O mundo vive um grande incêndio e não o estamos apagando, afirma a popular ativista Naomi Klein (Montreal, 1970) em seu novo livro “En llamas” (Paidós). Para ela, no meio do fogo, seguimos presos a todos os tipos de telas e fazendo selfies como se não vivêssemos em meio à sexta grande extinção e como se a emergência climática não pudesse tirar nossas vidas.
Autora de “Sem logo” e “A doutrina do choque”, Klein propõe um "Novo Acordo Verde", uma mudança tão copernicana como a de Roosevelt após a Grande Depressão, mas verde e inclusiva para todos.
A entrevista é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, em 18 de fevereiro deste ano. A tradução é do Cepat.
Quem foi o ganhador do choque do coronavírus?
Os bilionários das empresas tecnológicas. Chegaram a esta pandemia obscenamente ricos e se aproveitaram extraordinariamente. Jeff Bezos [CEO da Amazon] é o que mais [lucrou], e o Google realizou enormes avanços em nossas escolas. É a herança do neoliberalismo. O Estado estava tão frágil antes da crise que a tornou pior e mortal, com hospitais e serviços sociais já colapsados previamente e com a capacidade de produzir vacinas dentro de nossos países erodida. E por essa fragilidade muitas empresas tecnológicas puderam entrar em cena, uma privatização pela porta dos fundos.
O Vale do Silício é, então, o grande ganhador?
E as farmacêuticas. Conseguiram um grande negócio, bilhões em dinheiro público para pesquisar e desenvolver vacinas, mas embora o público tenha pago por elas, não as possui, estão protegidas pela propriedade intelectual. Não faz sentido. A razão de existir patentes é pelo investimento que as empresas fazem, mas não foram elas que fizeram, mas nós. É a mesma lógica neoliberal que rejeita reivindicar direitos públicos sobre o que é essencial para manter as pessoas vivas.
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Essa fragilidade do Estado faz com que o Ocidente administre pior a crise do que outros lugares?
Os piores surtos tendem a ocorrer nos setores mais desregulamentados, onde muitos trabalhadores precários sofriam abusos, em granjas ou depósitos da Amazon. A isto se soma o corte em hospitais públicos em nome da eficiência, pois cada leito vazio era visto como um fracasso. Houve exceções como a Nova Zelândia, que decidiu desobedecer a lógica neoliberal e cuidar das pessoas.
Nos Estados Unidos, não. E isso alimentou a reação violenta, que tem a ver com as companhias tecnológicas e a desinformação viral, mas que atingiu esse volume porque as pessoas se sentiam descartadas e há uma compreensível suspeita sobre as grandes companhias e os bilionários. Tudo isto criou essa sopa tóxica em que, nos Estados Unidos, um número incrível de pessoas não acredita que a Covid seja real, mas uma conspiração de Bill Gates, e acredita na conspiração QAnon e que as eleições foram roubadas. Uma amputação total da realidade.
Qual a sua opinião sobre a nova normalidade?
Nossa normalidade já era uma crise. Por que iríamos querer voltar a isso? Dá ânimo ouvir Joe Biden falar em não voltar à normalidade e usar esta crise como um catalizador para transformar, dá ânimo que fale que não existe somente uma crise de saúde pública, mas também climática, de desigualdade econômica e de injustiça racial.
O trabalho que fizemos nas décadas passadas, formulando como poderia ser a economia do futuro, era sobre como resolver múltiplos problemas ao mesmo tempo. Reconhecer que estamos em crises sobrepostas: devemos reduzir as emissões, lutar contra o racismo sistêmico e fechar a lacuna da desigualdade, tudo ao mesmo tempo. Por que voltar à crise de antes da crise?
Disse que o capitalismo não serve contra a crise climática, que é preciso mudar o sistema operacional.
A mudança não será trazida pelo mercado ou pelos bilionários. Bill Gates lança um livro esta semana, vai nos salvar. Nem com boas intenções funcionará, a mudança de sistema é tão ameaçadora para os que se beneficiam, que tentarão mudar sem mudar, isso é o que os leva a ideias como a geoengenharia ou a energia nuclear em grande escala. Com o capitalismo há um choque entre a necessidade de um crescimento econômico sem fim e a crise ecológica, da qual o clima é uma parte.
Nosso esgotamento do mundo natural é a crise central e precisamos de uma economia muito mais atenciosa, que comece perguntando o que é necessário para ter uma boa vida, respeitando os ciclos de regeneração do planeta. Como garantimos que todos tenham o suficiente dentro dos limites do planeta e construímos a partir daí. É uma pergunta diferente de como gerar crescimento econômico no próximo trimestre. Não digo que nisto não exista lugar para os mercados, mas não o podem guiar.
O que seria o Green New Deal (Novo Acordo Verde)? Envolve muitos sacrifícios?
Os princípios básicos de qualquer Green New Deal supõem seguir a ciência climática para que o aquecimento do planeta não ultrapasse 1,5 grau. E que seja guiado pela justiça: que as pessoas que fizeram menos para criar esta crise e estão na linha de frente de seus efeitos sejam as primeiras a receber apoio para a transição, tanto dentro dos países ricos como no que os países ricos devem aos do Sul.
Outros princípios são que os trabalhadores em setores de alto carbono não sejam deixados para trás. E ver em que áreas podemos nos permitir ter abundância. Não no consumo esbanjador, mas, sim, em áreas onde hoje há escassez: saúde, cuidado do lar, de crianças, de idosos, um setor baixo em carbono.
Devemos colocar a energia da recuperação pós-covid não em um, mas em milhares de Green New Deals em cada setor, que os especialistas de cada área projetem o seu. Já conseguimos uma grande vitória: Biden, que não é um radical, soa agora como um militante do movimento Sunrise. É a ideia de que necessitamos de uma resposta contra a mudança climática que tenha justiça social, crie trabalhos, repare injustiças e não diga às pessoas que precisam escolher entre alimentar suas famílias ou se preocupar com o meio ambiente.
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É otimista em relação a Biden.
Não, em relação a nós. Ele foi político a vida toda e durou porque sabia qual vento soprava em cada momento. No neoliberalismo, ia com ele. Agora, reformula-se como o "novo Roosevelt", não por ele, mas pelas forças que o empurram. Se ele pode mudar, qualquer um pode.
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Trump seria presidente sem a pandemia?
É um pensamento terrível, mas provavelmente sim. Sua época foi de incansável vandalismo. A imagem de seus seguidores no Capitólio saqueando mostrou o que foram os anos de Trump: saquear o Estado à luz do dia.