A guerra na Ucrânia completou três meses de duração nesta teça (24), enquanto os impactos do conflito para a segurança na Europa seguem aumentando com a possível expansão da Otan para perto da fronteira com a Rússia. Finlândia e Suécia já formalizaram o pedido de adesão à aliança militar.
Com a decisão, os dois países rompem com uma tradição de neutralidade em não aderir a blocos militares, alegando que a intervenção russa na Ucrânia mudou radicalmente as ameaças e os riscos à sua segurança nacional. Finlândia e Suécia afirmam que, nas novas condições, a melhor maneira de garantir sua segurança é fazer parte do bloco político-militar da Otan.
Foi o que declarou o ministro das Finanças da Suécia, Mikael Damberg, dizendo que o conflito na Ucrânia apresentou condições de “um mundo totalmente novo”. De acordo com ele, a maioria da população e dos partidos políticos do seu país concordaram que “era a hora de ver que nós estamos mais seguros dentro da Otan do que fora da Otan”.
Em resposta, o Ministério da Defesa da Rússia anunciou que planeja formar novas 12 unidades e divisões militares no Distrito Militar Ocidental, próximo da fronteira com a Finlândia.
O rompimento da neutralidade dos dois países nórdicos, no entanto, sofre resistência por parte da Turquia, que, como membro da Otan, pode bloquear a entrada de novos países na Aliança do Atlântico Norte. Neste contexto, a Turquia pode assumir um papel decisivo na redefinição do equilíbrio de poder na Europa em torno do conflito na Ucrânia.
Para Pavel Sharikov, pesquisador do Instituto para a Europa da Academia de Ciências da Rússia, sediado em Moscou, a arquitetura de segurança da Europa agora está sendo radicalmente revisada por conta do desenvolvimento da situação na Ucrânia e de quais resultados sairão deste conflito. Ao Brasil de Fato, ele observou que, neste contexto, a Turquia faz uso do seu status específico dentro da Aliança do Atlântico Norte para barganhar benefícios estratégicos.
Sharikov observa que a Turquia exerceu um papel muito específico em torno do conflito ucraniano, lembrando que o país promoveu uma rodada de negociações entre as delegações russo-ucranianas em Istambul, repetidamente manifestando a iniciativa de ser um mediador.
Ele destaca que Istambul fornece uma ajuda técnico-militar significativa notável à Ucrânia e, por outro lado, busca “não prejudicar as relações com a Rússia de maneira tão rígida e radical como fazem os países da Europa”.
O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Brancoli, em entrevista ao Brasil de Fato, corrobora com o argumento de que a Turquia, por ser o país da Otan menos vinculado ao Ocidente, vem adotando uma diplomacia ambígua para conquistar o maior número possível de benefícios e de elementos para ganhar poder.
Ele reforça a ambiguidade turca: o país vende drones para a Ucrânia usados contra as tropas russas na guerra ao mesmo tempo que manteve relações abertas com a Rússia, não aderindo aos pacotes de sanções do Ocidente contra Moscou. Vale destacar que a Turquia é um dos maiores destinos do turismo russo e é um país que possui uma dependência energética do país, sendo a Rússia o seu maior fornecedor.
O principal motivo alegado para a Turquia não aceitar a candidatura da Finlândia e da Suécia na Otan diz respeito ao apoio que ambos os países oferecem ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão, o PKK. O grupo luta pela autonomia dos curdos na Turquia e é classificado como organização terrorista por Turquia, EUA e União Europeia.
:: Guerra na Ucrânia: Rússia entre possíveis definições e novas frentes ::
As delegações sueca e finlandesa se reuniram nesta quarta-feira (25) com autoridades turcas para discutir suas diferenças em relação às propostas de adesão à Otan.
Após a reunião, o conselheiro-chefe do presidente da Turquia, Ibrahim Kalyn, disse que, se os temores de Ancara não forem contemplados, não pode haver qualquer processo de adesão da Finlândia e da Suécia à Otan.
