O samba completou 100 anos em 2016. A origem do gênero é tradicionalmente localizada na gravação da canção “Pelo Telefone”. O escritor e jornalista Lira Neto, entretanto, discorda dessa versão.
Após escrever a vida de Getúlio Vargas em três volumes, Neto se lançou em uma nova empreitada: a “biografia” de um gênero musical – Uma História do Samba [Companhia das Letras]. Para ele – que não pretende “escrever a história definitiva do samba” –, como manifestação da cultura popular, “o samba, assim como qualquer gênero musical, como toda obra coletiva, não possui um marco zero, uma única certidão de nascimento, um criador, um inventor”.
O primeiro volume de sua nova obra, dividia em três partes, já foi lançado, sob o subtítulo As Origens. Ela cobre o período que vai dos estilos que historicamente geraram o samba até a década de 1930, momento no qual, segundo Lira, o samba passa a sofrer pressões para que se institucionalize.
Logo nas primeiras páginas, Neto explica como o Estado Novo varguista tentou utilizar o samba, após décadas de perseguições impostas ao gênero, como elemento de unidade nacional. A tensão entre manifestação popular e a assimilação é apenas uma das diversas descritas pelo autor.
Lira Neto resgata histórias e personagens esquecidos, apresentando a epopeia de um gênero em constante desenvolvimento. Além da própria data de “origem” do samba, o autor aborda também a delicada questão das influências étnicas e musicais na conformação do estilo.
A obra rechaça a ideia forjada pelo Estado Novo, de que o samba seria um exemplo da união das “três raças” e aponta, por outro lado, a absorção de estilos europeus como parte de sua gênese. O samba é mestiço, como o próprio Brasil. Lira, entretanto, ressalva: “É preciso não confundir o conceito de mestiçagem com a mitologia anacrônica da ‘democracia racial’. A história de formação do povo brasileiro é uma história de violência, de exclusão, de arraigado racismo. Isso também se deu no campo da cultura, que é fundamentalmente conflitivo”.
“O samba nunca foi apenas um só, monolítico. O samba sempre foi múltiplo, multifacetado”, resume.
Confira a íntegra da entrevista abaixo.
Brasil de Fato: Como surgiu a ideia de biografar um gênero musical, especificamente, o samba? Há alguma relação com a biografia de Getúlio feita por você?
Lira Neto: Sempre costumo ter uma lista de futuros projetos, idealizados e registrados em minhas cadernetas de trabalho. Alguns deles vingam e se transformam em livros, outros não. Contudo, depois de concluir o terceiro volume da biografia do ex-presidente Getúlio Vargas, pela primeira vez eu ainda não havia definido o tema da empreitada seguinte. Conversei então com meu editor, Luiz Schwarcz, e disse-lhe que não pretendia escrever outra biografia política.
Queria algo que me devolvesse, de certo modo, à minha origem de jornalista ligado à área de cultura. Sabendo que adoro música e que tenho grande interesse por cultura popular, Luiz sugeriu então que eu buscasse algo relacionado a essas temáticas de minha predileção. Entre uma conversa e outra, surgiu a ideia de “biografar” o samba. Ora, ao mergulhar na trajetória de Getúlio, eu havia feito uma imersão prévia no contexto histórico do Brasil da primeira metade do século XX período que coincide com a época da institucionalização do samba, antes marginalizado, como gênero musical hegemônico do país. Ou seja, uma pesquisa acabou sendo desdobramento da outra.
Quais foram as dificuldades, ou maiores diferenças, em relação a outras obras que você já escreveu, dado que o "objeto" dessa trilogia não é uma pessoa, mas sim um estilo musical?
No início, a proposta foi reconstruir e narrar a história do samba, uma manifestação cultural de origem comunitária, coletiva, a partir da trajetória individual dos mais diversos personagens compositores, intérpretes e instrumentistas que ajudaram a moldá-lo e consolidá-lo como gênero musical. A metodologia de trabalho, portanto, pouco difere de meus trabalhos anteriores. A grande diferença e, sem dúvida, a dificuldade maior, consistiu no fato de que, em vez de centralizar a narrativa em apenas um biografado, tive que dirigir o olhar e a atenção para múltiplos protagonistas.
