O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu a reforma da Organização das Nações Unidas (ONU), na manhã desta terça-feira (24), em Nova York, nos Estados Unidos.
Lula foi aplaudido pelos chefes de estado e por membros de delegações de países estrangeiros ao dizer que "inexiste equilíbrio de gênero no exercício das mais altas funções [da ONU]. O cargo de secretário-geral jamais foi ocupado por uma mulher".
"É hora de reagir com vigor a essa situação, restituindo a organização e as prerrogativas que decorrem da sua condição de foro universal. Não bastam ajustes pontuais. Precisamos contemplar uma ampla revisão da carta", afirmou o presidente.
A reforma, em suas palavras, deve contemplar quatro pontos. O primeiro é a inclusão dos temas sobre desenvolvimento sustentável e combate à mudança climática no Conselho Econômico e Social (Ecosoc) da ONU, com "capacidade real de inspirar as instituições financeiras".
Os outros pontos são: atualização do tema de paz e segurança internacional, dado o cenário crescente de conflitos e guerras ao redor do mundo; o fortalecimento de uma agenda de consolidação da paz; e uma reforma específica no Conselho de Segurança das Nações Unidas, "com foco em sua composição, método de trabalho, direito de veto, de modo a torná-la mais eficaz e representativo da realidade contemporânea".
O chefe do Executivo ainda disse que a exclusão de países da América Latina e da África de assentos permanentes no Conselho de Segurança "é um eco inaceitável de práticas de dominação do passado colonial".
"A vontade da maioria pode persuadir os que se apegam às expressões cruas dos mecanismos de poder. Neste plenário ecoam as aspirações de toda a humanidade. Aqui, travamos os grandes debates do mundo. Neste fórum, buscamos as respostas para os problemas que afligem o planeta. Recai sobre a Assembleia Geral, expressão maior do multilateralismo, a missão de pavimentar o caminho para o futuro", concluiu o petista.
Confira o discurso de Lula na íntegra:
"Dirijo-me ao secretário-geral, António Guterres, e cada um dos chefes de estado e de governo e delegados e delegadas aqui presentes. Dirijo-me em particular à delegação palestina que integra a primeira vez a sessão de abertura, mesmo que na condição de país-membro observador.
Senhoras e senhores, adotamos ontem, aqui neste mesmo plenário, o pacto para o Futuro. Sua difícil aprovação demonstra o enfraquecimento de nossa capacidade coletiva de negociação e de diálogo. Seu alcance limitado também é a expressão do paradoxo do nosso tempo. Andamos em círculos entre compromissos possíveis que levam a resultados insuficientes. Nem mesmo com a tragédia da covid-19 fomos capazes de nos unir em torno de um tratado sobre pandemias na Organização Mundial da Saúde. Precisamos ir muito além e dotar a ONU dos meios necessários para enfrentar as mudanças vertiginosas do panorama internacional.
Vivemos momentos de crescente angústias, frustrações, tensões e medo. Testemunhamos a alarmante escalada de disputas geopolíticas e de rivalidades estratégicas.
O ano de 2023 ostenta o triste recorde do maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial. Os gastos militares globais cresceram pelo nono ano consecutivo e atingiram 2 trilhões e 400 bilhões de dólares. Mais de 90 bilhões de dólares foram mobilizados com arsenais nucleares. Esses recursos poderiam ter sido utilizados para combater a fome e enfrentar a mudança do clima. O que se vê é o aumento das capacidades bélicas. O uso da força sem amparo no direito internacional está se tornando a regra. Presenciamos dois conflitos simultâneos com potencial se de tornarem confrontos generalizados.
Na Ucrânia, é com pesar que vemos a guerra se estender sem perspectiva de paz. O Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano. Já está claro que nenhuma das partes conseguirá atingir todos os seus objetivos pela via militar. O recurso, armamentos cada vez mais destrutivos, trazem memória os tempos mais sombrios do confronto estéreo da Guerra Fria.
Criar condições para a retomada do diálogo direto entre as partes é crucial neste momento. Esta é a mensagem do entendimento de seis pontos que China e Brasil oferecem para que se instale um processo de diálogo e o fim da hostilidade.
Em Gaza e na Cisjordânia, assistimos a um dos maiores crimes humanitária da história recente e que agora se expande perigosamente para o Líbano. O que começou com uma ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes tornou se uma punição coletiva de todo o povo palestino. São mais de 40 mil vítimas fatais, em sua maioria mulheres e crianças.
O direito de defesa transformou se no direito de vingança que impede um acordo para liberação de reféns e adia o cessar fogo. Conflitos esquecidos no Sudão e no Iêmen impões sofrimento atroz a quase 30 milhões de pessoas. Neste ano, o número dos que necessitam de ajuda humanitária no mundo chegará a 300 milhões de pessoas.