"Eles (Suécia e Finlândia) declararam que entendem nossas preocupações. Fornecemos a eles todos os fatos", disse Kalyn em entrevista coletiva após conversas com as delegações dos dois países em Ancara.
Para Pavel Sharikov, a Turquia utiliza o conflito ucraniano para barganhar e garantir os seus próprios interesses. “E se a Turquia está realmente disposta a barganhar, mais cedo ou mais tarde, lhe será oferecido algo com que ela concorde”, afirma.
Ele acrescenta que o entrave da Finlândia e Suécia não está ligado a algum interesse turco em relação à Rússia, sendo “um interesse exclusivamente turco que, nesta questão, convergiu com a posição da Rússia e a questão ainda não está resolvida”.
Já a pesquisadora-sênior para estudos da América do Norte da Academia de Ciências da Rússia, Alexandra Filippenko, declarou ao Brasil de Fato que a Turquia se encontra agora em uma posição muito favorável, na qual ela pode “receber bônus tanto da Rússia, quanto da União Europeia para não ceder tanto a Moscou”.
:: Em discurso, Putin evoca 2ª Guerra para justificar ação na Ucrânia e reforça questão da OTAN ::
“Estando nessa situação favorável, a Turquia lança essa carta sem mostrar que está exclusivamente em apoio a um dos lados. Por isso, resultou que a situação ficou bastante vantajosa para Istambul”, acrescenta.
De acordo com Filippenko, a posição favorável do governo Erdogan é corroborada pela lógica da política interna norte-americana, na qual a administração de Joe Biden, para se contrapor seu predecessor Donald Trump, defende uma unidade sólida do mundo ocidental e dos países da Otan em geral. Por isso, continua a pesquisadora, a Casa Branca não critica tanto a Turquia como poderia criticar se não fosse importante adotar um contraponto à presidência anterior.
“Para a presidência norte-americana, agora é muito importante afirmar que o curso da política que foi adotada - unificação e unidade da Otan, da Europa - é a direção correta. E por isso agora são reduzidas ao mínimo as críticas a qualquer país da aliança, inclusive a Turquia, que exerce uma posição ambígua e que pode bloquear o ingresso de qualquer novo Estado na Otan”, completa.
Otan e o antagonismo irreversível à Rússia
Na última terça-feira (24), o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, manifestou a esperança de que o impasse entre a Turquia e a Aliança do Atlântico Norte em relação à adesão de Finlândia e Suécia será resolvido.
"Não posso dizer quando nem como, mas estamos trabalhando com a Turquia para resolver a questão", disse Stoltenberg durante painel no Fórum Econômico Mundial em Davos.
:: Como a Ucrânia aumentou cinco vezes seu orçamento militar em menos de três meses de guerra ::
O secretário-geral comentou também que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, "cometeu um grande erro estratégico" ao iniciar o conflito na Ucrânia, pois teria facilitado a expansão da Otan para perto das fronteiras russas.
O alargamento da Otan para perto da fronteira com a Rússia sempre foi citada pelo Kremlin como um dos motivos do conflito com a Ucrânia. Antes do início da operação militar no país vizinho, Moscou estabeleceu a não ampliação da Aliança Militar para o Leste da Europa como exigência para as suas garantias de segurança às potências ocidentais.
O pesquisador Pavel Sharikov, por sua vez, afirmou que, em toda a história da Organização, ela só se expandiu e nunca teve recuos. E essa extensão de influência sempre ocorreu justamente na direção do Leste europeu.
“Na situação atual, a Rússia não pode responder com força porque o que observamos, em grande medida, é que a Otan, e cada país membro, empenham grandes esforços para que o conflito não seja vencido pela Rússia. Ao mesmo tempo, nem a Organização, nem seus membros querem entrar diretamente no conflito”, observa.
O cientista político acrescenta que quando o conflito ucraniano terminar, seja qual for o resultado da operação, a Otan vai continuar justificando a sua existência com a necessidade de confrontação com a Rússia.
Edição: Arturo Hartmann