Toussaint Louverture liderou a revolução haitiana que conquistou a libertação de dezenas de milhares de escravos negros da antiga colônia francesa no Haiti e abriu caminho para a proclamação da sua independência em 1804.
Esse texto é parte do livro Haiti, dois séculos de História, de minha autoria, publicado pela editora Alameda e uma homenagem que relembra a data da morte do herói da revolução haitiana em 7 de abril de 1803.
Com a revolução francesa de 1789, na qual a burguesia revolucionária destruía o antigo feudalismo e eliminava os privilégios da aristocracia, os negros escravizados no Haiti viram uma luz no fim do túnel. Em 1794 é aprovada pela Convenção revolucionária então dirigida pelos jacobinos a abolição da escravatura na França e em suas colônias. Os escravos negros do Haiti ganharam força em seu impulso libertário.
Em março de 1793 com a declaração de guerra da Espanha e Inglaterra contra a França revolucionária por conta da execução de Luís 16, as autoridades da colônia espanhola de Santo Domingo começaram a se envolver diretamente com os assuntos da colônia francesa. A antiga cooperação com a França terminou. Os espanhóis decidiram se utilizar dos escravos revoltosos para expulsar os franceses da ilha e recuperar o território para a Espanha.
Os dirigentes rebeldes Jean François, Jean Biassou e Toussaint Louverture aceitaram inicialmente a ajuda oferecida pelos comandantes espanhóis nos postos de fronteira para lutarem pela sua liberdade. Enfrentando a ofensiva tripla de britânicos, espanhóis e escravos rebeldes, as autoridades francesas coloniais decretaram em 29 de agosto de 1793 a abolição a escravidão buscando ganhar o apoio da população negra. Uma parcela de proprietários franceses não aceitou. Mas o decreto de libertação deu resultados e em maio de 1794 um dos três dirigentes mais importantes dos rebeldes, Toussaint Louverture, se somou aos franceses com suas tropas.
A rebelião dos escravos negros foi decisiva para enfrentar a ação dos franceses contrarrevolucionários comandados por César Galbaud e contrários a libertação dos escravos. A aliança das tropas de Toussaint com aquelas da república revolucionária francesa e seus comissários nacionais Sonthonax e Polverele permitiu que derrotassem os ingleses, espanhóis e o próprio Galbaud, que fugiu para os EUA em 24 de junho de 1793.
Em outubro de 1794 a ofensiva das forças francesas integradas essencialmente pelos homens negros de Toussaint obrigou os espanhóis a abandonar seus postos fronteiriços e recuar. Nesse momento, chegava a notícia de que terminara na Europa a guerra da Espanha contra a França. Havia sido firmado o tratado da Basiléia no qual a França restituiria os territórios conquistados na península ibérica em troca da parte espanhola da ilha de Santo Domingo. O tratado estabelecia que os habitantes espanhóis teriam um ano para se mudar.
Para desespero dos colonos espanhóis, os franceses defendidos principalmente por soldados negros se convertiam da noite para o dia em donos oficiais de toda a ilha e contra a resistência espanhola de séculos. Os colonos espanhóis, porém, começaram a reagir contra o acordo. Na igreja católica houve divisões e alguns sacerdotes quiseram permanecer por simpatias com a revolução francesa ou por se distanciarem da igreja tradicional.
Mas a retirada de espanhóis se iniciou e em abril de 1796 saíram da ilha cerca de 1800 pessoas. Os franceses, por outro lado, queriam reter a população espanhola dona de escravos que se espantara com a política abolicionista francesa. A revolta escrava chegou ao lado espanhol. Em outubro de 1796 cerca de 200 escravos do engenho de Bocanigua se rebelaram contra seus donos, aumentando o medo de insurreição geral da população negra. O governador espanhol tentou paulatinamente ir entregando zonas da colônia aos franceses. A situação tornou-se mais complexa.
Em março, o comandante francês Donatien Rochambeau se negou a tomar posse dos territórios cedidos pelos espanhóis usando as tropas de soldados negros. Nesse meio tempo a ofensiva inglesa foi retomada, o que obrigou o comandante francês a adiar a ocupação de toda a ilha com tropas brancas. Em fins de 1796 da Grã-Bretanha declarou guerra contra a Espanha. O governador espanhol concentrou suas tropas na capital de Santo Domingo e abandonou praticamente as regiões do interior. Em março de 1797 havia 1116 soldados na cidade. Em 1798 e nos anos seguintes o problema do governador dependia completamente do que aconteceria em Santo Domingos e na França. No final de abril de 1798 os ingleses foram derrotados.
No final de março de 1798 chegara uma nova missão francesa que tinha como preocupação principal tirar o poder político e militar do líder negro Toussaint Louverture. Os enviados franceses tiveram que abandonar a ilha no mês de outubro.
