Crises globais

Refugiados do Oriente Médio presos nas disputas entre Rússia e União Europeia

Tensão na fronteira Bielorrússia-Polônia envolve cerca de 2 mil pessoas, a maioria vinda de Iraque e Síria

Brasil de Fato | Rio de Janeiro |

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Refugiados se dirigem à fronteira entre Bielorrússia e Polônia, perto da cidade de Kuznica, em 15 de novembro. - Oksana MANCHUK / BELTA / AFP

O aumento da tensão na fronteira entre Bielorrússia e Polônia nas últimas semanas, provocada pela situação de refugiados principalmente vindos do Oriente Médio, revelou novos desdobramentos da disputa geopolítica que envolve Rússia e países da União Europeia (UE). 

Enquanto segue o impasse em relação às cerca de 2 mil pessoas - em sua maioria do Iraque, Afeganistão e Síria - que se encontram em acampamentos perto da fronteira polonesa, Moscou e Bruxelas (capital do Parlamento Europeu) se movimentam para defender seus interesses na região do Leste Europeu.

A UE acusa a Bielorrússia, em conjunto com a Rússia, de instrumentalizar a questão dos refugiados para pressionar países europeus. A Rússia, por sua vez, alega que a crise na fronteira é resultado de políticas intervencionistas da OTAN e da UE. 

O conflito na Ucrânia e o fornecimento do gás russo à Europa são outros exemplos de disputas que tensionam a relação entre as duas partes. 

O fluxo de pessoas que fogem de países arrasados por conflitos e crises no Norte da África e no Oriente Médio rumo à União Europeia se tornou uma constante na última década, tornando-se um dos principais desafios humanitários contemporâneos. 

Os dados oficiais da ACNUR mostram que no final de 2020 haviam 26,4 milhões de refugiados em todo o mundo, sendo que 10% deste total vivia na União Europeia, representando 0,6% da população total do bloco. Contudo, o atual imbróglio na fronteira entre Bielorrússia e Polônia se mostrou particular por incluir a Rússia no debate sobre os êxodos migratórios na Europa.


Refugiados entram em confronto com forças de segurança polonesas na fronteira com a Bielorrússia, na passagem Bruzgi-Kuznica, em novembro de 2021. / Leonid SHCHEGLOV / BELTA / AFP

O destino dessas 2 mil pessoas acoplou-se a uma crise geopolítica no Leste europeu porque está no contexto das eleições presidenciais da Bielorrússia do ano passado. Em 2020, o processo que concedeu um novo mandato ao presidente Alexander Lukashenko gerou enormes protestos no país, entre acusações de fraude por parte da oposição. 

As manifestações foram duramente reprimidas pelas forças de segurança no país, gerando centenas de detenções de manifestantes. Muitos ativistas e políticos deixaram país. A Polônia foi um dos principais destinos deste êxodo. De acordo com o Centro de Direitos Humanos bielorrusso “Viasna”, atualmente existem 882 presos políticos em conexão com os eventos que ocorreram durante e após a campanha presidencial.

As potências europeias não reconheceram a legitimidade do presidente Lukashenko e adotaram sanções contra o governo centrado em Minsk.

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Foi no ano de 2020 que a Bielorrússia facilitou o processo de visto para 76 países, entre eles Síria, Iraque e Afeganistão, locais de origem de grandes fluxos de refugiados. 

Essa política gerou acusações do Conselho Europeu de que Lukashenko estaria provocando uma “instrumentalização dos migrantes para fins políticos”. De acordo com a UE, a orquestração da atual crise migratória seria uma forma de retaliação às sanções europeias.

Cada vez mais enfraquecido internamente e na arena internacional, o presidente Lukashenko tem como seu principal aliado o líder russo Vladimir Putin. Atuando formalmente como um mediador, a Rússia repetidamente negou qualquer participação nos recentes acontecimentos na fronteira entre Bielorrússia e Polônia, mas levantou preocupações com a desestabilização próxima a suas fronteiras.


Vladimir Putin em encontro com Alexander Lukashenko, durante entrevista coletiva em Mosco, em setembro de 2021. / SHAMIL ZHUMATOV / POOL / AFP

O cientista político Pavel Usov, em entrevista ao Brasil de Fato, afirmou que o território de ex-repúblicas soviéticas na Europa é extremamente estratégico para a Rússia, o que traz implicações globais e locais. 

