Após encerrar um ciclo hiperinflacionário que durou 48 meses e empreender esforços para conter a desvalorização do bolívar, a Venezuela registrou em março o menor índice de inflação mensal dos últimos 9 anos e 8 meses. Segundo dados do Banco Central (BCV), a variação do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) no mês foi de 1,4%, a mais baixa desde agosto de 2012, quando a taxa foi de 1,1%.
A marca representa o sétimo mês consecutivo que o país registra uma inflação de apenas um dígito, período iniciado em setembro de 2021, e o quinto mês em queda, se afastando ainda mais do estado de hiperinflação encerrado em janeiro.
Para o economista venezuelano Juan Carlos Valdez, há uma desaceleração evidente na inflação do país e, embora esse processo ainda seja muito frágil, ele pode ser explicado pela estabilidade da moeda nacional, o bolívar, frente ao dólar. Segundo o câmbio oficial do início de abril, a moeda norte-americana está cotada em cerca de 4,44 bolívares.
"Estamos convencidos de que a inflação na Venezuela era uma inflação induzida através da manipulação da taxa de câmbio. Isso significa que a taxa de câmbio não tinha nenhuma relação com o mercado cambial. Algumas páginas na internet que apareceram na Venezuela mostravam um valor do dólar paralelo sem nenhum tipo de relação com a realidade”, diz.
A marca positiva para a economia venezuelana destoa de indicadores em países vizinhos como a Argentina, que registrou em março a maior inflação dos últimos 20 anos, e o Brasil, que teve no mesmo mês a variação mais alta nos preços desde 1994. Até mesmo os Estados Unidos, embora tenham registrado uma inflação mais baixa do que a venezuelana - 1,2% para o terceiro mês do ano - tiveram o maior aumento dos últimos 16 anos.
Os índices acumulados, entretanto, indicam que o problema da alta nos preços na Venezuela ainda não está totalmente superado. De acordo com o BCV, a inflação trimestral deste ano foi de 11,1%, enquanto a comparação anual marcou 284,4%.
Para o professor de Economia da Universidade Central da Venezuela (UCV) Carlos Peña, o Banco Central não tem um plano anti-inflacionário de longo prazo e isso faz com que "as expectativas dos agentes econômicos a respeito da inflação sigam muito altas".
"Nós ainda seguimos correndo o risco de que a hiperinflação volte a aparecer e devemos estar atentos com isso. Apesar da taxa de câmbio ter sido mantida estável artificialmente, a guerra na Ucrânia e elementos importantes internos da política venezuelana têm efeitos estruturais que seguem afetando a inflação", afirma.
Diante desse quadro, Valdez reforça que a estabilidade momentânea que o país vive, tanto na taxa de câmbio quanto na inflação, ainda é muito débil e pode depender dos resultados alcançados na retomada do diálogo entre governo e oposição.
"Eu considero que essa estabilidade é débil e pode ser produto do esforço político que o governo está fazendo para que a oposição interrompa os ataques. Quando eu digo oposição não falo somente dos opositores venezuelanos, mas também, evidentemente, do dono do circo, que é o governo dos Estados Unidos. Se aproveitarmos esse clima de tranquilidade, podemos ter políticas que neutralizem um eventual ataque", diz o economista.
A Venezuela pode crescer em 2022?
Na mesma semana em que o INPC de março foi publicado, o banco de investimentos Credit Suisse divulgou um relatório prevendo um crescimento de até 20% na economia venezuelana em 2022. "Se estivermos certos, esse pode acabar sendo um dos cenários de crescimento mais fortes do planeta nos últimos anos", declarou o banco, que ainda estimou que o PIB venezuelano deve crescer 8% em 2023.
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Um possível crescimento de dois dígitos no PIB venezuelano representaria não só uma marca histórica, já que tal fato não é registrado desde 2005, mas também uma reversão da tendência de queda iniciada em 2014, quando o país entrou em recessão. Segundo a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o PIB da Venezuela experimentou uma retração de mais de 62% entre 2013 e 2019.
Já em relação a esse crescimento mais recente, que reverteria a tendência de queda, embora os dados oficiais sobre o PIB lançados pelo Banco Central só tenham sido publicados até 2019, o presidente Nicolás Maduro afirmou em janeiro que o país cresceu 4% em 2021. Já o Observatório Venezuelano de Finanças (OVF), organismo não governamental ligado à oposição, estima que a Venezuela tenha crescido 6,8% no ano passado, índice puxado pela expansão da produção petroleira.
Para Valdez, um crescimento econômico como o previsto pelo Credit Suisse é possível se for levada em consideração a magnitude da recessão e dos impactos negativos que as sanções e o bloqueio tiveram na capacidade produtiva do país nos últimos anos.
"Crescer 20% parece muito, mas crescer 20% em relação a quê? Se for em relação ao que temos atualmente, não seria muito difícil, mas se for em relação ao tamanho da economia da Venezuela em 2012, quando se iniciou a crise, sobre essa projeção seria uma recuperação muito importante", afirma.
