O Peru convocou eleições presidenciais para o próximo dia 11 em um contexto de crises sanitária, econômica, política e moral. A indiferença crescente dos peruanos por política abriu caminho para alternativas populistas e discursos conservadores.
Essa é a avaliação de Arturo Maldonado, doutor em Ciência Política pela Universidade de Vanderbilt, nos EUA, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru.
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Em entrevista ao Brasil de Fato, Maldonado analisa como se construiu essa indiferença e como ela pode impactar no momento do voto.
Conforme pesquisa divulgada na última semana pelo Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG), o primeiro colocado Yonhy Lescano tem apenas 15,6% das intenções de voto.
Para Maldonado, o ex-congressista é porta-voz de certa “demagogia” no discurso econômico e se apoia em um discurso anti-establishment, contra as elites do país – o que tende a ser bem recebido em um momento de crise.
O segundo colocado é o ex-goleiro George Forsyth, com 13,1%. Além da narrativa do “outsider”, o candidato aposta em um discurso de cautela e responsabilidade fiscal, dialogando com setores do mercado financeiro e da direita peruana.
Na terceira posição, aparece a candidata de esquerda Verónika Mendoza, com 11,2%. Ela propõe um papel mais preponderante do Estado na economia, mas sua candidatura ainda não “decolou”, na avaliação de Maldonado.
Representante da principal corrente política peruana das últimas décadas, Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori, esbarra em um “teto” de 7% das intenções de voto, o que evidencia uma reconfiguração na correlação de forças no país.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: A Lava Jato provocou impactos políticos significativos no Peru nos últimos cinco anos e contribuiu para que o país chegasse à eleição de 2021 com um cenário de profunda instabilidade. Como os principais candidatos se referem a essa operação? Há algum tipo de crítica aos métodos ou abusos dos investigadores?
Arturo Maldonado: A Lava Jato contribuiu para aprofundar o caos político que vivemos nos últimos anos. Atores políticos de todos os espectros, da esquerda à direita, foram envolvidos.
Não tivemos tempo de fazer uma substituição política. Estamos em uma situação em que não há claridade sobre quais são as alternativas viáveis para a política peruana nestas eleições. As pessoas estão cada vez mais distantes do mundo político.
É preciso dizer que a operação Lava Jato vem perdendo importância nos meios de comunicação e, consequentemente, na eleição. Estamos muito mais concentrados, por exemplo, na pandemia e em temas relacionados, como o escândalo chamado de “VacinaGate” – sobre pessoas que furaram a fila da imunização.
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Um dos acontecimentos vinculados à Lava Jato que impacta na eleição é que, no início de março, o procurador da força-tarefa [José Domingo Perez] apresentou uma acusação formal contra Keiko Fujimori. Ou seja, a denúncia já passou da etapa preparatória, e o caso voltou a ser debatido por estes dias.
Esta candidata manifestou-se dizendo que havia uma intromissão da Justiça na política, e acusou o procurador de ingerência eleitoral, por denunciá-la em meio à campanha.
Então, este é o único caso de crítica pública de uma candidata à Lava Jato.
Se você perguntar às pessoas sobre a imagem pública dos investigadores, verá que eles ainda têm muito respaldo. Porém, cada vez mais se questiona que as acusações vêm demorando muito, o que gera certa dúvida nas pessoas e afeta gradativamente sua credibilidade.
O trabalho dos investigadores depende muito da vontade política do presidente e do procurador da Nação [equivalente ao procurador-geral da República, no Brasil], e isso também coloca dúvidas sobre o futuro. Não sabemos quem será o próximo presidente e que tipo de relação terá com essa equipe.
O descrédito em que a operação caiu no Brasil, de alguma maneira, também produz repercussões, porque as equipes dos dois países têm contato e o trabalho da Lava Jato no Peru depende do que ocorre do lado brasileiro.
Os impactos da Lava Jato e sua repercussão no noticiário fizeram com que os peruanos se interessassem mais por política ou, pelo contrário, alimentaram o sentimento de antipolítica?
Vejo as pessoas cada vez mais indiferentes à política. Antes da campanha e das primeiras pesquisas, pensava que propostas como as de Verónika Mendoza teriam um eco importante junto à população – até porque ela não esteve envolvida em nenhum escândalo da Lava Jato ou de corrupção, de maneira geral.
Verónika Mendoza, desde o início, defende propostas de maior intervenção do Estado na economia, e entendi que a pandemia serviria para mostrar como o desinvestimento em saúde e educação, por exemplo, teve impactos negativos para o país nos últimos anos.
As pesquisas mostram que, do ponto de vista do eleitor, essas propostas não soam tão atrativas, em um contexto em que a população observa a corrupção e a ineficiência do Estado, e se vê sem alternativa.
