Premido e emocionado em várias direções pela ambiência em que chegamos ao 19 de abril do ano de 524 pós-conquista, este texto homenageia os Xetá – um dos três grupos indígenas, juntamente aos Guarani e aos Kaingang, que tradicionalmente ocupam o território do atual estado do Paraná.
A história do povo Xetá, atravessada pelo verdadeiro crime contra a humanidade de que foram objeto e principalmente vítima, encontra-se singularmente preservada por fontes escritas, orais, e, surpreendentemente, audiovisuais. Esta circunstância positiva contrasta com o seu semidesaparecimento, produzido por ação humana, garantido por órgãos estatais em favor de pessoas privadas, naturais e jurídicas, essas últimas muito apropriadamente designadas colonizadoras.
Os Xetá são tidos como o último povo indígena do sul do território brasileiro oficialmente contatado pela sociedade envolvente. Assim são considerados porque o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), antecessor da atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) só deles teve notícia oficial no início da década de 1950, quando a última fronteira ainda não totalmente submetida ao empreendimento colonizador do Paraná – região Noroeste – passou a ser dominada.
Os relatos anteriores a este decisivo e trágico acontecimento de meados do século passado são riquíssimos. Datam de pelo menos um século antes, conforme rica compilação de fontes históricas feita pelo pesquisador Lúcio Tadeu Mota, do Observatório das Metrópoles.
Numa tentativa de síntese é possível afirmar, com apoio neste importante estudo, que os Xetá ocupavam o Vale do rio Ivaí até o início do século 20 "desde a Colônia Teresa Cristina, no alto Ivaí até abaixo da Corredeira do Ferro no baixo Ivaí". Possivelmente, diante da necessidade de irem se "esquivando" dos Kaingang – os quais, com a expansão dos empreendimentos colonizadores mais a leste começavam disputar seu território –, os Xetá se deslocarão, em primeiro lugar, da margem direita à esquerda do rio Ivaí, terminando por acantonarem-se a oeste mais próximos à foz deste mesmo rio junto ao rio Paraná.
Cronologicamente, talvez o primeiro registro dos Xetá, não por acaso, seja o feito pelo inglês Bigg-Whiter em seu célebre Pioneering in South Brazil, num apontamento datado de 16 de agosto de 1872 quando a então província do Paraná não contava vinte anos. Bigg-Whiter relata ter avistado o que os estudiosos do assunto reconhecem ser os Xetá. Para o expedicionário inglês, tratava-se de um exemplar de "bugré" da "tribo" dos wild Botocudo. O explorador paranaense, Telemaco Borba, não demoraria a confirmar esta hipótese a respeito dos "Arés", dela dando notícia num pequeno texto sobre os indígenas do Paraná publicado em 1904 na Revista do Museu Paulista.
Essas fontes mais antigas, entre outros aspectos, coincidem em afirmar que este povo, na altura de sua "descoberta", radicava-se próximo ao atual rio Ivaí e seus adultos do sexo masculino em geral adornavam-se com o Tembetá no lábio inferior direito. Dados posteriores confirmam que os Xetá, quando defrontados com o advento da "conquista" do Oeste paranaense viviam junto aos afluentes do rio Ivaí, em especial de sua margem esquerda, sendo certo, segundo o Relatório Circunstanciado já emitido pela Funai, que os Xetá mantêm vínculo indissolúvel com a Terra Indígena demarcada, chamada Herarekã Xetá, local onde hoje há uma fazenda de propriedade de uma empresa pertencente ao grupo Bradesco, sucessora, sem solução de continuidade, da empresa colonizadora inicial, que contava com o emblemático nome de Companhia Brasileira de Imigração e Colonização (Cobrinco).
No que corresponde às fontes mais conhecidas, a este período segue um certo intervalo cuja solução culminará com o mais documentado encontro dos Xetá com a sociedade envolvente, mediante a intervenção cuidadosa de pesquisadores da Universidade do Paraná, entre 1955 e 1958. Desde esta última conjuntura, os registros apontam a presença dos Xetá no território pertencente ao atual município de Ivaté, mais precisamente na Serra dos Dourados.
Os vários relatos existentes dão conta de que por volta de 1952 pessoas encarregadas da medição da gleba que então se estabelecia capturaram uma criança indígena, com entre 8 e 10 anos, entregando-a ao SPI em Curitiba. Cerca de um ano depois, outra criança foi capturada e destinada a Curitiba. Ambos falavam uma língua desconhecida, incompreensível tanto para Kaingangs quanto para Guaranis. No processo de aculturação a que seriam submetidas, referidas crianças assumiram os nomes de Caiuá e Tuca – corruptela, neste último caso, de Tucanambá.
