Os líderes de Rússia e Turquia se reuniram mais uma vez, no último 5 de agosto, e reiteraram o gesto de aproximação diplomática em meio ao conflito ucraniano. Em reunião realizada na cidade russa de Sochi, Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan acordaram que parte do pagamento do fornecimento do gás russo para a Turquia será feito em rublos.
Enquanto a União Europeia busca meios de diminuir a dependência do gás russo e conseguir minar a economia através da política de sanções por conta da guerra na Ucrânia, Putin e Erdogan chegaram a um acordo que pode dar uma alternativa a Moscou.
"Estamos falando sobre a transição para as moedas nacionais de forma gradual e, na primeira fase, parte dos suprimentos será paga em rublos russos", disse o vice-primeiro-ministro, Alexander Novak, após a reunião.
No início do encontro, Putin classificou o gasoduto Turkish Stream como uma das artérias mais importantes para abastecer a Europa com gás proveniente da Rússia. De acordo com o presidente russo, os parceiros europeus da região devem agradecer a Ancara pelo abastecimento energético. Atualmente, a Rússia fornece cerca de 26 bilhões de metros cúbicos de gás para a Turquia por ano.
Recep Tayyip Erdogan foi um dos poucos líderes mundiais que visitaram a Rússia após o início do conflito ucraniano, iniciado em 24 de fevereiro.
O estreitamento da relação entre os dois países é visto como pragmaticamente vantajoso para ambos. Se, de um lado, a Turquia é importante no sentido de mostrar que Putin não está isolado na comunidade internacional em meio às sanções do Ocidente, Erdogan ganha ao se afirmar como mediador entre Moscou e Kiev para barganhar seus próprios interesses. Mas a perspectiva de uma aliança dos dois países a longo prazo ainda é uma incógnita.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador do departamento de Teoria dos Estudos Regionais da Universidade Estadual de Linguística de Moscou, Mehmet Emin Iqbal Durre, observou que, apesar de Ancara não aprovar as ações militares da Rússia na Ucrânia, a crise abriu novas possibilidades de articulação econômica para a Turquia.
De acordo com ele, a participação no acordo para a exportação de grãos ucranianos tornou concreto o fato de que o governo de Erdogan exerce hoje um papel de mediador entre a Rússia e o Ocidente.
A Rússia e a Ucrânia assinaram separadamente, por meio da ONU e da Turquia, um acordo sobre a liberação da exportação de grãos ucranianos, bloqueados no Mar Negro desde o começo do conflito na Ucrânia. O acerto foi bem recebido pela comunidade internacional pela expectativa de um alívio nos preços globais de alimentos e por demonstrar que há espaço para a diplomacia durante a crise.
“Se a Turquia não tivesse desempenhado o papel que desempenhou, a situação (dos grãos) permaneceria não resolvida. Essa posição, é claro, traz determinados riscos para a Turquia. Ainda não sabemos como o Ocidente, em particular, a Grã-Bretanha e os EUA, vão reagir a esse papel de mediação”, observou Mehmet Emin Iqbal Durre.
Ele lembra que Ancara desempenhou um papel semelhante quando o Irã sofreu sanções por conta do seu programa nuclear. Segundo o analista, a neutralidade da Turquia funcionou no começo, mas posteriormente alguns bancos turcos ficaram sob sanções dos EUA. "O fato de que o Ocidente ainda não reagiu ao papel de mediação da Turquia não significa que no futuro não haja consequências”, completa.
No entanto, relatos divulgados no começo desta semana pelo Financial Times já dão conta que potências ocidentais ligaram o alarme para a aproximação entre Rússia e Turquia e demonstram incômodo com a liderança de Erdogan na mediação entre Moscou e Kiev.
De acordo com a publicação, seis autoridades ocidentais disseram que estavam preocupadas com a promessa feita pelos líderes turcos e russos de expandir a cooperação em comércio e energia após a reunião de quatro horas de duração em Sochi.
Em possível retaliação contra a ajuda dada à Rússia para contornar as sanções europeias, um funcionário de alto escalão teria afirmado que os países ocidentais poderiam pedir que suas empresas e bancos saíssem da Turquia se Erdogan seguir com as intenções delineadas na reunião com Putin.
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Para o cientista político Ivan Preobrazhenskii, a condição de mediador dá a Erdogan justamente a capacidade de melhorar suas relações com o Ocidente, seriamente prejudicadas hoje em dia. Em entrevista ao Brasil de Fato, o pesquisador afirma que a mediação da Turquia interessa à União Europeia na medida em que o bloco “está interessado no fim da guerra o quanto antes”.
“Se Ancara realmente receber condições de atuar como mediador nessa guerra, ficará em uma situação muito vantajosa porque a União Europeia será obrigada a esquecer toda a rispidez de Erdogan e fazer de conta que a Turquia é seu parceiro mais próximo nos assuntos da Otan. E, com isso, considerando que Erdogan enfrenta uma situação econômica muito difícil, ele pode até contar com alguma espécie de ajuda econômica nesse caso”, afirma.
A condição de mediador também dá ao líder turco a oportunidade de barganhar seus interesses com o Ocidente por conta da sua posição de membro da Otan. Neste sentido, o momento mais emblemático da crise ucraniana foi a ameaça da Turquia de bloquear o ingresso de Finlândia e Suécia na Aliança do Atlântico Norte. A contrapartida turca era ter o apoio da Otan contra as milícias curdas, consideradas como grupos "terroristas" por Ancara.
Esse aspecto também é vantajoso para a Rússia, pois a Turquia é capaz de bloquear a expansão da Aliança para perto das fronteiras russas. Além disso, a boa relação ajuda Moscou a demonstrar que não está isolada na comunidade internacional, apesar das severas sanções do Ocidente.
“Para Vladimir Putin, é muito cômodo conversar com Recep Tayyip Erdogan, eles falam a mesma língua. Ele entende perfeitamente o que esperar do presidente da Turquia. Eles se portam da mesma maneira em diferentes situações críticas e, consequentemente, ele sabe em que situações Erdogan está lhe dizendo mentiras ou falando a verdade”, afirma Ivan Preobrazhenskii.
No entanto, o cientista político destaca que, apesar de haver uma “plena confiança” entre os líderes, eles não devem ser vistos como aliados a longo prazo, e sim como concorrentes.
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Um dos principais motivos é que a Turquia tem ganhado cada vez mais influência na Ásia Central, assinando diversos acordos de parceria econômica com ex-repúblicas soviéticas nos últimos tempos. Preobrazhenskii observa que sob sanções, a Rússia vem se tornando um “parceiro mais incômodo” de fazer negócios, mesmo na região de ex-repúblicas soviéticas, onde tradicionalmente Moscou exerce grande influência, mas que vai sendo difícil mantê-la.
O cientista político lembra que a Rússia e a Turquia possuem muitos pontos de divergência no plano internacional, como a situação na Síria, o conflito entre Armênia e Azerbaijão em Nagorno-Karabakh, e o controle sobre o Mar Negro.
“Eu acho que essas divergências só tendem a aumentar com o fortalecimento de Ancara. Eles devem aumentar a presença na Ásia Central, por exemplo, o que levaria a Rússia a disputar com a Turquia a influência sobre o Cazaquistão”, diz ele.
“Reforço que a Turquia não é um aliado (da Rússia), diferentemente da China, ou da relação que o Kremlin quer construir com a Índia, diferentemente até do Irã. Por isso, eu acho que a Rússia não vê a Turquia como um país aliado no longo prazo. Se Putin considerar isso, seria um erro estratégico”, completa.
*Colaborou Serguei Monin
Edição: Rodrigo Durão Coelho