Tudo isso gera, primeiro, um sentimento de indiferença. Não há uma conexão afetiva entre a população e algum dos candidatos – conexão ideológica, programática, muito menos.
Em segundo lugar, esse contexto abre caminho para as opções populistas, que estão ganhando mais simpatia, segundo indicam as pesquisas.
Entre os candidatos com maior intenção de votos, vemos um ex-goleiro, George Forsyth, um ex-congressista que frequentemente desafia o “establishment”, Yonhy Lescano, e a própria Verónika Mendoza, que estudou fora do país, traz um discurso de renovação e tenta dialogar com a juventude, de costas para a “velha política”.
Podemos dizer que o que une os candidatos favoritos, cada um à sua maneira, é a narrativa do “outsider” – aquele que se vende como novidade, de fora do mundo político? Esse elemento sempre está presente nas eleições peruanas.
O caso de George Forsyth é o mais claro. Esse candidato diz a todo tempo que quem governa o país, desde sempre, é a “mesmocracia”, e que ele seria diferente, porque veio do futebol e praticamente não tem experiência administrativa.
O discurso de Forsyth é moderado, mas ao mesmo tempo se coloca contra certas elites do país, reforçando a ideia do outsider.
No entanto, é curioso como isso aparece, porque se o primeiro colocado nas pesquisas [Lescano] não se encaixa na ideia de outsider, ele aposta no discurso anti-establisment.
Lescano passou 20 anos no Congresso, é membro de um partido tradicional, e o que resta a ele, para se apresentar como alternativa, são as ideias anti-establishment, contra as elites.
Apesar do autoritarismo e das violações de direitos durante a ditadura, nos anos 1990, o fujimorismo era um dos setores mais relevantes da política peruana até poucos anos. Além da Lava Jato, por que esse setor chega tão enfraquecido, a ponto de Keiko Fujimori não figurar entre os favoritos?
Sem dúvidas, ocorreu um processo de erosão no interior do fujimorismo, e a adesão popular a esse grupo já não é a mesma.
Keiko Fujimori conseguiu construir um partido político com uma série de alianças regionais, que conquistou ampla maioria no Congresso em 2016.
Além de seu envolvimento nos escândalos da Lava Jato, hoje no Peru há uma compreensão dos vínculos de Keiko com os poderosos do país, por conta dos financiamentos obscuros de campanha. Tudo isso ajuda a explicar essa erosão.
Imagine que, antes desse processo, se dizia que o fujimorismo tinha, de largada, um piso sólido de 15% do eleitorado peruano, e que a partir daí construía mais adesões. Agora, as pesquisas mostram que Keiko parece ter um teto de 7%.
Ela também é a candidata com maior percentual de rejeição. Então, creio que a distância entre Keiko Fujimori e o eleitorado aumentou muito, e isso tem impacto sobre seu partido também. Eles certamente vão conseguir eleger alguns congressistas, mas certamente o número será significativamente menor que em eleições passadas.
Do ponto de vista econômico, é possível dividir, entre os principais candidatos, quais são os que propõem maior intervenção do Estado na economia, e quais apresentam uma receita de austeridade e corte de gastos?
Sim, é possível. Quase todos os candidatos, de alguma maneira, propõem aumentar o gasto público. É quase uma constante, em todas as candidaturas. Mas muitos deles não explicam como vão financiar suas políticas.
Podemos identificar, por exemplo, que Yonhy Lescano tende a certa demagogia no manejo econômico. Ele fala, sem dúvidas, em uma maior intervenção do Estado na economia, mas mais porque, me parece, isso soa bem junto a seu eleitorado. Não significa que ele não possa mudar os rumos dessa política ao chegar no governo, porque não é algo que ele acredite, realmente.
O caso de Verónika Medoza é diferente. Sua posição sobre o papel do Estado é mais programática. Ela fala muito, por exemplo, que é necessária uma renovação do banco central de reservas, que é um dos pilares da estabilidade macroeconômica no Peru. Há um grande debate sobre isso na campanha.
Há vozes, como Mendoza, que pedem a saída de Julio Velarde, que é a cabeça visível desta organização, para caminhar para uma política monetária mais flexível. Por outro lado, há aqueles que veem a necessidade de preservá-lo.
Em uma entrevista durante a campanha, Verónika Mendoza chegou a dizer que, para ela, não haveria problema emitir mais moeda de forma “inorgânica”, sem o respectivo financiamento. Para isso, precisaria de uma mudança na política monetária.
Entre os candidatos que assumem um discurso de cautela e responsabilidade fiscal, estão George Forsyth e Julio Guzmán [8º colocado na pesquisa do CELAG]. Rafael López Aliaga [7º colocado, mas que já figurou em 1º] é um mistério, porque estaria nesse campo mais “moderado”, mas assume um discurso contra a elite econômica, mesmo sendo membro dessa elite. É uma posição um pouco ambígua e difícil de distinguir.