Em novembro de 1955 o SPI retornaria à mesma região da Serra dos Dourados, muito próximos da Fazenda Santa Rosa, acompanhados de Tucanambá. Foi quando um grupo de duas famílias, composto de cerca de 15 indivíduos, foi contatado. Este mesmo grupo apontou a existência de outros grupos da mesma etnia mas com moradas distantes daquele local. Nesta ocasião, a expedição empreendida já se fez acompanhar por pesquisadores da Universidade do Paraná, sendo digna de registro a participação do professor José Loureiro Fernandes e do cinegrafista e fotógrafo Vladimir Kozak. Em apresentação feita à 3ª Reunião Brasileira de Antropologia, transcorrida entre 10 e 13 de fevereiro de 1958, o professor Fernandes fará questão de registrar o encontro com índios brasileiros em "plena cultura lítica", típicos da era "precabralina". É a partir deste período que o SPI instala na região um posto avançado, frequentado por cerca de 10% dos prováveis 250 indivíduos que "erravam" por aquela região.
Nem de longe se pretende dar aqui notícia adequada desta história simultaneamente trágica e instigante. Uma grande fenda então se abre para voltarmos ao tempo presente. Muito embora com o território tradicional já delimitado pela Funai, os Xetá seguem hoje como único grupo indígena completamente desterrados do centro-sul do Brasil – no sentido de não estarem sobre uma ínfima parte de sua própria tradicional nem sobre qualquer outro que pudesse substituí-la.
Sob o espectro do extermínio
"Em 8 de dezembro de 1954 ocorreria o evento que mudou para sempre a vida dos Hetá e levou sua cultura à destruição final".
A fúnebre constatação acima, por parte de um grande conhecedor e defensor dos Xetá, que foi Vladimir Kozák, nunca foi bem assimilada por seus remanescentes. Pois a luta, evidentemente, não acabou. Mesmo assim, uma discussão relevante diz respeito à possível configuração de dois tipos de violação sistemática à própria existência xetá. Uma, mais conhecida e convertida em crime contra a humanidade em nível internacional, que é o genocídio. Outra, mais difundida entre antropólogos e demais pesquisadores do campo, que é a noção de etnocídio – "crime em sentido moral senão ainda formalmente jurídico" -, visa uma outra eliminação, não mais física ou corpórea, mas do espírito de um povo, como coletividade sociocultural diferenciada.
Essas possibilidades, no entanto, podem conduzir à fácil absolvição do Estado. Daí a necessidade da via da Justiça de Transição, no interior da qual a caracterização dos chamados crimes de Estado assumem grande relevância.
O caminho judicial para a restituição da terra ancestral aos Xetá encontra-se atualmente interditado em razão do obstáculo do marco temporal – segundo o qual só terão direito ao território tradicional aqueles povos que comprovadamente estavam sobre ele no dia da promulgação da Constituição atual, em 5 de outubro de 1988. Removida pelas mãos do Supremo Tribunal Federal no final do ano de 2023, referida barreira foi reposta pelo Congresso Nacional via projeto de lei, vindo então a ser mais uma vez excluída por veto do presidente Lula, para, finalmente, voltar a ser colocada por reação do Congresso ao veto presidencial. O rescaldo de todo esse emaranhado parece ser uma verdadeira armadilha rearmada pelo sistema legal encarregado justamente de assegurar os direitos dos povos indígenas.
Possibilidades outras de responsabilização, e, principalmente, reparação, podem ser suscitadas e apresentadas aos sistemas de Justiça, quer nacionais, quer internacionais.
A renovação da adversidade que deriva do marco temporal pode até surpreender, menos aos indígenas brasileiros. Resilientes como ninguém mais, a saga desses povos originários em afrontar as sucessivas tentativas de extermínio, hoje deve ao menos assegurar e orgulhar a sociedade que os envolve mas não os inclui: a luta, perseverante e digna, politiza e fortalece. Xetá, Guarani, Xokleng, Yanomami e os restantes 300 diferentes povos indígenas brasileiros, por ainda hoje não sucumbirem, já venceram. Falta chegar o dia de sua efetiva redenção. Foi nesta direção que se inscreveu a audiência pública realizada no último dia 9 de abril pela Comissão de Igualdade Racial da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, tendo na presidência o deputado estadual Renato Freitas.
*Marco Alexandre Souza-Serra (marcoalexandre.com), advogado, professor e pesquisador, coordena o Grupo de Trabalho Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires