A data é controversa, o evento soa a invenção publicitária, mas vale alardear a iniciativa: em 2016, a mídia e a própria Academia, a pretexto de consignar um século de registro do clássico “Pelo Telefone” nos arquivos da Biblioteca Nacional, celebram os 100 Anos do Samba, sem dúvida uma das maiores expressões de resistência cultural do povo negro do Rio de Janeiro e de boa parte do Brasil. É claro que se poderá arguir a pertinência da escolha – e, de fato, há muita coisa mal contada nessa história.
Muitos contestam o local e o ano de nascimento da “criança”, que, em verdade, remontaria a outra época e espaço, sendo gestada longe dos sítios urbanos, nos “batuques” rurais da senzala, nos raros momentos de folguedo dos escravos da casa-grande de ioiô e iaiá. Aliás, a melodia composta no quintal de Tia Ciata, na histórica Praça XI (RJ) das velhas baianas do candomblé, intitulava-se originalmente “Roceiro” e seria fruto de uma criação coletiva – e não individual, segundo apareceu no disco, em que se via apenas o nome de Donga (omitiu-se o autor da letra, Mauro de Almeida, só mais tarde reconhecido pelo parceiro) – de vários músicos que participavam das animadas rodas do terreiro, entre eles João da Baiana, Pixinguinha, Caninha e Sinhô.
Outros sequer consideram a criação com batida de maxixe um protótipo fidedigno do samba: em fevereiro de 1917, o Jornal do Brasil publicava uma nota do Grêmio Fala Gente em que se comunicava que “o verdadeiro tango Pelo Telefone” (cuja autoria era atribuída a João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário) seria cantado na Avenida Rio Branco, um dos redutos do carnaval carioca. Na verdade, a crer no depoimento de Donga para o Museu da Imagem do Som (MIS), ratificado por Almirante em artigo publicado em 1972 no jornal O Dia, o tal “samba” surgira de uma paródia para lá de bem-humorada dos jornalistas de A Noite, que em 1913 instalaram uma roleta em pleno Largo da Carioca para provar a tolerância e cumplicidade do “Chefe da Polícia” com o jogo na cidade.
Controvérsias à parte, o mote é ótimo pretexto para que, neste “Dia Nacional do Samba” festejado nos trens e terreiros de nossa turbulenta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, evoquemos passagens significativas da história de um jovem ancião. Afinal de contas, ele não é apenas um gênero musical, mas a própria carteira de identidade dos eternos excluídos da evolução capitalista no país.
As raízes negras do samba na pátria da casa-grande & senzala
O samba se afirma como a expressão musical dos negros paupérrimos que habitavam os morros e cortiços da cidade, sem renegar o seu passado rural. Segundo aponta o historiador Joel Rufino dos Santos, a origem do gênero remonta aos “batuques” da senzala, que ex-escravos baianos, instalados no Rio de Janeiro após regressarem da Guerra do Paraguai, em 1870, ajudariam a recriar em sua versão urbana cada vez mais melódica e sincopada.
O pesquisador Sérgio Cabral, citando o folclorista Édison Carneiro, observa que a palavra samba, registrada pela primeira vez na revista pernambucana Carapuceiro em 1838, definia uma ampla gama de tipos de música e de dança introduzidos pelos negros escravos no país. Carneiro, inclusive, elege como “área nacional do samba” uma vasta região situada entre os estados de Maranhão e São Paulo, onde se estabelece a família de sobrenome Samba, reunindo desde o tambor de mina e de crioula maranhense, o milindô do Piauí e o bambelô potiguar, até as variedades nordestinas do coco, o samba de roda baiano e o jongo do Sudeste, além do partido-alto e do lundu carioca, assim como o samba rural e o samba de lenço de São Paulo.
É claro que, em seu longo processo de gestação na sede do Império (e, a partir de 1889, capital da República), o novo gênero musical, além de acusar a herança baiana, viria a cultivar também variações rítmicas próprias da diversidade que a chamada “Pequena África” exibia na ampla região que se expande a partir da antiga zona portuária da cidade. Nunca é demais lembrar que, ao final do século XIX, os negros espalhados pelo centro da cidade eram mais de 40.000. Esse número incluía não apenas os combatentes alforriados da Guerra do Paraguai, mas também escravos das lavouras e da casa-grande libertos em 1888, assim como os negros livres que prestavam diversos serviços na área mais ativa da metrópole. A eles logo iriam somar-se os soldados egressos da violenta Guerra de Canudos (campanha liderada pelo Exército para aniquilar os sertanejos sem-terra liderados por Antônio Conselheiro, no interior da Bahia), que, desprovidos de moradia, se instalam, sob a autorização expressa do Ministério da Guerra, no Morro da Providência, bem próximo ao porto, criando aquela que seria conhecida como a primeira favela carioca.
