Legados soviéticos

Partido "Rússia Unida" celebra 20 anos no poder de olho na renovação da oposição local

Coligação liderada por Putin faz balanço das eleições parlamentares, enquanto Partido Comunista busca consolidar papel

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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O presidente russo, Vladimir Putin, discursa durante uma cerimônia no Kremlin, em Moscou - GRIGORY SYSOYEV / SPUTNIK / AFP

No último sábado (4) foi realizado o congresso do partido Rússia Unida, marcando os 20 anos do surgimento da coligação.

Nas últimas eleições parlamentares, realizadas em setembro de 2021, o partido apoiado pelo presidente Vladimir Putin confirmou uma ampla maioria e o controle do parlamento, a Duma estatal, mas a baixa participação da população no pleito e o crescimento dos números da oposição revelaram um cenário político em mudança no país.



O cientista político e diretor do Centro Russo de Conjuntura Política, Alexei Chesnakov, afirma que o 20º Congresso do Rússia Unida deve ser considerado a partir do resultado das eleições parlamentares de setembro, mas principalmente como uma preparação inicial do partido para a campanha presidencial de 2024. “As decisões de hoje terão, sem dúvida, consequências de longo prazo ", escreveu Chesnakov em seu canal no Telegram.

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Quais ideias políticas o Rússia Unida representa hoje?

O partido Rússia Unida definiu pela primeira vez sua plataforma ideológica em 2009, quando elaborou um documento programático, determinando ser guiado pelo que foi chamado de "conservadorismo russo".

Este conservadorismo foi classificado pela então liderança do Conselho do Rússia Unida como "uma confiança nas tradições espirituais, na grandeza da história e cultura do país, apoio aos valores familiares, fortalecimento das garantias da soberania do Estado e apoio aos pequenos negócios".

No último sábado (4), durante seu discurso no Congresso do partido, o presidente russo Vladimir Putin afirmou que o Rússia Unida contribuiu de forma decisiva para a superação de “riscos sistémicos” que, entre os anos 1990 e início dos 2000, “ameaçavam não só a segurança dos cidadãos, mas também a própria existência da nossa Pátria”.

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“Nos últimos 20 anos, o partido manteve firme e consistentemente uma posição patriótica. E isso se manifestou claramente na adoção de decisões importantes, históricas e transformadoras relacionadas ao fortalecimento da soberania da Rússia, defendendo seus interesses nacionais, melhorando o sistema político, desenvolvendo a economia, desenvolvendo abordagens modernas para resolver problemas sociais e apoiando famílias com crianças”, afirmou o presidente russo.

O sociólogo Oleg Zhuravlev, por sua vez, afirmou ao Brasil de Fato que o partido governante russo desde o seu surgimento foi caracterizado por uma ausência de um programa político concreto, servindo mais como uma coligação de “comando administrativo que executava certas tarefas, mas que nunca teve ideias políticas”.

O pesquisador argumenta, no entanto, que o partido hoje cada vez mais busca solidificar um programa de ideias para buscar se diferenciar de outras coligações. O motivo seria uma resposta, por exemplo, à popularidade do blogueiro oposicionista Aleksei Navalny, que atualmente se encontra preso.

Zhuravlev considera que mesmo tendo popularidade discreta entre a população russa, Navalny conseguiu nos últimos anos criar um “conflito populista” que passou a desagradar o governo.

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“O Rússia Unida quer fazer de conta que esse conflito não existe e tenta ser um partido mais unido do que era antes. Ou seja, não ser apenas a favor de Putin, mas que tenha um programa e tenha ideias. Tal retórica será cada vez mais presente, de forma que o governo possa dizer à oposição: ‘E vocês tem algo a oferecer? Ou vocês apenas são contra Putin? Nós temos programa, e vocês?’. E eu acho que o programa político será um novo instrumento de concentração de poder por parte do Rússia Unida”, afirmou.  

Partido Comunista: radicalizar a oposição ou ser "partido no bolso" do Kremlin?

No que se refere à dinâmica das forças de oposição no cenário político russo hoje, Oleg Zhuravlev destacou que o maior dilema para a emergência de uma oposição concreta à hegemonia do Rússia Unida reside nas escolhas feitas pelo Partido Comunista da Federação Russa (PCRF) daqui para frente.

Apesar de ficar em segundo lugar em todas as eleições presidenciais das últimas duas décadas, o Partido Comunista é visto com desconfiança por outros representantes da oposição, acusado de não oferecer real resistência ao domínio hegemônico do Rússia Unida.

A coligação já foi acusada de manter uma linha de contato direta com a administração presidencial, acatando a pressões do Kremlin para não promover manifestações em regiões do país e não oferecer resistência a projetos do Rússia Unida no parlamento.  

As últimas eleições para a Duma estatal (câmara baixa do parlamento russo), de setembro de 2021, revelaram um crescimento do PCRF, que conquistou 57 assentos no parlamento (18,9%). A Duma é composta por um total de 450 membros, dos quais 326 (49,8%) são da coligação Rússia Unida.

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No entanto, a campanha assinalou uma possibilidade de renovação da esquerda russa com a aparição de novos quadros jovens ganhando notoriedade e votações expressivas em suas regiões, assumindo compromissos com pautas como direitos humanos, liberdade democrática, igualdade social e meio ambiente.   

O nome de maior destaque foi o matemático Mikhail Lobanov, professor universitário de 37 anos, que concorreu pelo Partido Comunista em Moscou, mas de maneira independente, sem se filiar ao partido, se autodenominando socialista democrático e realizando uma bem-sucedida campanha de base contra o candidato pró-Putin e apresentador de TV, Yevgeny Popov.


O candidato de esquerda Mikhail Lobanov discursa durante um protesto em Moscou, um dia após o término da votação parlamentar da Rússia, em 20 de setembro de 2021. / ALEXANDER NEMENOV / AFP

Lobanov estava certo da vitória, mas foi declarado perdedor no pleito após a apuração da votação online, parte do processo eleitoral. O método de votação à distância, que foi adotado pelo governo nestas eleições, foi encarado pela oposição como uma forma de facilitar a falsificação dos resultados.

O relatório "Análise dos resultados da votação eletrônica remota no círculo eleitoral de mandato único N ° 197 de Kuntsevo", da equipe de Lobanov e preparado por um grupo de programadores, estatísticos e especialistas em TI russos que analisam informações de fontes abertas, aponta que o candidato do Rússia Unida, Popov, ganhou graças à manipulação na votação eletrônica.

Após as eleições, o líder do PCRF, Gennady Zyuganov, encontrou o presidente Putin, e mencionou os problemas com a votação eletrônica, reclamou de possíveis falsificações em alguns pontos eleitorais, mas não mencionou os dados da pesquisa. 

Lobanov, por sua vez, convocou manifestações em Moscou, não reconhecendo o resultado anunciado. Dezenas de pessoas receberam intimações, multas e alguns chegaram a ser presos por dias por conta dos protestos realizados em 20 e 25 de setembro.

“Lobanov se classifica como um socialista democrático. Ele e sua equipe consideram que é uma nomenclatura muito importante. Isso significa, por um lado, ser contra ditadura e a favor da democracia e, por outro, diferentemente de muitos liberais russos, ser a favor de políticas de ajuda social e igualdade social”, afirma o sociólogo Oleg Zhuravlev.

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A distinta abordagem de dois representantes proeminentes do partido, de diferentes gerações, simboliza uma realidade do PCFR de ausência de unidade ideológica, reunindo grupos com visões diferentes, desde posições democráticas de esquerda com variado grau de radicalismo a posições conservadoras com tendências stalinistas.

Para Zhuravlev, as disputas internas do PCRF representam o principal dilema da política russa atual, considerando que o segundo partido mais expressivo do país tem apenas duas opções: ou radicaliza a oposição no caminho da renovação de seus quadros, ou “sucumbe totalmente a ser um partido de lealdade” ao Kremlin.

“O que será do Partido Comunista será a questão mais importante da política russa”, completou.  

Edição: Arturo Hartmann