Questões externas: petróleo, relações com os EUA e guerra na Ucrânia
De acordo com o Credit Suisse, o crescimento projetado para a Venezuela em 2022 se deve principalmente aos efeitos que as conversas realizadas em março deste ano entre representantes do governo dos EUA e o presidente Nicolás Maduro podem ter na produção e comercialização do petróleo venezuelano, principal fonte de divisas do país.
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Embora Washington ainda não tenha prometido a suspensão de sanções e o fim do bloqueio comercial, esse foi o primeiro contato público entre delegações oficiais de ambas as nações desde que a Casa Branca, ainda comandada por Donald Trump, decidiu reconhecer o ex-deputado Juan Guaidó como "presidente interino" da Venezuela em 2019 e única "autoridade legítima" do país.
Além disso, a proibição de importação de petróleo russo pelos EUA, ordenada por Biden no início de março como forma de sancionar Moscou pela guerra na Ucrânia, levantou a possibilidade de que o petróleo venezuelano voltasse a ser comercializado no mercado norte-americano. Até 2015, quando as primeiras sanções foram aplicadas, o país era o principal comprador do petróleo produzido pela Venezuela.
Valdez, entretanto, não acredita que o país poderia suprir as necessidades do mercado norte-americano pois "o tamanho da economia venezuelana e os níveis de produção que temos são muito baixos e não substituem o que a Rússia fornecia aos EUA".
"A aproximação do governo dos Estados Unidos com a Venezuela, para que voltemos a vender petróleo para eles, é simplesmente para separar a Venezuela da Rússia e não porque eles estejam interessados na quantidade de petróleo que produzimos atualmente", pondera o economista.
Segundo dados da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), a Venezuela fechou o ano de 2021 produzindo cerca de 636 mil barris de petróleo diários, um incremento de mais de 10% em relação à produção de 2020. Segundo o relatório mais recente da organização, o país produziu em março deste ano cerca de 728 mil barris por dia. Apesar do aumento, o número ainda está longe dos 3 milhões de barris diários que produzia antes da crise e dos 2 milhões prometidos pelo governo para o ano de 2022.
Segundo Peña, não há dúvidas de que o crescimento do país nos próximos anos vai depender da renda petroleira e das relações com empresas norte-americanas. Entretanto, o professor alerta que outros fatores como a eficácia dos gastos públicos e a capacidade de renovação técnica da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana, também podem ter impacto na proporção e distribuição do crescimento previsto.
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"Para podermos ter boas receitas com o petróleo, precisamos de fortes investimentos nos campos petroleiros, em torres de perfuração etc. Por isso, o governo está tentando fazer com que as empresas norte-americanas voltem para a Venezuela, porque sabe que elas vão investir. Isso não significa uma abertura petroleira, mas sim uma busca por parceiros para poder alcançar bons níveis de produção", afirma.
Questões internas: salários, aposentados e bem-estar social
A recuperação econômica e o fortalecimento de um estado de bem-estar social na Venezuela tem sido uma das principais promessas do governo do presidente Nicolás Maduro já que, após anos de sanções econômicas, recessão, hiperinflação e desvalorização cambial, o poder de compra dos trabalhadores foi extremamente reduzido pelos efeitos da crise.
Em março deste ano, o governo anunciou um aumento de 1200% no salário mínimo, passando de 7 para 128 bolívares (cerca de 29 dólares), valor que, somado ao bônus para alimentação, chega a 39 dólares. Entretanto, segundo o OVF, o valor da cesta básica para o mês de março foi de 187 dólares e o salário mínimo atual só consegue arcar com 10,5% dos produtos listados.
Para o professor Peña, aumentos salariais só terão efeito no poder de compra dos venezuelanos se vierem acompanhados de políticas monetárias que combatam a inflação.
"Podemos aumentar o salário todo mês, mas se não conseguirmos conter a inflação e reduzir os níveis da inflação anual a pelo menos dois dígitos, não há aumento salarial que aguente”, diz.
No início de abril, o presidente venezuelano prometeu "um plano para recuperar o poder aquisitivo dos aposentados", argumentando que é preciso "melhorar de forma sustentável os salários e acordos coletivos". "É impressionante como a Venezuela está se recuperando, se ajustando, passo a passo, que ninguém cante vitória agora pois ainda falta muito, mas nós vamos conseguir", disse Maduro em discurso durante as celebrações dos 20 anos da derrota do golpe de Estado de abril de 2002 contra Hugo Chávez
Para Valdez, é possível aumentar o poder aquisitivo dos trabalhadores venezuelanos mesmo dentro de um cenário de crise, fator que seria fundamental para ampliar a demanda e reativar a produção no país.
"Eu acredito que podemos melhorar substancialmente os níveis de satisfação dos venezuelanos através dos salários e de outras fontes de ingresso. Isso acarretaria em um incentivo adicional para o produtor venezuelano, pois para quê alguém produz se sabe que ninguém vai comprar? A criação de uma demanda agregada importante é um estímulo para o produtor e isso fortalece a economia", afirma.
Edição: Arturo Hartmann