Entrevista

Máquina pública do Equador é usada contra candidato de Rafael Correa, diz analista

Para Andrea Ávila, grupo ligado a governo tenta favorecer banqueiro Guillermo Lasso no segundo turno contra Andrés Arauz

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Previsto para 11 de abril, segundo turno deverá ter equilibro de votos entre Andrés Arauz, apoiado por Rafael Correa, e o banqueiro Guillermo Lasso, apoiado pelo atual governo de direita - Cristina Vega RHOR / AFP

O Conselho Nacional Eleitoral do Equador (CNE) confirmou esta semana que os candidatos Andrés Arauz (União pela Esperança), apoiado pelo ex-presidente Rafael Correa, e o banqueiro Guillermo Lasso (Criando Oportunidades) disputarão o segundo turno das eleições presidenciais em 11 de abril.

Com 32,72% dos votos, Arauz aposta todas as fichas no legado da chamada Revolução Cidadã, processo liderado por Correa que tirou tirou 2 milhões de pessoas da extrema pobreza em uma década.

Guillermo Lasso, que fez 19,74%, tem um plano de governo neoliberal, baseado na ideia de enxugamento da máquina pública, e avançou ao segundo turno com margem apertada. O banqueiro e seu partido, Criando Oportunidades, participaram ativamente do governo do atual presidente Lenín Moreno, que chega ao fim do mandato com pouco mais de 4,1% de credibilidade junto à população equatoriana.

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O primeiro turno foi realizado em 7 de fevereiro, com todas as medidas de biossegurança necessárias para evitar a contaminação pelo novo coronavírus. O segundo turno está previsto para 11 de abril.

As preocupações sobre o processo eleitoral não se restringem à pandemia.

“O que está acontecendo, que é absolutamente extraordinário em relação às outras eleições, é um nível altíssimo de ingerência, e tudo que vem sendo feito para que a candidatura que representa o correísmo não possa participar”, afirma a analista equatoriana Andrea Ávila, comunicadora e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Em entrevista ao Brasil de Fato, ela também analisou possíveis tendências eleitorais dos apoiadores do candidato indígena Yaku Pérez (Pachakutik) e de Xavier Hervas (Esquerda Democrática). Eles somaram 19,38% e 15,71% dos votos no primeiro turno, respectivamente, e podem ser determinantes para o resultado final.

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Partido ligado a grupos indígenas

O partido Pachakutik, de Pérez, votou a favor de uma série de medidas neoliberais do governo Moreno no Legislativo e ainda não declarou apoio a nenhum dos candidatos no segundo turno.

A legenda foi criada em 1995 pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), maior organização indígena do país. No entanto, as sinalizações de Pérez à direita, antes e durante a campanha, fizeram com que ele perdesse o apoio da própria Confederação, tornando a situação ainda mais indefinida.

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Desconfiança sobre OEA

De volta ao tema das ingerências, Ávila afirma que a população está vigilante em relação ao papel da Organização dos Estados Americanos (OEA), protagonista do golpe de Estado na Bolívia em 2019.

“Não podemos confiar na OEA. Sabemos quem a lidera, sabemos o que fizeram na Bolívia, e é claro que há temor. Então, estamos muito atentos”, disse.

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Confira entrevista com Andrea Ávila:

Brasil de Fato: Para além da pandemia de covid-19, o que diferencia esta eleição presidencial no Equador das anteriores?

Andrea Ávila Jácome: Estamos, de fato, em uma situação mundial extraordinária, que impõe uma série de cuidados para votar. Por conta da pandemia, parte da população acreditou que os níveis de abstenção no 1º turno seriam maiores do que nos outros anos. Porém, o percentual foi muito semelhante.

O que está acontecendo, que é absolutamente extraordinário em relação às outras eleições, é um nível altíssimo de ingerência, e tudo que vem sendo feito para que a candidatura que representa o correísmo não possa participar.

A agilidade da sentença, em um caso claríssimo de perseguição política, para que o ex-presidente não pudesse ser candidato à presidência ou vice-presidência, é um dos exemplos. Em seguida, houve várias interferências e denúncias para que a candidatura do binômio Andrés Arauz e Carlos Rabascall [apoiados por Correa] não fosse aceita.

