O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse na terça-feira (30) que a Rússia pagará um "alto preço" se realizar uma agressão com o uso de força militar contra a Ucrânia, se referindo às recentes movimentações das tropas russas perto da fronteira ucraniana. Em resposta, o presidente russo Vladimir Putin afirmou na última quarta-feira (1º) que a Aliança do Atlântico Norte ameaça Moscou com o avanço de sua infraestrutura militar em direção às suas fronteiras, ao que a Rússia responde com “medidas técnico-militares adequadas”.
O tom belicoso entre o Kremlin e Otan nesta semana se deve pela intensificação da atividade militar tanto da Rússia quanto da Ucrânia na semana passada, criando uma atmosfera de alarme sobre uma possível ofensiva de Moscou no território ucraniano, país que vive um conflito civil entre o governo apoiado pelo Ocidente e as forças separatistas apoiadas por Moscou. O epicentro do conflito é a região de Donbass, que compreende as cidades de Donetsk e Lugansk, que se autoproclamaram repúblicas independentes, mas não são reconhecidas por Kiev e pela comunidade internacional.
O cientista político Alexander Konkov, em entrevista ao Brasil de Fato, afirmou que o deslocamento das tropas russas perto da fronteira ucraniana é uma movimentação regular dentro do seu território que visa o desenvolvimento de suas forças armadas. Segundo ele, "todo país tem o direito de movimentar as suas tropas dentro de seu território", acrescentando que o que está em jogo não é um conflito russo-ucraniano, mas um conflito civil interno da Ucrânia e o conflito geopolítico entre Rússia e o Ocidente.
Desde 2014 a Ucrânia é um cenário de cabo de guerra geopolítico entre a Rússia e o Ocidente, notadamente os Estados Unidos e a União Europeia, além de viver internamente um conflito civil na região de Donbass. As potências ocidentais acusam Moscou de apoiar as forças separatistas no leste ucraniano. A Rússia, por sua vez, nega ser parte do conflito interno do país vizinho e acusa os países ocidentais de ingerência no Leste europeu.
Dois tratados de paz mediados por Rússia, França e Alemanha — conhecidos como Acordos de Minsk de 2014 e 2015 — encerraram os principais combates, adotando um plano para reintegrar as regiões controladas pelos separatistas com a Ucrânia. Em troca, Kiev precisaria fornecer a essas regiões uma autonomia limitada.
No entanto, a implementação do plano foi paralisada e atualmente cerca de 75 mil combatentes continuam se enfrentando ao longo de uma linha de frente de 450 quilômetros que divide Donbass em dois lados. Também há cerca de 800 mil civis vivendo na linha de fogo e vários milhões mais em áreas cheias de minas e munições não detonadas. O número de vítimas da guerra segue aumentando e já ultrapassa a faixa de 14 mil pessoas.
O cientista político e consultor do Grupo de Crise Internacional, Oleg Ignatov, diz ao Brasil de Fato que as declarações das autoridades políticas russas "parecem ser cada vez mais ameaçadoras", o que não significaria a iminência de um conflito aberto, mas demonstra que a Rússia está insatisfeita com o status quo da segurança regional.
De acordo com o pesquisador, é improvável que esteja nos planos da Rússia realizar uma ofensiva militar direta contra a Ucrânia. Ignatov considera, no entanto, que Moscou faz ameaças de uso da força para levar o Ocidente, sobretudo os EUA, a negociar sobre o que considera como seus interesses relativos a uma nova arquitetura de segurança na região, estabelecendo novas regras, não como um parceiro menor, mas como um ator forte que pode mudar a situação na Eurásia e na Europa.
Ucrânia ajuda a explicar as relações entre Rússia e Ocidente
A Ucrânia vem desempenhando um papel determinante como pivô da deterioração das relações entre a Rússia e o Ocidente desde 2014 e as motivações de natureza geopolítica e econômica têm como pano de fundo a questão identitária do Leste europeu. Dividida entre uma parte do país mais identificada com a Europa ocidental e outra mais ligada à Rússia, no leste do país, a Ucrânia historicamente conseguiu conciliar a sua multiplicidade cultural no que diz respeito à vinculação ou não de sua população às tradições e ao idioma russo.