Em tempos de crescente polarização, expressões como desglobalização se tornaram corriqueiras. Mas é impossível desplanetizar nossa vida em comum. Estamos condenados a interdependência da mudança climática. O planeta já não espera para cobrar da próxima geração e está farto de acordos climáticos que não são cumpridos. Está cansado de meta de redução de emissão de carbono negligenciada do auxílio financeiro aos países pobres que nunca chega. O negacionismo sucumbe ante as evidências do aquecimento global.
2024 caminha para ser o ano mais quente da história moderna. Furacões no Caribe, tufões na Ásia, inundações na África e chuvas torrenciais na Europa deixam um rato de morte, de destruição. No sul do Brasil tivemos a maior enchente desde 1941. A Amazônia está atravessando a pior estiagem em 45 anos. Incêndios florestais se alastrado pelo país. E já devoraram 5 milhões de hectares apenas no mês de agosto.
O meu governo não terceiriza a responsabilidade e nem abdica da sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer muito mais. Além de enfrentar o desafio da crise climática, lutamos contra quem lucra com a degradação ambiental. Não transigiremos com litígios ambientais, com o garimpo legal e com o crime organizado.
Reduzimos o desmatamento na Amazônia em 50% no último ano e vamos erradicá-lo até 2030. Não é mais admissível pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos indígenas, comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas.
Nossa visão de desenvolvimento sustentável está alicerçada no potencial da bioeconomia. O Brasil sediará a COP30 em 2025 convicto de que o multilateralismo é o único caminho para superar a urgência climática.
Nossa contribuição nacionalmente determinada será apresentada ainda este ano, em linha com o objetivo de limitar o aumento da temperatura do planeta a um grau e meio. O Brasil desponta como o celeiro de oportunidade neste mundo revolucionado pela transição energética. Somos hoje um dos países com a matriz energética mais limpa do mundo. 90% da nossa eletricidade provém de fundo renováveis, como a biomassa, a hidrelétrica, a solar. Fizemos opção pelos biocombustíveis há 50 anos, muito antes que a discussão sobre energias alternativas ganhasse atenção. Estamos na vanguarda em outros nichos importantes, como o da produção do hidrogênio verde. É hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustível fósseis.
Senhor presidente, na América Latina, vive-se desde 2014 uma segunda década perdida. O crescimento médio da região neste período foi de apenas 0,9%, metade do verificado na década perdida de 1980. Esta combinação de baixo crescimento e altos níveis de desigualdade resulta em efeitos nefastos sobre a paisagem política. Tragada por disputas muitas vezes alheia da região, nossa vocação de cooperação e entendimento se fragiliza.
É injustificável manter Cuba em uma lista unilateral de estados que supostamente promove terrorismo e impor medida as coercitivas unilaterais que penalizam indevidamente as populações mais vulneráveis. No Haiti, é inadiável conjugar ações para restaurar a ordem pública e promover o desenvolvimento. No Brasil, a defesa da democracia implica ação permanente ante investidas extremistas, messiânicas e totalitária que espalha o ódio, a intolerância e o ressentimento. Brasileiras e brasileiros continuarão a derrotar os que tentam solapar as instituições e colocá-las a serviço de interesse de reacionários. A democracia precisa responder as legítimas aspirações dos que não aceitam mais a fome, a desigualdade, o desemprego e a violência.
Num mundo globalizado, não faz sentido recorrer a falsos patriotas e isolacionistas, tão pouco a esperança no recurso à experiência ultraliberais que apenas agravam as dificuldades de um continente depauperado. O futuro de nossa região passa, sobretudo, por construir um estado sustentável, eficiente, inclusivo e que enfrente todas a forma de discriminação, que não se intimida ante indivíduos, corporação ou plataformas digitais que se julgam acima da lei.
A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras. Elementos essenciais da soberania inclui o direito de legislar disputas e fazer cumprir as regras dentro de seu território, incluindo o ambiente digital. O estado que estamos construindo é sensível às necessidades dos mais vulneráveis, sem abdicar de fundamentos macroeconômicos sadios. A falsa oposição entre o estado e mercado foi abandonada pelas nações desenvolvidas, que voltaram a praticar políticas industriais ativas e forte e forte regulação da economia doméstica.
Na área da inteligência artificial, vivenciamos a consolidação de assimetrias que levam a um verdadeiro oligopólio do saber. Avançam a concentração sem precedentes na mão de pequeno número de pessoas e de empresas sediadas em um número ainda menor de países. Interessa-nos uma inteligência artificial emancipadora, que também tem a cara do sul global e que fortaleça a diversidade cultural, que respeita os direitos humanos, proteja dados pessoais e promova a integridade da informação e, sobretudo, que seja a ferramenta para a paz, não para a guerra. Necessitamos de uma governança intergovernamental da inteligência artificial, em que todos os estados têm o acerto.