É algo que nunca havíamos visto antes: todo o aparato do Estado disposto a boicotar a candidatura de um movimento político.

Foram meses de incerteza em que não se sabia se o correísmo teria ou não candidato. Tudo isso em paralelo à postura dos grandes meios de comunicação, que defendiam que a candidatura fosse anulada, com recursos anticonstitucionais e mesmo com uso da força.

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Quando você menciona a ingerência de “todo o aparato estatal”, podemos supor que são ações orquestradas pelo atual presidente Lenín Moreno?

Houve ingerência de vários partidos, que expunham suas demandas ao Conselho Nacional Eleitoral [CNE]. Como a estrutura desse conselho é muito afim ao governo, qualquer pedido que chegava, mesmo que incoerente, era aceito.

Apesar de toda a pressão, ao final prevaleceu a sensatez de três conselheiros que reconheceram que aquelas demandas para impedir a candidatura correísta não tinham pé nem cabeça.


Apoio do ex-presidente Correa é o principal trunfo de Andrés Arauz / Rodrigo Buendía / AFP

Em meio a essas ingerências, precisamos lembrar das acusações sem provas de que Arauz estaria recebendo dinheiro do exterior, especificamente da guerrilha, por meio do ELN [Exército de Libertação Nacional, da Colômbia].

Circulou um vídeo claramente falso sobre, e as acusações foram feitas por meios de comunicação dirigido por pessoas que já foram sancionadas por construir notícias falsas ou por difundir inadequadamente opiniões públicas.

Nesse sentido, não é a primeira vez. Em outras eleições, já acusaram as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] de financiar a campanha de Correa, e foi preciso recorrer à OEA [Organização dos Estados Americanos] para esclarecer o caso.

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Apoiadores do candidato que ficou em 3º lugar no primeiro turno, Yaku Pérez, pediram a recontagem dos votos, porque a diferença para o candidato Guillermo Lasso foi de menos de 34 mil votos. Há um clima de desconfiança em relação ao CNE, não apenas por parte desse grupo, mas também da esquerda?

Nesse caso, parece ter havido um erro de princípio. Se há um empate técnico no segundo lugar, o mais adequado seria reconhecer isso até que o resultado fosse checado.

A presidenta do CNE [Diana Atamaint] chegou a dizer que Yaku Pérez havia ficado em segundo, com Guillermo Lasso logo atrás. Porém, havia muitas atas com inconsistência, inclusive em algumas das províncias mais povoadas.

É fácil falar em fraude, mas a meu ver é um pouco infantil, politicamente, com as evidências que temos até o momento. Faz lembrar Donald Trump, que, quando não gostou do resultado da eleição, começou a falar em fraude.

Uma suspeita de fraude na contagem precisa ser demonstrada. No entanto, foi um erro não esclarecer essa situação desde o começo, porque se construiu um ambiente de que Yaku Pérez iria ao segundo turno, e este passou a protestar – como se a eleição tivesse sido roubada.

Dentro da legalidade, se há atas com inconsistência, é claro que isso deve ser revisado. Porém, o que vimos, em rede nacional, foram conversas para que Lasso e Pérez chegassem a um acordo. Isso não tem nenhum respaldo jurídico. Era um acordo entre privados, como se eles pudessem decidir o que era “melhor para a pátria”.

Passaram-se os dias, e vários juristas se pronunciaram dizendo que aquilo era totalmente improcedente, que a democracia não permite recontar 100% das atas de uma província. Isso custa muito dinheiro para o país, além de toda a espera pelos resultados.

Vale lembrar que o atraso também se deve a uma questão técnica, da pandemia. Nas eleições anteriores, sempre havia dez mesas para recontagem dos votos. Desta vez, havia apenas sete.

Enfim, em meio à revisão das atas com inconsistência, o que é grave é o manejo político que constrói e espalha desinformação. Se eu digo que há 50 mil atas com inconsistência, a população entende que houve fraude, e não um problema técnico, de escaneamento.

