração regional não deve ocorrer de maneira rápida e pode depender de outras lideranças latino-americanas para criar consensos entre as distintas diplomacias.
"Esse processo vai demorar e então veremos o tipo de liderança que podem ter [o presidente do México, Andrés Manuel] López Obrador, ou Lula, para articular as diferentes experiências de esquerda que existem. É verdade que a esquerda está ganhando em todo o continente, mas está ganhando em territórios problemáticos, com uma situação econômica muito problemática, por isso que da mesma forma que o pêndulo foi à direita e voltou tão rapidamente, ele poderá balançar mais uma vez", afirma.
Edição: Arturo Hartmann