De acordo com ele, do ponto de vista global, o objetivo seria coagir a União Europeia a reformular sua relação com a Rússia, abrindo mão da política de sanções contra Moscou e diminuindo a pressão que começou com a anexação da Crimeia por Moscou em 2014.

O cientista político destacou que Angela Merkel (Alemanha) e Emmanuel Macron (França) já deram declarações oficiais sobre a necessidade de começar um novo diálogo com a Rússia.

"É preciso compreender a psicologia da política externa russa dos últimos anos. Aqui existem dois componentes principais: a volta da Rússia ao grande jogo geopolítico, exercendo influência na arena internacional, na Europa, Ásia, África e Oriente Médio", argumentou. 

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O segundo componente da política externa russa seria um objetivo regional por meio do estabelecimento de um controle político e econômico sobre a Bielorrússia, expandindo a presença estratégica da Rússia no país vizinho. Usov classifica essa atitude como uma espécie de formação de uma "União Soviética 2.0". Neste cenário, o presidente Lukashenko seria um instrumento da política externa da Rússia, ou seja, "um instrumento de ataque híbrido sobre a União Europeia".  

Já a Rússia alega que a raiz do problema migratório na Europa reside na política que os países da OTAN e da União Europeia aplicaram no Oriente Médio e no Norte da África, buscando "impor sua própria interpretação dos valores democráticos", como afirmou o ministro das Relações Exteriores russo Serguei Lavrov. 

Enquanto o lado europeu acusa Moscou e Minsk de realizarem "ataques híbridos" na fronteira com a União Europeia, a Rússia manifesta duras críticas à atuação da OTAN em suas fronteiras ocidentais, tornando a segurança de fronteiras um aspecto central da política externa russa.

‘Linhas vermelhas’ russas

Ao discursar em uma reunião do colegiado do Ministério das Relações Exteriores na quinta-feira, 18 de novembro, o presidente russo Vladimir Putin delineou as prioridades da política externa do país, tecendo duras críticas ao Ocidente.

Segundo ele, “o Ocidente está agravando a situação na região do Leste Europeu” e está encarando com leviandade os alertas da Rússia para que não cruze suas "linhas vermelhas".

O cientista político Alexandre Asafov observou que a atividade da OTAN nas fronteiras da Rússia na região de Kaliningrado e no Mar Negro está aumentando, com exercícios e voos militares de reconhecimento ilegais, além de reagrupamento de batalhões e fortalecimento de suas posições. Ao Brasil de Fato, ele destacou que essas atividades ocorrem no mínimo há 5 anos, portanto, não estão ligadas a quaisquer crises mais recentes. 


Refugiados montam acampamento no posto de fronteira de Bruzgi, do lado bielorrusso da fronteira com a Polônia. / Leonid SHCHEGLOV / BELTA / AFP

"A Rússia não tem relação com a crise migratória na fronteira entre a Europa e Bielorrússia. Moscou é um moderador que, a pedido de Merkel, interviu na situação e colocou as partes à mesa de negociações. As conversas técnicas entre União Europeia e Bielorrússia tiveram início, e isso é mérito da Rússia", destacou. 

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O cientista político e professor do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou, Kirill Koktysh, disse ao Brasil de Fato que a posição da Rússia neste cenário é fundamentalmente "de apoio moral à Bielorrússia e de compartilhamento da posição bielorrussa de que a causa do grande fluxo migratório está ligada à intervenção ocidental no Afeganistão e no Iraque".
 
Na terça-feira, 23 de novembro, a diplomacia polonesa declarou estar disposta a negociar com a Rússia sobre a situação dos refugiados na fronteira. Mas destacou que o futuro das relações entre Bielorrússia e Polônia será discutido com a oposição do país, e não com o atual presidente Alexander Lukashenko.

Para o cientista político Pavel Usov, se o Kremlin (centro de poder russo) não atingir seus interesses, de modo que a Europa restaure suas relações com Moscou e “reconheça a Rússia como pleno parceiro político e não como pária”, o nível dos conflitos diplomático pode ser ampliado e expandido para outras regiões.

“Portanto, eu olho para o ano que vem com alarme, acredito que os conflitos podem tomar outra forma, não tendo mais reversão", completou Usov.

Edição: Arturo Hartmann