Enquanto democratas e republicanos brigam e se alternam no controle da presidência, do Senado e da Câmara dos Estados Unidos, bilionários desembolsam verdadeiras fortunas para controlar o quarto poder: a imprensa.
A mercantilização da mídia estadunidense colocou grandes veículos na mão de executivos como Jeff Bezos, que em 2013 assumiu o jornal The Washington Post e seguiu os passos do "xodó" de Wall Street Warren Buffet, que cultiva em seu portfólio diferentes jornais locais.
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Em 2018, foi a vez de outros dois magnatas fazerem o mesmo movimento: Marc Benioff, fundador e CEO da Salesforce, comprou os direitos da Times Magazine, enquanto o investidor Patrick Soon-Shiong abriu a carteira para arrematar o LA Times.
Não é de agora, porém, que a imprensa dos Estados Unidos está à venda. "Essa é uma prática antiga na história americana", explicou ao Brasil de Fato Nolan Higdon, professor de História e de Mídia da Universidade Estadual da Califórnia, East Bay. Higdon é autor dos livros The Anatomy of Fake News (A anatomia das notícias falsas, em português) e United States of Distraction (Estados Unidos da Distração, em português).
"Lá no final do século XIX, na era dourada, muitos barões investiam suas fortunas na compra de redações de jornais. Ao longo de toda a trajetória desse país podemos ver que pessoas em posição de poder mantém uma relação íntima com a indústria midiática", pontua o pesquisador.
Tamanho interesse por veículos de comunicação são facilmente compreendidos, conforme explicou à reportagem o cientista político Mickey Huff.
"É poderoso controlar a narrativa das coisas, a ponto de você controlar a democracia e os desfechos políticos. Se você analisar a propaganda da 1º Guerra, um século atrás, vai entender que foi ali que a elite entendeu que ao controlar a informação, eles controlariam o futuro do país – inclusive político", pontua.
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Ao assumir o controle de grandes veículos de comunicação, empresários passam a operar sob uma lógica mercantilista e partidária. Como resultado, o jornalismo de qualidade dá espaço para reportagens com tons mais ligados ao entretenimento e à notícias enviesadas.
"Hoje em dia, 90% da mídia americana consiste em ir ao Capitólio conversar com um republicano e um democrata e passar o resto do dia comentando o que foi dito ali", afirma Higdon. "E então convidamos professores e estudiosos para avaliar aquela mesma fala, em um modelo raso que é repercutido à exaustão".
Tudo fica ainda mais complicado quando os interesses se misturam. "O Jeff Bezos, dono do Washington Post, é também dono da Amazon, do Whole Foods e tem um contrato de US$ 600 milhões com a CIA [Serviço de Inteligência Estadunidense] para prestar serviço em nuvem", diz Mickey Huff.
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Para o professor, as leis colocadas em prática para tentar limitar os anseios mercantilistas nos meios de comunicação são quase inúteis.
"A mídia dos Estados Unidos é quase integralmente controlada por um punhado de corporações e, por serem uma companhia privada, podem definir algumas de suas práticas e manual de segurança, escapando da Constituição. Por isso o Twitter pode, por exemplo, banir esse ou aquele usuário sem medo de ser punido por isso", avalia o cientista político, se declarando preocupado com a censura digital em vigor.
Ainda de acordo com o docente, esse tipo de cenário é possível em governos neoliberalistas, em que é comum testemunhar a infiltração corporativa em agências reguladoras, mesmo aquelas desenhadas para supostamente defender o interesse público.
"O resultado disso é uma imprensa que trabalha por interesse próprio e, para tentar maximizar seu potencial de receita, abastece uma parcela da população com as notícias que quer, não com as que a audiência precisa ouvir. E isso vale tanto para veículos mais alinhados à esquerda, quanto à direita", critica Higdon.
Nesse contexto, chega sem surpresa pesquisa da agência Gallup, que mostrou que um número recorde de americanos não confia em nada na imprensa local. Cerca de 33% dos entrevistados desaprovam os meios de comunicação local, uma alta de 5 pontos em comparação a 2019.
Financiamento
Para os estudiosos, a raiz dessa problematização está no financiamento do jornalismo. Como boa parte das pessoas se recusa a pagar pelas matérias que leem ou assistem, o jornalismo, que custa caro, se vê obrigado a recorrer à publicidade e outros interesses para sobreviver.
Modelos como o da BBC, em que a contribuição popular é obrigatória, poderia ser um caminho a trilhar, mas os professores acreditam que não há nada no governo atual dos Estados Unidos, sob a caneta de Joe Biden, que indique que algo nesse sentido possa acontecer.
"A BBC tem um interessante modelo de negócio e desempenha um bom jornalismo, mas ainda apresenta o mundo sob a lógica ocidental e adota, por vezes, a retórica anti-Rússia e anti-China que vemos tanto por aí", analisa o cientista político Mickey Huff.
Ter acesso apenas a opiniões e fatos partidários é uma ameaça à democracia global e manter uma dieta variada e saudável de consumo de notícias é tão urgente quanto a dieta de alimentos, observa o pesquisador.
"Se estamos nos abastecendo de informação como de comida, então diria que nosso cardápio é composto por besteiras. Precisamos 'digerir' notícias mais variadas e de fontes confiáveis, para que tenhamos todos os ingredientes e vitaminas necessárias para exercitar nosso músculo democrático".
Edição: Marina Duarte de Souza