A partir disso, em vez de seguir o caminho mais fácil e construir perfis independentes uns dos outros, em eventuais capítulos específicos, propus-me a um trabalho minucioso de tessitura, de marchetaria narrativa, interpolando episódios e personagens, para tentar compreender as interações e influências mútuas de seus respectivos trajetos pessoais e artísticos.
Como foi lidar com a história oral do samba?
Sem dúvida, esta foi outra dificuldade adicional, particularmente neste primeiro volume. Muito do que se sabe e do que se escreveu sobre esse momento de formação do moderno samba urbano é proveniente da bela e vasta tradição oral, transmitida de geração em geração, pelas comunidades e pelos próprios sambistas. Contudo, essa narrativa já sedimentada, por vezes idealizada e autocongratulatória, precisava ser relativizada a partir do confronto com outras fontes históricas, a exemplo dos jornais de época e mesmo dos inquéritos policiais e judiciais envolvendo os personagens, muitos deles fichados nas delegacias e presos em mais de uma ocasião ao longo da vida.
É claro que cabe ao pesquisador analisar toda essa documentação de forma crítica, pois a polícia e a imprensa da época, profundamente preconceituosas e dentro do projeto higienista então em curso nas grandes capitais do país, retratavam o samba e os sambistas como elementos “bárbaros e incivilizados”, que por causa disso precisavam ser erradicados em nome de uma pretendida ideia de modernidade. A famosa Lei da Vadiagem, de 1890, havia sido decretada dois anos após a abolição. Os negros, então recém-libertos do jugo do cativeiro, não tinham a mínima condição de se inserir no mundo do trabalho. Portanto, foram os alvos prioritários do aparato repressivo que enchia as cadeias e delegacias de alegados “vagabundos”.
Já se escreveu muito sobre o samba anteriormente. O que você pensa ser o traço distintivo da sua contribuição sobre o tema?
Não tenho pretensões de escrever a história definitiva do samba. Longe de mim semelhante pretensão. Desde o título do livro, deixo isso evidente. Não se trata, note-se, de “A história do samba”, mas sim de “Uma história do samba”. Meu trabalho tenta oferecer ao leitor uma das formas possíveis de reconstituir essa história tão magnífica, tão rica de significados e possíveis interpretações. Aliás, não acredito também em “biografias definitivas”. Isso não existe.
Mesmo depois de biografar Getúlio em três volumes, em mais de 1.500 páginas, por exemplo, não me arvoro a ter escrito um livro definitivo sobre personagem tão complexo. Muito pelo contrário. Penso apenas em poder contribuir, dentro de minhas limitações e possibilidades de pesquisador, a enriquecer e ampliar a já vasta bibliografia pré-existente sobre os temas sobre os quais me debruço.
Ano passado se comemoraram os cem anos do samba. Em sua obra, a questão da origem do gênero é posta de forma mais complexa. Você pensa ser possível estabelecer um marco objetivo para o surgimento do samba?
Nós, jornalistas, temos uma tara quase atávica por efemérides, por celebrar as datas redondas. Mas o samba, assim como qualquer gênero musical, como toda obra coletiva, não possui um marco zero, uma única certidão de nascimento, um criador, um inventor, um primeiro isso, um primeiro aquilo. É fato que, muito antes de “Pelo telefone”, pelo menos cerca de outras vinte músicas já tinham sido lançadas, em disco, sob a denominação de samba. Constatação que não tira o grande mérito da música registrada por Donga: ter inaugurado um novo formato de divulgar e massificar, com base nos mecanismos de nossa então incipiente indústria do entretenimento, uma música negra, oriunda das camadas populares.
Outra questão inovadora de sua obra é a referência à polca como influência na definição do samba. Gostaria que você comentasse um pouco sobre isso. Como você vê a gênese do samba à luz da questão racial?
Antes de mim, muitos outros pesquisadores já trataram desse aspecto caleidoscópico, característico das manifestações musicais brasileiras. Sem dúvida, o samba possui um lastro ancestral, uma base rítmica marcadamente negra, africana, mas sua consolidação como gênero musical envolveu uma série de trânsitos e percursos culturais.
O lundu, por exemplo, que podemos definir como uma espécie de avô do samba, surgiu do diálogo dos chamados “batuques” com danças de salão e estilos musicais de origem europeia, promovendo fusões e assimilações posteriores. Isso, em nenhum momento retira o protagonismo fundamental dos afrodescendentes no processo de formação do samba urbano.