Para além do tema econômico, os debates morais e a pauta “de costumes” também estão presentes?
As múltiplas crises que estamos vivendo no Peru – sanitária, econômica, política e moral – fizeram disparar nas pessoas uma reação conservadora, baseada no medo. E agora elas tratam de buscar um candidato que ofereça certa estabilidade, mesmo que isso signifique o sacrifício de certas liberdades, com políticas de “mão pesada” contra a delinquência.
Isso também caminha lado a lado com certo conservadorismo, do ponto de vista moral. Um candidato como Rafael López Aliaga, por exemplo, é a encarnação de todos esses medos. Ele está associado a uma tendência muito conservadora, na religião, que promove a luta contra o aborto, contra a suposta “ideologia de gênero”, e todas essas bandeiras.
Esse sentimento é bastante generalizado, e tem a ver com a antipolítica. Até alguns anos atrás, os peruanos assumiam a possibilidade de votar em alguém que “rouba, mas faz obras.” Agora, o sentimento é mais pessimista. As pessoas intuem que os próximos governantes vão roubar e não farão nada pela população.
A experiência dos últimos cinco anos, lamentavelmente, conduz a essa ideia. Foi um quinquênio atravessado por múltiplas crises políticas. Estamos com o quarto presidente em cinco anos, e essa estabilidade traz prejuízos em todos os sentidos.
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Quais são as pautas morais mais presentes nos debates entre os candidatos?
Existem vários temas. O do aborto é um dos mais importantes, porque há posições muito marcadas. Há um movimento feminista forte no Peru, inspirado pelo que ocorreu na Argentina, e logo ocorre também uma reação contrária.
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Também tem sido muito discutido o tema da eutanásia, à luz de um caso emblemático, de Ana Estrada [psicóloga que sofre de uma doença incurável]. Ela conseguiu que o Estado lhe permitisse o direito a uma morte digna. Isso, igualmente, fez disparar reações conservadoras, principalmente de Rafael López Aliaga, Keiko Fujimori e Lescano. Os dois últimos são um pouco mais moderados, mas também têm posições conservadoras sobre o assunto.
Outro tema é o consumo de marijuana [maconha]. Em uma conversa pública no início da campanha, um congressista [Daniel Olivares] disse ao candidato de seu partido, Julio Guzmán, que consome marijuana regularmente. Isso também despertou certo debate sobre a liberação de drogas, e é claro que também vem à tona posições conservadoras dos mesmos candidatos.
Os três temas estão rondando as eleições desde o início: aborto, eutanásia e drogas.
Como a pandemia vem afetando a campanha? O que mudou em relação aos últimos processos eleitorais?
Quase não há campanha nas ruas. Os comícios não estão permitidos, mas os candidatos podem percorrer a cidade em carros, em caravanas.
Reuniões pequenas também estão autorizadas, desde que respeitando o distanciamento social.
Claramente, a campanha mudou diametralmente em relação à última eleição presidencial, de 2016. Para além da pandemia, houve mudanças nas regras eleitorais.
Hoje, os candidatos não podem mais comprar espaços de publicidade nos meios de comunicação. As campanhas [na televisão e no rádio] só ocorrem nos horários determinados pelo Estado, e com patrocínio público.
Na maioria dos países que realizaram eleições durante a pandemia, o índice de abstenção disparou. O Peru tem uma das legislações mais duras contra os cidadãos que não comparecem às urnas, e as pesquisas apontam que, mesmo com toda apatia em relação ao mundo político, a abstenção deve se manter estável. Esse cenário favorece ou prejudica algum dos candidatos?
Neste momento, a vida no Peru praticamente voltou à normalidade, exceto pela obrigatoriedade do uso de máscaras. As restrições que tínhamos um mês atrás foram flexibilizadas, a economia está aberta novamente e as pessoas voltaram às ruas. Em uma economia marcada pela informalidade, como a nossa, isso é lamentavelmente necessário.
Esse alto percentual de pessoas que diz que votará nas eleições de 11 de abril é justamente um reconhecimento de que a dinâmica da vida já não é mais afetada diretamente pela pandemia.
É claro que isso pode mudar de última hora, porque com a economia aberta, a curva de mortes pode crescer outra vez.
Nesse caso, quem deixaria de votar, principalmente, são os setores que não se importariam em pagar multa por abstenção. Ou seja, os setores econômicos mais “acomodados”.
Dentro desses setores, sabemos que Rafael López Aliaga e Lescano têm maior preferência, e eles poderiam sair prejudicados. Isso pode até ser determinante no resultado, já que as margens entre os candidatos são muito pequenas e a eleição está muito equilibrada.
Edição: Rebeca Cavalcante