Tragédia anunciada

Fazendeiros fazem dois ataques armados e ferem 11 indígenas no MS: 'com certeza vai acontecer mais', alerta liderança

Nesta segunda (5), caminhonetes de ruralistas se posicionam, de novo, em frente à retomada Guarani Kaiowá em Douradina

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Ambulâncias socorrem indígenas Guarani Kaiowá gravemente feridos após ataques de jagunços na noite de sábado (3) - Divulgação/Aty Guasu

Dois ataques de fazendeiros em um intervalo de pouco mais de 24 horas deixaram 11 indígenas Guarani Kaiowá feridos no último final de semana, em Douradina (MS). Dois deles gravemente, com tiros na cabeça e no pescoço. A situação de tensão não arrefeceu e, segundo indígenas ouvidos pelo Brasil de Fato nesta segunda-feira (5), caminhonetes de ruralistas estão perfiladas e se aproximando, de novo, da retomada Yvy Ajere.      

A tragédia foi fartamente antecipada desde a metade de julho. Foi alertada por indígenas, por movimentos populares, pela imprensa, em reuniões com órgãos judiciários e governamentais e pelos próprios ruralistas com ameaças postadas em redes sociais. Mesmo assim aconteceu. E, segundo Humberto*, liderança Kaiowá, deve continuar. 

"Com certeza vai acontecer daqui a pouco novo ataque. Estão chegando as caminhonetes de novo", alerta. "Os que vão morrer, vamos enterrar, os que vão se machucar, prepara a maca, porque nós vamos lutar", diz. A tensão, descreve, "é como se fosse uma guerra. É como se fosse no Iraque". 

Acirramento do conflito    

A tensão no Mato Grosso do Sul escalou desde que, em 13 de julho, territórios ancestrais já delimitados, porém com a demarcação estagnada e sobrepostos por fazendas, foram retomados pelo povo Guarani Kaiowá. Em reação, fazendeiros montaram um acampamento a poucos metros de uma das ocupações indígenas e, já em 14 de julho, balearam um homem na perna.

A Força Nacional foi acionada. Vinculado ao Ministério da Justiça (MJ) e com a atuação criticada pelos indígenas, o órgão delimitou um espaço para cada um dos dois grupos que acampam na área sobre a qual está a fazenda do agropecuarista Cleto Spessato. De um lado, os povos originários no tekoha (termo guarani traduzido como "lugar onde se é") Yvy Ajere. De outro, os ruralistas armados, que contam com o apoio dos deputados federais Marcos Pollon (PL-MS) e Rodolofo Nogueira (PL-MS).

"É muita conivência com um processo que era certo que ia descambar para esse lado", avalia Matias Hampel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).    

Ataque à retomada Yvy Ajere

No início da noite do último domingo (4), fazendeiros avançaram com fogo, trator, rojão e tiros, a despeito da presença da Força Nacional. Segundo o Cimi, um indígena se feriu com um tiro de bala de borracha e "os agentes se mantiveram atrás da linha de ataque dos jagunços sem esboçar qualquer reação para impedir as agressões". 

"Eles soltaram rojões e no meio da fumaça, dispararam com arma de fogo de cima da carroceria da caminhonete. Tinham vários produtores rurais, os brancos", relata Humberto. Barracos e pertences sagrados, como o xiru (altar onde acontece a conexão com o mundo espiritual Kaiowá), foram incendiados ou destruídos por um trator.  

Em nota, a Força Nacional informou que usou gás lacrimogêneo. "Em seguida, foram ouvidos quatro disparos de arma de fogo, cujo autor não pôde ser identificado. Isso levou à utilização de munição de efeito moral e de elastômero, o que foi determinante para que os dois grupos cessassem as hostilidades", afirmou o órgão. 

Segundo o Cimi, o perfil ruralista @sos.agro.ms no Instagram foi um dos que, horas antes, divulgou a notícia falsa de que novas fazendas em Douradina tinham sido ocupadas pelos Guarani Kaiowá. Nesta segunda-feira (5), a página está fora do ar.  

Mas outro perfil foi criado, o @sos.agro.ms2. Com fotos de indígenas segurando arco e flecha e de pessoas brancas portando cartazes com "não demarcação", a postagem desta segunda diz "Só queremos justiça - produtores estão de mãos atadas" e "grupo continua investindo contra outras propriedades".  

Força Nacional se retira do território antes do atentado

Já no sábado (3), o ataque foi sangrento e aconteceu no norte da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica. Pouco antes da investida dos fazendeiros e sem dar explicações, a Força Nacional se retirou do território. Segundo a Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, um agente avisou um dos indígenas: "sai daqui ou vocês vão morrer".  


Dos 10 feridos no ataque de sábado (3), três foram alvejados por armas de fogo na cabeça, pescoço e tórax / Aty Guasu

De cima de caminhonetes, homens armados abriram fogo com balas letais e de borracha contra a retomada Pikyxyin. Nove jovens, entre 16 e 22 anos, foram alvejados. Uma senhora de 62 anos tomou um tiro de bala de borracha nas costas. Os três baleados por armas de fogo são seus netos. Tentavam proteger o barracão onde estavam quatro bebês e cerca de 30 crianças. Um segue hospitalizado e, segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), não corre risco de morrer.  

Procurada pelo Brasil de Fato, a Força Nacional disse que, no momento do ataque, as equipes "faziam o patrulhamento em outra área". Afirmou ainda que haverá um aumento do efetivo, "com agentes que serão deslocados de outros estados".  

A deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) e outros 24 parlamentares do Psol, PT e PDT encaminharam um ofício ao ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, solicitando uma reunião emergencial para tratar do tema. Até o momento, no entanto, não tiveram resposta.  

A autodemarcação da TI Panambi-Lagoa Rica 

As três retomadas feitas em julho - Yvy Ajere, Kurupa'yty e Pikyxyin – se somam a outras quatro já existentes nesta região, todas dentro da TI Panambi Lagoa Rica. A área de 12,1 mil hectares já está identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2011.  

De lá para cá, no entanto, o processo demarcatório não avançou – ainda falta a publicação de uma portaria declaratória e da homologação. Cansados de esperar e sem condições de viver no espaço insuficiente das reservas, os Guarani Kaiowá optaram por fazer a autodemarcação.  

"A gente está ocupando o que é nosso, nós não invadimos as coisas dos outros. Nós queremos apenas o que é nosso. Estamos reivindicado 12.196 hectares, que já está há muito tempo parado esse processo", explica Humberto. "Não viemos para brincar. Estamos aqui para requerer nossa área de volta", completa.  

Além das três ocupações feitas na TI Panambi-Lagoa Rica no último mês, estão as retomadas Tajasu Iguá, Ita’y Kagwyrusu, Guyracamby e Guaaroka.  

Nesta segunda-feira (5), a desembargadora federal Audrey Gasparini suspendeu a reintegração de posse de Guaaroka, que havia sido concedida a pedido de Laísa e Lana Ferreira Lins Lima, que se reivindicam proprietárias da área.  

Enquanto isso, em Brasília 

Uma delegação com 20 representantes da Aty Guasu foi à sede da Defensoria Pública da União (DPU) em Brasília (DF) denunciar o massacre em curso em Douradina na manhã desta segunda-feira (5).    

A reunião aconteceu durante uma agenda mais ampla de mobilização da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), por conta do início das audiências da comissão de conciliação convocada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para tratar do marco temporal.  

*O nome foi alterado para proteger a identidade do entrevistado

Edição: Martina Medina