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Protestos que mudaram a história recente da Rússia completam 10 anos

Manifestações de dezembro de 2011 representaram o maior movimento popular contra o poder de Putin

Rio de Janeiro (RJ) |
Milhares de pessoas tomaram as ruas da Rússia em 2011 e a política do país mudou. - Bogomolov.PL/ Wikimedia Commons

Dez anos atrás, em 4 de dezembro de 2011, foram realizadas as eleições para a Duma estatal (a Câmara baixa do Parlamento russo), nas quais foi anunciada a vitória do partido do governo, Rússia Unida, com 49% dos votos. O processo eleitoral foi marcado por graves denúncias de violações a favor do partido governista. Com o escândalo das fraudes nas eleições, grandes protestos tomaram conta das ruas em todo o país, levando cerca de cem mil pessoas a manifestações em Moscou contra o poder central do Kremlin.

Tendo como principal mote a demanda por eleições justas, as manifestações daquele período catalisaram uma insatisfação mais profunda com a vida política na Rússia. Logo depois, em maio de 2012, Vladimir Putin volta à presidência e inicia uma nova fase na história recente da Rússia. Uma década depois, os resultados daqueles atos, que são considerados os maiores da história recente do país, ainda são motivo de controvérsia.  A reportagem do Brasil de Fato analisa o impacto e o legado da onda de protestos que modificou a vida política na Rússia.

Para o sociólogo Oleg Zhuravlev, que foi um dos autores do livro “Política dos apolíticos”, sobre os movimentos de protesto da Rússia no período 2011-2013, as manifestações iniciaram uma nova era na política russa. Ele afirma que os protestos da Praça Bolotnaya (local dos atos mais numerosos daquele período) resultaram em um certo “movimento ininterrupto de ativismo e de oposição”.

“Existe um paradoxo peculiar. Tem-se a impressão de que os protestos já aconteceram há muito tempo e ficaram esquecidos, mas eles estão esquecidos não é porque eles não foram importantes, mas porque, pelo contrário, eles deram início a uma nova era política na qual hoje nós estamos vivendo [...] Os protestos da Praça Bolotnaya representam um evento-chave na nossa política e justamente por conta dessa importância, tem-se a impressão de que era assim sempre”, argumenta.

Contexto histórico

Para entender os atos de dezembro de 2011, é preciso voltar um pouco na história recente da Rússia. Vladimir Putin ocupou o cargo de presidente de 2000 a 2008, em dois mandatos consecutivos. Como a Constituição russa não permite um terceiro consecutivo, na ocasião, o partido Rússia Unida lançou Dmitry Medvedev como candidato à presidência, e Putin ficou com o cargo de primeiro-ministro. Vale lembrar que o sistema político russo é semipresidencialista, no qual há uma partilha do governo entre o presidente, que atua como chefe de Estado, e o primeiro-ministro que atua como chefe de governo.

Em 24 de setembro de 2011, no congresso do Rússia Unida, foi anunciado que o então primeiro-ministro, Vladimir Putin, concorreria a um novo mandato presidencial. A “dança das cadeiras” no Kremlin foi entendida por parte da população como uma manobra para manter a hegemonia de Putin no poder. As massivas denúncias de violações nas eleições parlamentares em dezembro daquele ano serviram como estopim para as mobilizações contra o governo que se seguiram a partir dali.


O presidente russo, Vladimir Putin, discursa durante cerimônia para receber as credenciais de embaixadores estrangeiros recém-nomeados no Kremlin, em Moscou, em 1º de dezembro de 2021. / GRIGORY SYSOYEV / SPUTNIK / AFP

A jornada de protestos, que teve seu maior pico em 10 de dezembro levando cerca de 100 mil pessoas às ruas da capital russa, repercutiu em atos de oposição ao longo de todo o ano que seguiu. Foi criada uma atmosfera entre manifestantes, políticos, autoridades e especialistas, de que os protestos mudariam o futuro da Rússia. Enquanto uns lutavam pela saída de Vladimir Putin do poder, outros se colocavam a favor de um declínio gradual do domínio hegemônico do Rússia Unida na vida política do país, e outros buscavam simplesmente uma maior voz da população frente ao governo. 

As eleições presidenciais, realizadas em março de 2012, consolidaram a vitória de Putin por 63,6% dos votos. Na véspera da posse, em 6 de maio daquele ano, outro protesto da oposição foi convocado para contestar os resultados das eleições. Este ato terminou com confrontos entre os manifestantes e a polícia, levando a inúmeras detenções e processos legais contra ativistas.

Enquanto apoiadores do governo consideraram que os comícios da oposição ajudaram a consolidar as forças do presidente Vladimir Putin, ativistas consideram que o governo ouviu as ruas, mas não foi ao seu encontro, recrudescendo ainda mais o regime. 

