Os resultados das eleições no Equador no dia 7 de fevereiro, em que se abre a sólida possibilidade de que o candidato da aliança Pachacutik-Unidade Popular, Yaku Pérez, passe para o segundo turno para enfrentar Andrés Arauz, da coligação União pela Esperança (Unes), desenham um cenário que sintetiza uma série de tensões no interior do movimento indígena equatoriano.
Os resultados eleitorais também refletem a problemática incorporação das demandas do movimento indígena por parte da esquerda progressista, em grande medida pelos legados racistas que dificultaram a implementação de diálogos horizontais entre os indígenas e o governo de Rafael Correa (2007-2017), mas também pelo aparecimento de um fenômeno que eu chamarei de etnicismo neoliberal.
A constituição do movimento indígena pode ser sintetizada a partir de origens vinculadas aos partidos de esquerda, às igrejas e aos sindicatos nos anos 1970 e 1980. Este processo veio seguido de uma autonomização do movimento e da conformação de duas tendências em seu interior. Uma delas é etnicista, que aposta pela radicalização da autonomia dos indígenas. A outra, que tenta manter sua articulação com outros setores populares e com a esquerda progressista.
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O movimento indígena também sintetiza o trânsito de um modernismo tardio – no qual os sindicatos, a luta de classes e o Estado nacional ocupam um lugar importante nos imaginários políticos – para algumas formas de governança neoliberais – em que os sindicatos foram eliminados e substituídos por organizações não governamentais. Enquanto o paradigma classista expressado no sindicalismo e nos partidos foi substituídos por uma lógica em que se prima a noção da “cooperação internacional” e os movimentos sociais.
Neste tempo, veio se consolidando o domínio do neoliberalismo, acompanhado da deterioração dos Estados nacionais e de uma crescente privatização da vida social.
No Equador de hoje, essas tensões foram se decantando na importante ruptura que se deu entre a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), mais plural e próxima à esquerda, e o movimento Pachakutik, braço político da Conaie, que foi conquistado pelo etnicismo radical, próximo às teses neoliberais y pós-modernas.
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O etnicismo neoliberal se fortaleceu na oposição a Rafael Correa se utilizando de argumentos em relação às diferenças étnicas, dirigentes indígenas amazônicos e da região de serra do país, como Marlon Santi, Lourdes Tibán e o próprio Carlos Pérez Guartambel, que mudou seu nome a Yaku Pérez. Eles lançaram uma campanha contra as regulações que se tentou implementar no âmbito da educação intercultural bilíngue, bem como contra a mineração.
Um emblemático caso de utilização da autonomia étnica contra o Estado nacional, no período de Rafael Correa a partir de 2012, quando o setor mais etnicista deu refúgio na zona de Sarayaku aos opositores do correísmo Cléver Jimenez, Fernando Villavicencio e Carlos Figueroa, os quais haviam processado Correa por delitos de lesa humanidade após os acontecimento vinculados à tentativa de golpe de Estado, em 30 de setembro de 2012. Como resposta, haviam recebido um contra-processo por calúnia, por parte do presidente da República.
A ala etnicista do movimento indígena também esteve próxima ao partido Unidade Popular – antigo Movimento Popular Democrático –, que se autoidentifica como de esquerda, mas cuja prática está mais ligada à defesa de interesses corporativos em áreas como educação ou sindicatos públicos, assim como a facções altamente corporativas do Partido Socialista.
A ala etnicista do movimento indígena apoiou o governo de Lenín Moreno (2017-) e tem fortes coincidências com as noções de liberdade neoliberal, como acontece com as posturas que se opõem à regulação estatal. Convém não esquecer que, em 2017, no contexto das eleições em que se enfrentavam Lenín Moreno, como sucessor de Rafael Correa, e Guillermo Lasso, candidato do neoliberalismo, Yaku Pérez manifestou sua adesão a Lasso, argumentando que era preferível o governo de um banqueiro que uma ditadura.
O setor do movimento indígena mais próximo à esquerda conquistou uma vigorosa presença nacional ao liderar as mobilizações contra o governo de Moreno e contra o Fundo Monetário Internacional (FMI), em outubro de 2019.
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Durante essas jornadas, o movimento indígena ocupou um lugar protagônico e conseguiu barrar, ainda que de maneira temporária, a implementação das medidas exigidas pelo FMI, como a liberalização dos preços dos combustíveis, que atingiam duramente os setores populares. As figuras mais visíveis daquele outubro foram Leonidas Iza, dirigente do Movimento Indígena e Camponês do Cotopaxi MICC, e Jaime Vargas, atual presidente da Conaie.
A um dia de ter concluído o primeiro turno das eleições deste ano no Equador, surge um intrigante panorama político: enquantos todas as previsões indicavam como certo que o candidato Andrés Arauz poderia ganhar no primeiro turno ou que se houvesse segundo turno seria contra o candidato neoliberal Guillermo Lasso, os resultados oficiais divulgados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) falam de uma mínima superioridade numérica de Yaku sobre Lasso. Isso levaria ao líder do Pachacutik-Unidade Popular a enfrentar Arauz em um segundo turno.
Curiosamente, em vez de agitar uma bandeira que chame a seus seguidores para se preparar para o segundo turno, Yaku levantou uma bandeira do anti-correísmo mais visceral, falando de uma suposta conspiração organizada por Correa e Lasso para anular seu triunfo. O mais inquietante é que convoca os indígenas a se dirigirem a Quito e organizar um levante cujo alvo mais claro seria o correísmo.
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Nesse contexto, se revela o caráter profundamente retardatário do setor essencialista do indigenismo, pois a convocatória de Yaku poderia criar um cenário de confrontação entre os setores populares do movimento indígena com os diversos setores que conformam o correísmo, enquanto os neoliberais contemplam regozijados como setores da esquerda se destroem entre si.
Como atenuar o perigo da divisão e da confrontação no interior do campo popular? Dada a alta sensibilidade que provocam as etnicidades e os nacionalismo étnicos, é indispensável que ambas as alas do progressismo, tanto o movimento indígena como o correísmo, assumam suas responsabilidades civis e políticas derivadas da declaração do Estado nacional como intercultural e plurinacional.
Do lado do correísmo, é indispensável que se reconheça que qualquer governabilidade no Equador de hoje não pode se constituir deixando de lado a participação ativa dos setores populares e do movimento indígena. Dentro das propostas do governo do correísmo, é indispensável pensar de maneira séria em uma sociedade pós-extrativista e aprofundar as estratégias de participação igualitária dos povos e nacionalidades nos direitos sociais e políticos nacionais, ao mesmo tempo em que se reconheça o complexo e rico campo das diferenças culturais.
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Da parte do movimento indígena, é indispensável resgatar as tradições de luta e as memórias que se construíram, dando igual valor às demandas específicas e particulares dos povos e nacionalidades e as que se articulam com o destino da nação.
A grande urgência que se apresenta logo após os efeitos que se produziram esse primeiro turno é a de revisar de maneira séria e ponderada a politização das identidades. Ao não fazê-lo, corremos o grande risco de repetir na América Latina as trágicas experiências de fraturas das comunidades políticas nacionais, como as que ocorreram na antiga Iugoslávia ou na África pós-colonial.
*José Antonio Figueroa é doutor em Antropologia Social e Estudos Culturais Latino-americanos, e professor e pesquisador da Faculdade de Artes da Universidade Central do Equador.
**Este artigo foi publicado originalmente no espanhol no site do IECCS.
Edição: Vivian Fernandes