Senhor presidente, as condições para acesso a recursos financeiros seguem proibitivas para a maioria dos países de renda baixa e média. O fado da dívida limita o espaço fiscal para investir em saúde, educação, reduzir as dificuldades e enfrentar a mudança do clima. Países da África tomam empréstimos a uma taxa até oito vezes maiores que a Alemanha e quatro vezes maior do que os Estados Unidos. É um plano Marshall às versas, em que os mais pobres financiam os mais ricos. Sem maior participação dos países em desenvolvimento na direção do FMI do Banco Mundial, não haverá mudança efetiva.
Enquanto os objetivos do desenvolvimento sustentável ficam para trás, as 150 maiores empresas do mundo obtiveram juntas um lucro de um trilhão e 800 bilhões de dólares nos últimos dois anos. A fortuna dos cinco principais bilionários mais que dobrou desde o início dessa década, ao passo que 60% da humanidade ficou mais pobre. Os super ricos pagam proporcionalmente muito menos impostos do que a classe trabalhadora. Para corrigir essa anomalia, o Brasil tem insistido na cooperação internacional para desenvolver padrões mínimo de tributação global.
Os dados divulgados há dois meses pela FAO sobre o estado da insegurança alimentar no mundo são estarrecedores. O número de pessoas passando fome ao redor do planeta aumentou em mais de 152 milhões desde 2019. Isso significa que 9% da população mundial, 733 milhões de pessoas estão subnutridas. O problema é especialmente grave na África e na Ásia, mas também persiste em partes da América Latina. Mulheres e meninas são as vítimas maiores de pessoas em situação de fome no mundo.
Pandemias, conflitos armados, eventos climáticos de subsídios agrícolas dos países ricos ampliam o alcance do flagelo. Mas a fome não é resultado da pena de fatores externos. Ela decorre sobretudo de escolhas políticas. Hoje, o mundo produz alimento mais do que suficiente para erradicar. O que falta é criar condições de acesso aos alimentos. Esse é o compromisso mais urgente do meu governo, acabar com uma fome no Brasil, como fizemos em 2014. Só em 2023 retiramos 24 milhões pessoas da condição de insegurança alimentação. A Aliança global contra a fome e a pobreza que lançaremos no Rio de Janeiro em novembro nasce dessa vontade política e desse espírito de totalidade. Ela será um dos principais resultados da presidência brasileira do G20 e está aberta a todos os países do mundo. Todos os que queiram ser somar a esse esforço coletivo serão muito bem-vindos.
Senhor presidente, senhoras e senhores, prestes a completar 80 anos, a carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma abrangente. Apenas quatro emendas foram aprovadas, todas elas entre 1965 e 1973. A versão atual da carta não trata de algum dos desafios mais prementes da humanidade. Na fundação da ONU, éramos 51 países. Hoje somos 193. Várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob domínio colonial e não tiveram voz sobre os seus objetivos e funcionamento.
Inexiste equilíbrio de gênero no exercício das mais altas funções. O cargo de secretário geral jamais foi ocupado por uma mulher. Estamos chegando ao final do primeiro quarto do século 21 com as Nações Unidas cada vez mais esvaziada e paralisada. É hora de reagir com vigor a essa situação, restituindo a organização, as prerrogativas que decorrem da sua condição de foro universal. Não bastam ajustes pontuais. Precisamos contemplar uma ampla revisão da carta. Sua reforma deve compreender os seguintes objetivos:
1) A transformação do conselho econômico e social no principal fórum para o tratamento do desenvolvimento sustentável e do combate à mudança climática, com capacidade real de inspirar as instituições financeiras.
2) A revitalização do papel da assembleia geral, inclusive em tema de paz e segurança internacionais.
3) O fortalecimento da comissão de consolidação da paz.
4) A reforma do conselho de segurança, com foco em sua composição, método de trabalho, direito de veto, de modo a torná-la mais eficaz e representativo da realidade contemporânea.
A exclusão da América Latina e da África de assentos permanente no conselho de segurança é um eco inaceitável de práticas de dominação do passado colonial. Vamos promover essa discussão de forma transparente, em consulta no G77, no G20, nos Brics, na Celac, no Caricom e tantos outros espaços que existe para discutir. Não tem ilusões sobre a complexidade de uma reforma como essa, que enfrentará interesses cristalizados de manutenção do status quo. Exigirá enorme esforço de negociação. Mas essa é a nossa responsabilidade. Não podemos esperar por outra tragédia mundial como a segunda grande guerra para só então construir sobre seus escombros uma nova governança global.
A vontade da maioria pode persuadir os que se apegam às expressões cruas dos mecanismos de poder. Neste plenário ecoam as aspirações de toda a humanidade. Aqui, travamos os grandes debates do mundo. Neste fórum, buscamos as respostas para os problemas que afligem o planeta. Recai sobre a Assembleia Geral, expressão maior do multilateralismo, a missão de pavimentar o caminho para o futuro.
Muito obrigado e boa sorte."
Edição: Martina Medina