Entrevista

Cultura do cancelamento: para pesquisador, precisamos lidar com as falhas das pessoas

Professor de Comunicação da UFPE, Thiago Soares comenta os impactos do "cancelamento" e seus reflexos na sociedade

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Comunicador e pesquisador afirma que o cancelamento faz parte de uma lógica de digitalização da vida - Divulgação

Nos últimos anos, o termo "cancelado" tem tomado conta dos debates virtuais. O "cancelamento" acontece quando alguém na internet é massivamente criticado por uma contradição ou um posicionamento preconceituoso.

O risco de ser punido publicamente tem mexido com a vida de famosos e também de pessoas comuns na internet.

Para tentar entender esse fenômeno, sua complexidade e impactos na vida dentro e fora das redes, o Brasil de Fato Pernambuco conversou com Thiago Soares, pesquisador e professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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Confira a entrevista a seguir:

Brasil de Fato Pernambuco: Qual o impacto do cancelamento na nossa sociedade?

Thiago Soares: Primeiro, é interessante pensar como surge essa cultura do cancelamento, que é um termo que se popularizou muito diante desse quadro de hiperconexão. Se a gente pensar nos últimos dez anos, temos acentuado a nossa dinâmica de conexão por meio das redes sociais digitais, dos aplicativos. Então a nossa vida está passando por essa dinâmica. É uma lógica de digitalização da vida, das nossas práticas cotidianas, e essa vida em rede é extremamente vigiada.

O que a internet traz de liberdade e possibilidades, de inteligência coletiva, ela também traz uma dinâmica de extrema vigilância em relação aos nossos atos. O que a gente está chamando de "cancelamento", na verdade, é um processo intenso de julgamento da vida do outro, fazendo com que a gente se mobilize, porque o cancelamento envolve uma certa mobilização. Como a gente está vivendo em rede, a gente se articula com outras pessoas para cancelar o outro que a gente julga ter uma atitude errada. 

Essa intensidade que vivemos nas redes sociais está transformando a nossa própria vivência no tecido social e, obviamente, a gente sabe que isso tem impactos psicológicos que são muito evidentes: ansiedade, depressão, medo da vida em sociedade, do julgamento e até mesmo do linchamento virtual, da depreciação da reputação alheia. Isso entra em uma esfera jurídica. Isso pode chegar a outro tópico, que é a judicialização da vida, que é o que pode acontecer de forma muito evidente diante dessa lógica. 

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De que forma essa cultura do cancelamento se aprofunda nesse momento em que as pessoas estão ainda mais conectadas em casa e o contato presencial é reduzido?

Mesmo depois da pandemia, acho que muitas coisas não vão voltar em relação aos hábitos, o que tende a intensificar essa relação com a hiperconexão. Nesse sentido, é interessante observar os fenômenos midiáticos. O Big Brother Brasil é um reality show que está pautando as questões em torno da cultura do cancelamento, e eu estou achando interessante, porque na ultima edição havia toda uma construção em torno do ativismo negro, LGBT, apontando pra uma validação desse ativismo. Agora nós vemos os excessos desse ativismo, quando a gente vê figuras como Lumena, Karol Conká, que são mulheres negras com um discurso de ativismo negro como pauta, mas a gente vê também o excesso e as contradições desse ativismo.

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Nenhum sujeito é totalmente racional e controlado. Todos nós falhamos, erramos, provocamos excessos, enfim... O interessante é que, nessa vida conectada, os produtos midiáticos como filmes, novelas, reality shows, eles vão tematizar essa dinâmica do cancelamento e a complexidade dos sujeitos, então acho que isso vai fazer com que a gente olhe pra isso.

É importante olhar para os objetos, para a vida e para o outro porque não vamos viver uma vida sem conexão. Precisamos aprender a lidar com as falhas do ser humano. E, quanto mais a gente aprender e quanto menos a gente cancelar, entender que elas podem mudar, a gente vai ter uma dinâmica de convivência mais saudável e menos polarizada. A cultura do cancelamento é uma cultura de polarização, bom e mal, certo e errado, e tudo isso é muito nocivo para nossa vida social.

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Existe uma associação entre o cancelamento e o bullying? O cancelamento é associado a essa esfera virtual, mas queria saber qual a diferença entre eles.

O bullying é um gesto depreciativo que aponta uma certa fragilidade de uma pessoa. Se faz bullying porque a pessoa é gorda, negra, gay... A cultura do cancelamento me parece ter um elemento que pode ser associado ao bullying, mas ela tem uma dinâmica de uma convocação de julgamento moral do outro. O cancelamento não é tanto em relação a uma característica física, como é o bullying. Ele é uma questão moral, não está na característica do sujeito, mas por ir para a esfera moral, ainda mais sutil. Você pode se mobilizar para cancelar uma pessoa quando ela não tem nenhuma culpa, na verdade. 

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De que forma esse comportamento define a sociedade que está sendo criada no mundo virtual?

A dinâmica do cancelamento envolve essa dimensão de articulação e também performática. Essa dimensão é enfatizada porque tanto nós como os outros estamos constantemente, diariamente, cotidianamente performando as nossas vidas nas redes, e essa dinâmica do cancelamento tem a ver com essa esfera de intensa performatização. A gente está se olhando o tempo todo, abrindo nossa vida, então tem essa questão da intimidade que está mudando a nossa própria relação com o que é íntimo, privado e público. 

A gente coloca a nossa esfera privada na pública de maneira muito intensa, e esses elementos se atrelam a essa performatização, o julgamento e a mobilização. O que eu acho é que a cultura do cancelamento se atenta a um traço, a um elemento. A gente está tirando a dinâmica da vida. O sujeito é complexo. Ninguém é bom ou mau o tempo inteiro. A psicanálise desde o final do século 19, com Freud, com Jung, ela já nos mostra que os sujeitos são complexos. A gente erra e acerta, essas coisas se agenciam o tempo inteiro. Quando tem um cancelamento em torno de um ato de uma pessoa se está tirando a complexidade que aquela pessoa tem.

A criança é quem acha que o mundo é dividido entre bem e mal, heróis e vilões. E quando a gente amadurece, a gente percebe que a vida dos sujeitos tem muito mais nuances. Isso é muito perigoso, porque cria uma falsa ideia de que existe uma racionalidade o tempo inteiro em torno do sujeito, e nós não somos racionais o tempo inteiro. Ao contrário, o que faz com que o ser humano seja humano é exatamente a capacidade de falha dele, e todos nós estamos aptos a falhar. Inevitavelmente, alguma hora vamos cometer alguma falha, a gente não pode ser julgado por essa falha.

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Rodrigo Durão Coelho e Vinícius Sobreira