É preciso não confundir, é claro, o conceito de mestiçagem com a mitologia anacrônica da “democracia racial”. A história de formação do povo brasileiro é uma história de violência, de exclusão, de arraigado racismo. Isso também se deu no campo da cultura, que é fundamentalmente conflitivo. O interessante é perceber como o samba, exposto ao processo geral de domesticação e controle posto em ação pelas políticas urbanas, pelo aparato repressivo e pela indústria do entretenimento, soube se reinventar, atuar pelas bordas, negociar espaços, sempre de maneira antropofágica.
Você pensa ter derrubado mitos com a redação de sua obra?
Também não me proponho a ser um implacável demolidor de mitologias, um revisionista que procura derrubar verdades históricas pré-estabelecidas. Não me sinto à vontade nesse figurino, embora ele ande um tanto quanto na moda, em determinados circuitos midiáticos. Apenas tento oferecer, com base em uma pesquisa bem-fundamentada, a partir de um trato rigoroso das fontes históricas, outras possibilidades de leitura e interpretação.
Sua obra me pareceu similar, em termos de abordagem, à História Social do Jazz. Você poderia resumir, pensando apenas no primeiro volume, qual foi a evolução das relações entre samba e sambistas com a sociedade e o Estado brasileiros?
A comparação, hiperbólica, obviamente me envaidece, embora eu tenha plena consciência da distância estratosférica que separa meu trabalho sobre o samba do monumento escrito por Eric Hobsbawm a respeito do jazz. Contudo, parto da mesma compreensão de que não podemos entender a história da formação do moderno samba urbano divorciando-a do contexto político, econômico e social da época. Impossível compreender a gênese do samba, por exemplo, sem levar em conta os efeitos perversos e excludentes das políticas higienistas do início do século XX, das ações urbanísticas que segregaram milhares de indivíduos pobres e negros, tangendo-os para os subúrbios e para as encostas dos morros cariocas, dando origem às primeiras favelas.
Quais são as periodizações dos próximos volumes? Mais: como você lidará com a diversificação do samba? Tendo surgido vários subgêneros, como escolher quais entram ou não?
O segundo volume abordará a chamada “Época de Ouro”, ou seja, o período compreendido entre o início da década de 1930 e meados da década de 1940. O terceiro, por fim, partirá daí em diante até os cenários contemporâneos do samba, cobrindo, na medida do possível, seus desdobramentos e derivações. Logicamente, não pretendo escrever uma obra enciclopédica, que esgote o assunto. Porém, tenho em mente que o samba nunca foi apenas um só, monolítico. O samba sempre foi múltiplo, multifacetado. Desde que o samba é samba, é assim.
Há previsão de lançamento?
O [primeiro] livro já está nas principais livrarias, mas os primeiros lançamentos oficiais acontecerão ao longo desde mês de março. Em São Paulo, lanço na Livraria da Vila, na Vila Madalena, dia 9, às 19h. No Rio, serão dois eventos: dia 15, às 19h, na Livraria da Travessa, em Ipanema, e dia 18, a partir das 14h, com direito a roda de samba, na Livraria Folha Seca, na rua do Ouvidor. Depois será a vez de Fortaleza, com lançamentos na Saraiva do Iguatemi, no dia 23, e no Passeio Público, no dia 25.
O lançamento do segundo volume está previsto para 2018. O do terceiro, para 2019.
Você pensa que sua obra pode despertar alguma curiosidade sobre um momento do samba que pode ter reflexos sobre a produção musical atual?
Penso que, talvez, a história da gênese e consolidação do samba nos ajude a desconfiar de alguns conceitos arraigados, como o de “ identidade cultural” ou os de “autenticidade” e “pureza”, em se tratando da cultura popular. É próprio da cultura popular a constante reelaboração, a permanente absorção de novas influências. Fora disso, caímos no imobilismo saudosista, na esterilidade do mero folclore. E quanto à busca de uma suposta identidade, impossível falar disso em um país multiétnico, heterogêneo, permeado de conflitos e injustiças sociais e raciais, sem cair no estereótipo, sem tentar unificar sob um único conceito, artificialmente e de forma autoritária, uma realidade tão vasta e plural como a brasileira.
Edição: José Eduardo Bernardes