Comitê de organização da oposição

Durante os protestos iniciados em dezembro de 2011, chegou a ser formado um comitê de organização da oposição, que reunia diversas frentes oposicionistas a fim de planejar a jornada de atos e organizar as demandas das ruas. O comitê era formado por políticos de diferentes partidos, movimentos sociais, jornalistas e membros da sociedade civil. Entre estas diferentes vertentes ideológicas, haviam representantes da esquerda, nacionalistas e liberais.

Vale destacar que a noção de “liberal” assume na Rússia uma conotação particular. Além da defesa do livre mercado como signo de liberdade política, ser liberal na Rússia ganhou um sentido mais amplo de se afirmar contra o autoritarismo e contra o governo de Vladimir Putin. O sociólogo Oleg Zhuravlev aponta que “algo entre estes dois entendimentos foi o que consolidou a parcela liberal na Praça Bolotnaya”.

O pesquisador destacou, no entanto, que “se os protestos tinham um aspecto liberal no sentido geral, era mais no sentido contra Putin e não necessariamente formado defensores do livre mercado”.


Manifestantes na Praça Bolotnaya, em 10 de dezembro de 2011. / Leonid Faerberg/ Wikimedia Commons

Uma das lideranças mais proeminentes do comitê da oposição era Ilya Ponamarev, um dos fundadores da Frente de Esquerda e ex-deputado na Duma estatal por dois mandatos. Em entrevista ao Brasil de Fato, o político foi categórico ao dizer que os protestos de 2011 “perderam” e levaram a uma séria reação da parte do governo. De acordo com ele, o principal resultado das manifestações “não foi uma espécie de liberalização do regime, com concessões do governo, mas, pelo contrário, uma pressão generalizada”.

Ponamarev afirmou que neste período iniciou-se “certo afrouxamento da popularidade de Putin”. “Então para corrigir isso, ele incentivou a guerra da Ucrânia em 2014 e a anexação da Crimeia. Isso também foi um efeito do que aconteceu em 2011”, acrescenta.

Em março de 2014, Ponomarev foi o único deputado da Duma que votou contra a anexação da Crimeia pela Rússia. Em seguida, ele teve sua imunidade parlamentar cassada e foi aberto um processo contra ele sobre suposto uso indevido de recursos durante seu trabalho no centro de inovação Skolkovo (apelidado de “vale do silício russo”). Ele decidiu deixar o país e desde então nunca mais voltou para a Rússia. Hoje ele vive em Kiev, capital da Ucrânia.

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Outra figura que participou ativamente dos protestos, considerada na época como das lideranças da oposição, é a jornalista Ksenya Sobchak. Em recente documentário sobre as manifestações de 2011, elaborado pelo canal de Tv “Dozhd”, Sobchak afirma que os protestos deveriam mirar em uma perspectiva reformista do sistema, para que “chegassem no poder pessoas com outros valores, para que houvesse uma liberalização gradual”. De acordo com ela, quando os objetivos foram se radicalizando, os protestos tornaram-se menores, porque as pessoas "não queriam ser levadas a isso”.

“Hoje nos encontramos em uma situação em que não há saída positiva, estamos em um beco sem saída. A revolução não pode ser uma saída positiva. Existe a situação atual em que temos um presidente que enxerga o desenvolvimento do país de um jeito determinado e ou ‘você está aqui ou você vai embora’. Hoje eu acho que a escolha é essa. Hoje no país existem tais regras do jogo, você pode não reconhecê-las, mas aí então você pode acabar na prisão em algum momento”, afirma.

Com uma perspectiva mais positiva em relação aos resultados de 2011, Ilya Ponamarev declarou que era necessário que houvessem as manifestações, mas defendeu que elas fossem mais radicais nos seus objetivos.

“Desde o começo eu defendia que os protestos assumissem um caráter permanente, que eles seguissem o caminho que foi tomado com os protestos de Maidan, na Ucrânia, com acampamento e uma oposição permanente da sociedade em relação ao governo”, afirmou.

Ponamarev observou que uma das lideranças da Frente de Esquerda que fazia parte do comitê conseguiu estabelecer contato com o governo e teve um encontro com o então presidente Dmitry Medvedev. Nesse encontro teria anunciado certas iniciativas de flexibilidade do governo, como uma nova eleição de governadores. “Mas Medvedev já era um presidente de saída do cargo e, como resultado, não era ele que tomava as decisões políticas, mas Putin, e Putin não se reuniu com ninguém."

De acordo com ele, no comitê de organização um papel dominante foi exercido pelos liberais que todo o tempo buscavam contato com o Kremlin e buscavam a possibilidade de chegar a um acordo.

“Então eles eram menos inclinados a brigar e eram mais inclinados a negociar com o poder, o que do meu ponto de vista acabou afundando tudo, pois o governo consegue sentir muito bem a fraqueza e a indisposição de ir até o fim”, diz o ex-congressista.

Edição: Thales Schmidt