Eles ocupavam uma área que se estendia desde o Cais do Valongo até os arredores do Morro do Castelo (mais tarde soterrado por força da reforma urbana municipal), na altura da atual Rua Santa Luzia, em direção à Zona Sul do Rio. Já no sentido inverso, rumo à Zona Norte, abrangia ainda a Praça XI, onde se instalariam os terreiros das mães baianas, e o bairro do Estácio, berço de tantos bambas do samba carioca. O papel de cada um desses sítios na configuração rítmica e temática da música negra da cidade é tema bastante fértil na historiografia do samba. O fato indiscutível é que, em toda essa vasta região, segundo anotam Carlos Didier e João Máximo, canta-se e toca-se o samba, organizam-se rodas de batucada e mesclam-se novos gêneros, em que tanto prevalecem os instrumentos de percussão, quanto, no caso dos grupos de choro, desponta a base de violões, flauta e cavaquinho. Isso sem falar no ‘obsceno’ maxixe e nos tambores com que se entoavam os pontos de macumba, severamente reprimidos pela polícia do Distrito Federal.
Muitos pesquisadores costumam estabelecer uma hierarquia entre esses núcleos da “Pequena África”, mas consideramos que todos eles compõem sementes legítimas do novo gênero em formação. É comum que se destaque a Praça XI, onde se instalaram as veneradas mães baianas, ou o Morro do Estácio, base da primeira escola de samba carioca (a “Deixa Falar”, de Bide, Marçal e Ismael Silva). Mestre Rubem Confete, porém, concede clara primazia à zona portuária, por onde transitava Paulo da Portela, fundador da tradicional agremiação de Oswaldo Cruz e um dos maiores militantes da causa negra na capital, e Elói Antero Dias, o Mano Elói, que percorreu o subúrbio ajudando a organizar os grupos de samba nos morros e nos terreiros.
Entre o morro e o asfalto: com a voz macia do malandro e a bossa de Noel
“Cidade moderna, necessidades novas”, observa-nos em seu estudo sobre a canção urbana o pesquisador José Ramos Tinhorão. No caso brasileiro, a música popular – que, no século XX, se transforma em produto cultural de massa – é fruto de quase quinhentos anos de evolução do estilo de canto solista acompanhado, isto é, da canção: “ela surgiu na passagem do século XV para o XVI como mais um resultado do processo de urbanização anunciador do fim do longo ciclo de economia rural da Idade Média.” Além disso, sua forma originalíssima e sua natureza sincrética constituem uma expressão estética do truncado processo de interação entre o campo e a cidade, marca da formação espacial do Brasil.
Assim, graças às novas sonoridades da urbe em expansão, à música popular estrangeira difundida em discos e partituras e aos ritmos africanos dos rituais religiosos, Noel, Pixinguinha e outros bambas dessa época concorrem para a criação de uma nova tradição musical brasileira. Conforme observou a pesquisadora Virgínia de Almeida Bessa, essa mescla de fontes seria uma “estratégia de sobrevivência” e de “inserção social”, abrindo-lhes caminhos na incipiente cena profissional e avalizando a presença dos artistas populares nas discussões sobre a cultura brasileira. Se a trajetória de Pixinguinha revisita o telúrico e o cosmopolita, indiciando no singular capitalismo tropical o ingresso dos negros recém-libertos na indústria do espetáculo e sua própria integração à sociedade de classes, o poeta-cronista Noel deambula entre o morro e o asfalto para anunciar a nova feição urbana da nossa música, eivada de ritmos agrários até a era do rádio.
A bossa pede passagem, mas seu percurso é tortuoso e intrincado. É preciso, antes de tudo, vencer o preconceito dos salões contra o negro – e caberá a Noel um papel crucial nessa tarefa. Ainda que o polêmico José Ramos Tinhorão o descreva como “branco, filho da cidade e sem ligações com os sambistas negros e mestiços semianalfabetos das camadas mais baixas”, ele desde cedo se alinha aos mais humildes e marginalizados. O desconforto nos ambientes mais formais da classe média, palco das apresentações do Bando de Tangarás, é visível. Almirante, o líder do conjunto, sabe que o parceiro se sente bem melhor em uma tendinha do Morro dos Macacos ou em um botequim do Ponto de Cem Réis que nas festas ou reuniões cheias de pompa e circunstância das famílias tijucanas. Em verdade, como o próprio Tinhorão reconhece, o Poeta e seus pares eram de uma época na qual, mesmo distanciadas, a classe baixa e a média coexistiam sob uma ‘promiscuidade vitalizadora’ nas mesmas áreas urbanas, “por efeito da proliferação dos cortiços e das casas de cômodos, que apareciam ao lado das casas das boas famílias”.
Aproximando-se dos compositores do morro, Noel Rosa paulatinamente assimila os novos ritmos urbanos em sua obra, ao passo que os outros Tangarás permanecem fiéis à herança regional dos cocos, desafios e emboladas. A opção não se deu de modo imediato: a influência caipira ainda está presente nas duas primeiras músicas gravadas por Noel, a toada “Festa no Céu” e a embolada “Minha Viola” (ambas escritas em 1929 e lançadas em 1930). Outras canções dessa época também acusam a herança sertaneja, como o melodrama caipira “Mardade de Cabocla”, em que o autor nos relata a desventura amorosa de um tímido roceiro que se apaixona por sinhá Ritinha, mas termina sem ser correspondido: E o Zé Sampaio foi-se embora lá do Norte / Pois teve a pió da sorte / Que se pode imaginá: / No mês de maio, quando vortô à capela, / Pra entregá o rosário dela / Ela não quis aceitá.
O preconceito será vencido pouco a pouco. Sempre atento à linguagem popular, cuja sintaxe e fonética, além da própria essência rítmica, ele busca mimetizar, Noel abraça à sua maneira o programa modernista de 22. De imediato, trata de converter a experiência social em motivo lírico, evidenciando para a “gente de bem” que português brasileiro já era uma realidade nos anos 30: “tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português”... Aliás, cabe mais uma vez indagar se o modernista Noel teria lido o poema “Pronominais”, de Oswald de Andrade, em que o poeta paulistano atesta a simpatia do Modernismo literário pelos novos usos que o idioma conhece longe de Portugal. Só a hipocrisia dos caretas poderia ignorá-los, já que “a gíria que o nosso morro criou bem cedo a cidade aceitou e usou”.
Ao lado da resistência silenciosa dos negros na orla da cidade, o menino branco da Vila sempre prestará sua contribuição à luta do samba contra o estigma e a discriminação que o gênero continuava a sofrer no Brasil oligárquico dos anos 30. O depoimento por ele prestado a um jornal mineiro, em 1935, expressa de forma cristalina sua consciência sobre a causa:
A princípio o samba foi combatido. Era considerado distração de vagabundo. Mas estava bem fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, vagou pelas ruas com um toco de cigarro apagado no canto da boca e, de repente, ei-lo de fraque e luva branca nos salões de Copacabana. Mas o companheiro do samba é o violão, que já obteve também a sua vitória definitiva. O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem preconceito, sem mentira.”
Começava, então, na década de 1930, a tortuosa história do gênero na indústria cultural. O que ocorrerá na segunda metade do século XX, com a espetacularização do carnaval (com as superescolas de samba S/A e as superalegorias escondendo gente bamba – a “covardia” cantada por Aluísio Machado e Beto Sem Braço em 1982), sob o poder do espúrio consórcio firmado pela contravenção, a mídia (leia-se Globo) e o Poder Público, já é mote para outros artigos. Por ora, celebremos o centenário do vovô-menino, legítimo filho da dor e da resistência.
* Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidad de La Habana (Cuba), é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil (Expressão Popular, 2009) e coordenador do Projeto Acervo Universitário do Samba, pelo qual escreveu Aluísio Machado: sambista de fato, rebelde por direito (2015) e Zé Katimba: antes de tudo um forte (2016).
Edição: José Eduardo Bernardes
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