A cúpula do Brics começou nesta terça-feira (22) em Kazan, na Rússia, com a expansão do grupo no horizonte. Se no último encontro, em 2023, o bloco aceitou a entrada de mais 6 integrantes, dessa vez a ideia é discutir a ampliação do números a partir de países parceiros. Mas um ponto de conflito será crucial nessa decisão: a Venezuela.
Os venezuelanos têm interesse em fazer parte do Brics e o bloco entende que o país é estratégico para o mercado energético global. A entrada como um parceiro ainda precisa ser aprovada pelos membros integrantes. Fontes diplomáticas ouvidas pela reportagem do Brasil de Fato declararam que havia uma resistência do Brasil sobre a entrada da Venezuela no grupo de parceiros do Brics durante as negociações preliminares à cúpula.
Em entrevista ao jornal O Globo, o assessor especial de política externa de Lula, Celso Amorim, afirmou que "talvez ainda não seja possível chegar a uma conclusão", destacando que não há um "julgamento moral e nem político" sobre a Venezuela.
"Não estou preocupado com a entrada ou não da Venezuela, não estamos fazendo julgamento moral e nem político sobre o país em si. O Brics tem países que praticam outros tipos de regime, a questão é saber se eles têm capacidade, pelo seu peso político e pela capacidade de relacionamento, de contribuírem para um mundo mais pacífico", disse Amorim.
Para a Venezuela, a aproximação com o bloco é importante em diferentes aspectos. Primeiro para fortalecer alianças estratégicas com países que já têm uma relação próxima com o governo venezuelano. Os russos e os chineses são o principal exemplo. Os dois países também enfrentam sanções e negociam com os venezuelanos, principalmente petróleo.
Com a entrada no Brics, as negociações com esses países ganham outras ferramentas e o investimento direto passa a ser saída para o governo venezuelano. Para Caracas, a forma como o Brics, e especialmente a China, fomentam projetos de infraestrutura em parceiros é fundamental para o desenvolvimento de setores estratégicos. A ideia é que sejam financiadas obras em diferentes áreas em troca de uma linha de crédito vantajosa, ou uma garantia de acesso a minerais e, no caso da Venezuela, ao petróleo.
A Venezuela foi convidada para participar da cúpula pela segunda vez. Na primeira ocasião, o presidente Nicolás Maduro esteve no Ceará para a 5ª cúpula. Dessa vez, o governo venezuelano foi convidado pelo chefe do Executivo russo, Vladimir Putin. O presidente Nicolás Maduro chegou à Rússia nesta terça-feira (22).
A formação dessas alianças fortalece o Brics como um grupo que faz contrapeso aos blocos estruturados pelos Estados Unidos e a União Europeia. Para o pesquisador do Instituto Venezuelano de Investigações Científicas Eder Peña, essa atuação em grupo coloca uma nova correlação de forças no tabuleiro da geopolítica internacional.
“A Venezuela tem buscado ter sócios e aliados internacionais, além da hegemonia estadunidense ou ocidental. E isso é importante porque é um grupo que dá um contrapeso em termos econômicos e políticos na distribuição global de forças e na região. Isso servirá para a Venezuela aumentar os investimentos internos e para se projetar internacionalmente como um ator global”, afirmou ao Brasil de Fato.
Uma das ferramentas para essa nova correlação de forças é o Novo Banco de Desenvolvimento. Esse é o principal mecanismo de investimentos do bloco para países do Sul Global. Para o governo venezuelano, há uma diferença fundamental entre a atuação do Banco do Brics e outras instituições financeiras que fazem empréstimos como o Banco Mundial e o FMI: as contrapartidas. Diferentemente do que fazem essas organizações, o NDB não coloca condições para as políticas locais.
Segundo um relatório da ONU, o financiamento entre países do Brics aumentou de US$ 75 bilhões (cerca de R$ 425 bi) em 2015 para US$ 167 bilhões (quase R$ 1 trilhão) em 2020. A China foi o país que mais recebeu investimentos, seguido do Brasil.
Alternativa ao dólar
O bloco tem como principal foco uma nova organização do comércio entre os países. A ideia é sair da dependência do dólar enquanto moeda de troca e fortalecer moedas locais. O governo da Venezuela entende que essa é uma mudança que não só reorganiza a correlação de forças em nível internacional, mas que pode ajudar a economia venezuelana, que tem dificuldade ao acesso a dólares, pelas sanções impostas pelos Estados Unidos.
Outra questão que será discutida pelos países é uma alternativa aos sistema conhecido como Sociedade de Telecomunicações Financeiras Mundial (Swift). Criado em Bruxelas, em 1973, o sistema conecta 11 mil bancos e instituições financeiras em mais de 200 países. Na prática, é uma plataforma que permite aos bancos informarem sobre as transferências em tempo real. Em média, são 42 milhões de mensagens enviadas diariamente.
O Swift concentra cerca de 70% das transações bancárias globais e é usado para sancionar países a partir da exclusão de bancos desse sistema. Com isso, instituições de diferentes países passam a ser impedidas de fazer operações financeiras internacionais, o que impacta na vida não só de clientes, como de exportadores e importadores que precisam fazer pagamentos.