Isso gera uma sensação de fraude, e o mais curioso é que se construiu uma narrativa de que essa fraude contra Yaku Pérez beneficiaria o correísmo. Não faz o menor sentido.

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Guillermo Lasso não seria o beneficiário mais óbvio de uma suposta fraude?

Sim. Mas o que essas pessoas dizem é que Yaku seria um adversário mais forte contra Arauz, e por isso sua derrota no primeiro turno seria conveniente ao correísmo.

Essa narrativa é estimulada pelos meios de comunicação corporativos, mas também por políticos, como o próprio Yaku Pérez. Ele chegou a dizer que o correísmo teria uma espécie de “controle remoto” para coordenar as ações durante a eleição.

É inconcebível que um candidato tenha esse tipo de argumento, quando dois conselheiros do seu partido integram o CNE.

Você concorda que, no segundo turno, Pérez seria um candidato mais forte do que Lasso?

Qualquer um deles seria igualmente difícil para Arauz, porque se consolidou em vários setores um voto “anticorreísta”, não importa quem seja o outro candidato.

Fenômeno semelhante ocorreu no Brasil, na Bolívia, na Argentina: o mesmo discurso, vindo inclusive de forças que se apresentam como progressistas.

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O segundo turno será realizado apenas em abril. Esse período longo de campanha deve alavancar ainda mais o anticorreísmo? Você teme novas ingerências contra a candidatura de Arauz na reta final?

O anticorreísmo será um dos fatores desse segundo turno, definitivamente. Para responder essa pergunta, preciso recuperar um histórico das eleições equatorianas, que é diferente de muitos outros lugares. Aqui, historicamente, quem faz campanha suja, com manipulação de informação, não consegue bons resultados. É como um bumerangue.

Hoje vivemos um momento diferente, em que notícias falsas se espalham como nunca e as pessoas acreditam muito facilmente no que recebem. Cabe aos candidatos um trabalho árduo, para desmentir tudo isso.

Sabemos que haverá muitas notícias falsas no segundo turno, e o principal alvo será Arauz, definitivamente.

Até algumas semanas atrás, a principal crítica à sua candidatura é que as propostas seriam populistas, sem viabilidade técnica. Vários analistas demonstraram o contrário, especialmente sobre a proposta de garantir auxílio de mil dólares a famílias diretamente impactadas pela pandemia.

Inicialmente, essa medida foi tratada como populista, mas logo se demonstrou que é um dos caminhos para se reativar a economia. Não é apenas uma proposta técnica, mas absolutamente necessária, que foi implementada em diferentes medidas em muitos países, incluindo os Estados Unidos.

Do outro lado, circula a informação de que Jaime Durán Barba, um dos responsáveis pelas campanhas de Macri na Argentina, está assessorando Lasso no segundo turno. Ele é um especialista em campanhas “ocultas”, com chamadas telefônicas, e o avanço da investigação sobre o financiamento da campanha de Arauz também deve provocar algum ruído.

De qualquer forma, é uma campanha que exigirá inteligência e precisará ser levada à rua, aos militantes. E a esquerda, nesse sentido, sai na frente, porque construiu ao longo dos anos uma base ativa, comprometida, disposta a tudo.

Outro fator que favorece o correísmo é a comparação “antes e depois” [dos governos Rafael Correa], sobretudo longe de Quito. O investimento público, a garantia de associação a todos os trabalhadores, os avanços para redução da desigualdade de oportunidades. Era um processo que estava apenas no começo, claro, mas que já se notava no dia a dia.

Isso pode até soar populista, mas é real, e as pessoas não esquecem.

Viajei por províncias da costa equatoriana na campanha e percebi isso, entre os idosos, particularmente, de maneira muito clara.

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Os eleitores de Xavier Hervas certamente serão decisivos no resultado final. Qual a tendência desses eleitores no segundo turno?

A reta final de campanha exigirá muita inteligência e capacidade de leitura para conquistar os votos que faltam. Não se pode cair em provocações, e principalmente não se pode menosprezar nem ao adversário nem aos eleitores desse adversário.

