O balanço do resultado das eleições de 2024 tem aberto inúmeros debates no interior da esquerda, particularmente no que diz respeito ao nosso programa econômico e à nossa relação com a classe trabalhadora. Acreditamos que essa abertura é necessária e positiva, e que podemos e devemos aprofundá-la.
O horizonte da esquerda tem sido pautado pela geração de empregos de qualidade, e com direitos. Julgamos que esse programa é insuficiente. O pleno emprego de boa qualidade não é possível no Brasil e nem mesmo nos países centrais do capitalismo. Um governo pode e deve melhorar o nível de empregos, de direitos e de salários, mas com muitas limitações. Defender emprego de qualidade para todos é irrealizável. Grande parte da classe trabalhadora sabe disso e demanda outras respostas que possam melhorar a sua vida pelos meios que forem possíveis.
Além disso, a sociedade burguesa se funda na propriedade baseada na exploração do trabalho alheio; mas a defesa desse interesse particular de classe aparece, anunciado como interesse universal, como propriedade fundada no mérito do próprio trabalho. O empreendedorismo é a via burguesa de emancipação do trabalho que a classe dominante precisa oferecer para se legitimar; ao mesmo tempo em que não pode leva-la às ultimas consequências: a propriedade fundada na exploração dissolve aquela fundada no próprio trabalho, falindo o empreendedor individual.
Por isso, o empreendedorismo aparece como uma saída. Mas como uma saída impossível enquanto se mantém como saída puramente individual. E, com isso, planta na sociedade a semente da frustração, tornando o terreno fértil para o fascismo. A direita, todavia, está jogando praticamente sozinha nesse campo, que tem dezenas de milhões de trabalhadoras e trabalhadores. Ela oferece um discurso muito mais atrativo para quem está empreendendo, se virando, correndo atrás. Incentiva a pessoa a se dedicar, a acreditar em si própria e aponta os impostos, a burocracia, e a fiscalização como entraves. Enquanto isso, a esquerda se limita à denúncia.
A posição ainda predominante na esquerda é de "conscientizar" as pessoas e de organizá-las para "luta", buscando revelar aos trabalhadores que o empreendedorismo individual é uma saída inviável. Mas esse é um discurso percebido como arrogante e, ele próprio, ilusório. Além disso, por trás desse empreendedorismo individual, há uma outra dimensão, mais profunda, que é a conexão entre a necessidade da sobrevivência material e as expectativas de uma vida melhor, sem privações, sem exploração e com mais liberdade. Trabalhar com carteira assinada é ter patrão e jornada fixa. E esse é um sonho que já não empolga como antes.
O nosso projeto é o de uma sociedade sem patrão, sem Estado, mas com direitos – em outras palavras, a produção cooperativa (uma forma coletiva de empreendedorismo), visando uma sociedade de produtores livremente associados. Não é simples e nem fácil fazer essa disputa. Mas ela não é apenas possível – ela é necessária. Nosso desafio é entrar em campo a partir dos engates que vinculam nosso projeto às formas de consciência produzidas pelas condições reais de existência, e que não podem simplesmente serem arrancadas da cabeça dos trabalhadores. Nosso desafio é entrar em campo e oferecer uma alternativa efetiva, de empreendedorismo coletivo, em lugar do empreendedorismo impossível, porque individual.
A garantia de igualdade de condições para a justa competição demanda também a garantia de direitos: saúde, educação, moradia e segurança, por exemplo. Além disso, oferecer uma alternativa à massa desempregada pelo avanço da tecnologia reduz a pressão sobre a força de trabalho formalmente empregada, abrindo novos horizontes de luta – caso por exemplo da luta pelo fim da jornada 6x1, que tem ganhado fôlego recentemente. A palavra “empreendedorismo” é apenas isso: uma palavra. Se nela os trabalhadores podem encontrar o horizonte de uma sociedade sem patrão e sem Estado, mas com direitos, construir essa sociedade é o que realmente importa.
Corrigir conceitualmente os trabalhadores, numa luta que não é de classe, mas gramatical, não realiza nossos objetivos. Fazemos história, mas em condições que não escolhemos. É preciso lutar a partir da realidade realmente existente, gostemos dela ou não. E é isso que nos levará à vitória.
*Carlos Virtude integra a coordenação estadual do Movimento Brasil Popular em São Paulo
**Jaime Cabral Filho faz parte da Revolução Solidária e da executiva municipal do Psol São Paulo
***Matheus Lima é da Primavera Socialista do Psol e da direção nacional da Intersindical
****Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato
Edição: Thalita Pires