Mas um sistema de pagamentos baseado no dólar também prejudica países que não estão sancionados. O deputado e membro da comissão de política exterior da Assembleia Nacional venezuelana Edgardo Ramirez afirma que, ao criar um sistema unificado a uma moeda, todos os países que têm uma balança comercial deficitária apresentam dificuldade de acessar ao dólar, o que leva a mais problemas para fazer negócios com outros governos, como também passam a ter as moedas locais ainda mais desvalorizadas.
Ele afirma que o Novo Banco de Desenvolvimento apresenta possibilidades de desenvolvimento das economias abandonarem as ferramentas de pagamentos que são controladas pelas grandes potências hegemônicas.
“As nações do mundo podem se vincular ao Banco do Brics através da solicitação de investimentos para projetos estruturantes em cada Estado nação. E que esses projetos estejam voltados a fortalecer as economias, a dinamizar as economias e, sobretudo, que essa economia se desenvolva sobre um sistema de pagamentos que substitua o sistema Swift. A ideia é que esse novo sistema evite as medidas coercitivas unilaterais e busque um mundo com uma nova geopolítica internacional com uma soberania na tomada de decisões”, afirmou ao Brasil de Fato.
Brasil, Índia e China fazem parte do grupo fundador, junto com a Rússia, que é hoje o país mais sancionado pelos Estados Unidos e União Europeia. De acordo com o Observatório Antibloqueio da Venezuela, os russos enfrentam hoje mais de 22.230 sanções. Edgardo Ramirez afirma que o Brics é uma forma de proteger os países que estão bloqueados e fortalecer não só as economias nacionais, mas impulsionar também o desenvolvimento tecnológico.
“O Brics vai fortalecer as economias nacionais, porque isso cria um grande bloco econômico. A agenda dos Brics inclui também ciência, tecnologia e inovação. Ou seja, não significa que tudo gira em torno das questões geoeconômicas, mas também na produção de conhecimento. O grupo busca atualizar os currículos educativos dos países para um equilíbrio de conhecimento científico e fortalecer novos parâmetros tecnológicos”, afirmou.
Exemplo disso foi a China e Índia se recusando a aderir à proposta dos EUA e UE de estabelecer limite para o preço do petróleo no começo da guerra da Ucrânia. A medida era voltada para limitar o lucro da Rússia durante o conflito. Com isso, Moscou conseguiu se manter no mercado, mesmo vendendo petróleo e gás com desconto para esses países, o que criou um mercado fora do G7.
Interesse para uns, vantagens para outros
A entrada da Venezuela também é vista como estratégica pelo Brics, principalmente pela importância do país no setor energético. A Venezuela tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo, com 303 bilhões de barris estimados.
Em 2020, segundo um relatório da Plataforma de Cooperação em Pesquisa Energética do Brics, o grupo fornecia energia para 40% da população mundial e consumia 37% da energia global. Com a entrada do Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, esse valor aumentou para 55% do fornecimento global de petróleo.
A Venezuela aumentaria ainda mais essa participação no mercado energético. Por tabela, isso representaria uma influência ainda maior do Brics no mercado de combustíveis global. De acordo com Eder Peña, essa influência se dá também pela participação de países do Brics na Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep.
“Para o Brics, a entrada da Venezuela seria um fortalecimento porque aumentaria muito as reservas petroleiras ligadas ao grupo. Além disso, vários dos países do Brics estão se somando à Opep. Brasil e Rússia entraram na Opep+. Também estão os Emirados Árabes, Irã. Então se a Venezuela entra, seria mais um país membro da Opep no Brics e o grupo teria muito mais impacto no mercado energético”, afirmou ao Brasil de Fato.
Política para a entrada
Segundo jornais brasileiros, a possibilidade de o Brasil vetar a entrada da Venezuela no bloco seria por um receio de comprometer a posição do governo de não reconhecer a vitória de Nicolás Maduro nas eleições de 28 de julho.
Edgardo Ramírez afirma que esse reconhecimento já foi feito por alguns países que integram os Brics, especialmente Rússia e China. Para ele, a interferência em assuntos políticos não costuma ser uma conduta dos Brics, que tratam de assuntos econômicos. No entanto, ele diz que a adesão ao bloco seria uma forma simbólica de reconhecer o governo venezuelano.
“O Brics não é um processo de associação entre Estados-nações de caráter militar. O Brics tem a fundamentação sobre um plano de todos os países do grupo para projetos estruturantes. Se a Venezuela entra no grupo, há um reconhecimento que tem como caráter a aliança estratégica, mas também um reconhecimento político. Na prática significa avançar juntos, com projetos, planos, com políticas dirigidas ao crescimento econômico a curto e longo prazo. Então, o reconhecimento é possível. O caso do Brasil é atípico com as outras nações do Brics”, afirma.
Ausente na cúpula por orientações médicas, Lula participará no Brics por videoconferência na quarta-feira (23).
Edição: Rodrigo Durão Coelho