Muitos eleitores não queriam essa dicotomia, essa polaridade entre correísmo e “lassismo”, então buscaram uma terceira opção: a social-democracia de Xavier Hervas, do partido Esquerda Democrática.

Os votos de Yaku Pérez, em geral, foram de pessoas que um dia votaram por Correa e hoje se consideram descontentes com o correísmo.

Não são votos que se conquistarão facilmente. Acredito que esse processo dependerá de acordos, da incorporação de certos temas na campanha.

Arauz tem a vantagem de haver percorrido o país inteiro, enquanto Lasso está doente e não pode fazê-lo. Então, precisará apelar para a campanha digital, o que certamente será um grande desafio.

Outra questão é que, por muitos anos, a base indígena foi entendida como parte da esquerda, e hoje vemos também há uma tendência à direita. É bem possível que, no segundo turno, prevaleça a ideia de “nem correísmo nem lassismo”.

É preciso lembrar que o correísmo cometeu muitos erros em não considerar certos temas caros ao movimento indígena. E este, da mesma forma, muitas vezes colocou suas demandas acima do interesse do país, ou do Estado como um todo. É preciso dizer também que isso está mudando, com as novas gerações.


Contagem de votos em Cuenca, no Equador / Cristina Vega RHOR / AFP

Os protestos de 2019, que tiveram um papel muito importante e sofreram forte repressão, foram convocadas pelo movimento indígena. Então, é possível dizer que a postura atual do movimento indígena é muito mais afim ao binômio Arauz-Rabascall que a Lasso. No entanto, as teses econômicas de Yaku Pérez surpreenderam por seu alto componente neoliberal, e isso torna a situação indefinida.

Dentre os votantes de Pérez, também deve haver um percentual que votará nulo. Essa foi uma posição histórica da esquerda – votar nulo quando há dois candidatos de direita – e pode ser repetida desta vez, em um contexto diferente.

Enfim, o voto anticorreísta é fixo. Os votos de Hervas devem caminhar mais à direita, os de Pérez mais à esquerda, com algumas variações, mas o cenário não está definido. Depende muito de como será conduzida a campanha.

Considerando o golpe de novembro 2019 na Bolívia e suas consequências, é possível prever que haverá ingerências da OEA no processo eleitoral equatoriano?

Não podemos confiar na OEA. Sabemos quem a lidera, sabemos o que fizeram na Bolívia, e é claro que há temor. Estamos muito atentos, porque sempre há esse risco.

Não podemos descartar nenhum tipo de ação nesse sentido. Eu sigo confiando no papel da militância para reverter qualquer interferência.

Por enquanto, a postura da OEA é de cautela. Talvez porque se saíram terrivelmente mal das eleições bolivianas.

O certo é que não confiamos nesse órgão, de maneira nenhuma, e continuaremos vigilantes.

Quais serão os desafios do próximo presidente, no contexto da pandemia, e quais as diferenças entre as propostas de Lasso e Arauz?

O tema econômico será central. O Estado está endividado, nos últimos quatro anos o investimento público foi praticamente zero.

Lasso fala, a todo o tempo, em recuperar a economia, mas obviamente não diz como, e não deixa claro que o caminho é retomar os investimentos públicos. Arauz tem propostas mais claras nesse sentido, deixa claro que não aceitará negociar com o Fundo Monetário Internacional (FMI) contra o interesse nacional.

Sobre a questão sanitária, Arauz firmou um compromisso de trazer vacinas, em parceria com a Argentina, e tem um calendário claro de como funcionará a vacinação: primeiro os profissionais de saúde, da linha de frente; em seguida, professores, idosos, grupos de risco. Ele já teve covid e deixou claro que será um dos últimos a se vacinar, por não pertencer a grupos de risco.

O plano de Guillermo Lasso para vacinação ainda não está estruturado. Uma das razões é que a agenda única dos opositores de Arauz é atacar o legado do correísmo, e nessa campanha não tem sobrado espaço para propostas consistentes e objetivas.

Edição: Rodrigo Durão Coelho