No entanto, quando em 2014 o então governo de Victor Yanukovich, apoiado pelo Kremlin, recusou um acordo de associação econômica com a União Europeia, eclodiram os protestos em massa na Ucrânia culminando com a derrubada do presidente.
A crise provocou a emergência de movimentos separatistas no leste da Ucrânia que não se sentiram representados pelo novo governo pró-Europa, o que levou Kiev a iniciar uma operação militar na região de Donbass. Alegando motivos humanitários para defender seus cidadãos, após o novo governo ucraniano anunciar a exclusão do idioma russo como uma das línguas oficiais na Ucrânia, a Rússia anexou a república da Crimeia ao seu território após a realização de um referendo na região, em que 96,8% da população local votou pela reintegração à Federação Russa. Os países ocidentais não reconheceram a legitimidade da votação e adotaram sanções contra a Rússia.
O argumento humanitário da Rússia utilizado para anexar a Crimeia ao seu território se estende, guardadas as devidas proporções, para a região de conflito de Donbass, que possui uma composição étnica de cerca de 38% de russos. A região sofre com bloqueios econômicos do governo de Kiev, gerando cortes de energia e dificuldade de deslocamento, além escassez de alimentos e itens básicos. Segundo os dados do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários na Ucrânia, 3,4 milhões de pessoas em ambos os lados da linha de contato em Donbass passam por necessidades humanitárias críticas.
Antiga área de influência do Império Russo e da União Soviética
O cientista político Alexander Konkov afirma que Moscou fornece ajuda humanitária à região de Donbass na medida em que o governo de Kiev restringe o desenvolvimento da região. Para ele, a assistência humanitária russa não tem qualquer ligação com movimentação de tropas ou apoio armado aos separatistas em Donbass.
“Existe uma quantidade enorme de parentes de russos na região, existem ligações colossais e, nesse sentido, na medida em que o conflito se prolonga, essa cooperação humanitária entre Rússia e Donbass cresce, é uma situação normal. A Rússia toma ações ativas de caráter humanitário, direcionadas a apoiar aquelas pessoas que ali vivem, porque de fato o seu próprio Estado, a Ucrânia, não fornece esse apoio. E nesse sentido isso é utilizado, no plano informacional, como algo negativo da parte da Rússia”, argumenta.
Já para o cientista político Oleg Ignatov, a questão étnica é um fato relevante para as ações da Rússia, mas essas seriam mais motivadas por um aspecto estratégico de contenção da influência da Otan no entorno de suas fronteiras. De acordo com o especialista, a lógica de conflito com a Otan para a Rússia é menos militar e mais ligada a fatores históricos e futuros.
“Para a Rússia existe o próprio fato de que ela se encontra sozinha, perdendo sua zona de influência tradicional, o que ela considera como sua zona de influência histórica. Afinal, a Ucrânia é um país eslavo, e a Bielorrússia também é um país eslavo. É claro que para a Rússia a saída dos Estados eslavos em direção ao Ocidente, sua integração à União Europeia e Otan, seria vista como uma espécie de derrota histórica”, afirma.
Segundo Oleg Ignatov, a Rússia não quer ficar sozinha no território pós-soviético cercada de um lado por países que se encontram sob influência da China, da Turquia, do Irã, e do outro lado pelos países da Otan, perdendo a influência de todos os países que em algum momento eram parte do Império Russo, depois da União Soviética.
“É mais um problema de valores e de visão de mundo, e não na esfera da segurança, apesar de que os aspectos de segurança têm seu papel”, acrescenta.
Ao comentar as perspectivas para as relações entre Rússia e o Ocidente, o pesquisador destaca que se o conflito ucraniano não for de alguma forma regulado, a relação entre o Ocidente e a Rússia não melhorará. Para o cientista político, a crise em Donbass é o principal motivo de insegurança na Europa hoje, e, enquanto esse conflito existir, “sempre existirá o risco de guerra”, sobretudo porque “a Rússia não demonstra disposição para alguma espécie de compromisso”.
Edição: Thales Schmidt