De fevereiro de 1799 a agosto de 1800 nenhum representante do governo francês oficialmente autorizado tomou posse do Santo Domingo espanhola. Em luta contra as forças do general André Riad, as tropas de Toussaint não tiveram condições de unificar a ilha como desejavam e completar a libertação do território.
Destaque-se que seu objetivo inicial não era a independência do Haiti, mas a autonomia da ilha com liberdade para os negros no contexto de uma república francesa revolucionária e democrática. Mas ele não recebeu autorização do governo de Paris para entrar na ex-colônia espanhola. A conjuntura revolucionária na França sofrera grandes transformações, os jacobinos foram derrotados e guilhotinados.
Uma fração mais conservadora da burguesia francesa, os girondinos, sob os governos do Diretório assumira o poder dispostos a rever muitas das medidas mais radicais da revolução, entre elas a abolição da escravidão. A ascensão de Napoleão consolidou a virada conservadora da revolução. Era de fato um inconveniente sério para os planos de Napoleão e da burguesia francesa ter um general negro e um exército de libertos à frente da antiga e rica colônia. Em maio de 1800 mensageiros do governo francês informavam que Toussaint não estava autorizado a tomar posse da parte espanhola da ilha sob pena de morte. Mas o general negro obrigou o representante francês a assinar a autorização de ocupação de Santo Domingo em junho de 1800.
Em 26 de janeiro de 1801 Toussaint ocupou a capital de Santo Domingo. Ele tomou medidas para respeitar os habitantes e aperfeiçoar a administração. Melhorou as estradas e tentou implantar uma revolução agrária para transformar todo o sistema de produção da antiga ex-colônia espanhola. Ele criou tribunais de primeira instância nas duas partes da ilha. Ordenou que fosse feito um inventário preciso dos recursos disponíveis e aboliu vários impostos. Buscou conquistar a simpatia dos proprietários do antigo lado espanhol da ilha que sabia, o odiavam.
A escravidão foi abolida imediatamente com um decreto de 27 de agosto de 1801. Implantou um sistema monetário para facilitar as operações financeiras das regiões. Também tomou medidas para limitar a concessão de terra a novos proprietários. Tentou introduzir a plantação de cana-de-açúcar, café, algodão e cacau para superar a pobreza da ex-colônia espanhola que se resumia à criação de gado.
A reação de Napoleão e da metrópole francesa paralisaram a revolução agrária e social em andamento. Com o fim temporário da guerra na Europa a França teve tempo para olhar para as Américas. Napoleão via a retomada de Haiti como um ponto de apoio estratégico para potencializar a exploração da Louisiana francesa (depois vendida aos EUA). Era preciso também aproveitar a paz com a Inglaterra que permitia à armada francesa navegar livremente pelo Atlântico sem enfrentar o poderio naval inglês.
Em janeiro de 1802 foram despachados cerca de 20 mil homens sob o comando do general Charles Victor Emmanuel Leclerc para esmagar as forças de Toussaint. Em fevereiro de 1802 a gigantesca expedição francesa ocupou a capital do Haiti para restabelecer a escravidão em Santo Domingo. Os espanhóis apoiaram plenamente a invasão francesa e da mesma forma a população mestiça do lado francês, que era em sua maioria proprietária, mais simpática aos franceses e incapaz de aceitar um governo dos negros.
A política de castas por cor da pele implementada pelos antigos colonos franceses para tentar dividir os negros havia produzido seus efeitos, muito embora a divisão social central fosse delimitada pela posse de propriedades. Um governo militar foi também estabelecido pela França na parte espanhola da ilha.
No dia 5 de maio de 1802 Toussaint negociou a rendição. Um mês mais tarde os franceses que haviam assegurado sua liberdade o prenderam e o levaram para a Europa. Durante meses ele foi torturado e interrogado no Fort-de-Joux nas geladas montanhas do Jura na França. Como registrou o historiador caribenho C. L. R. James: “Napoleão decidiu matá-lo por maus-tratos, frio e fome”.
Toussaint estava então com 57 anos e morreria nas masmorras úmidas e frias, distante e isolado do seu quente e vibrante Haiti, em 7 de abril de 1803.
A restauração da escravidão na ilha e colônia francesa de Martinica deixara claro para os já experimentados generais haitianos liderados por Toussaint como Jean Jacques Dessalines, Alexandre Pétion e Henry Christophe que o mesmo aconteceria em breve no Haiti. A resistência foi rearticulada e a revolução recomeçou. O comandante francês, general Leclerc, morreu em novembro de 1802 sendo substituído pelo general Donatien Rochambeau.
Nesse mesmo período a guerra entre França e Inglaterra recomeçava na Europa. Os reforços para as tropas francesas no Haiti diminuíam com a intensificação dos combates na Europa e a ação da armada inglesa bloqueando os barcos franceses. Em abril de 1803 Napoleão encerrou suas ambições coloniais na América ao vender a imensa Louisiana aos EUA, do qual certamente esperava apoio para a guerra contra a Inglaterra.
Em novembro de 1803 o general francês Rochambeau se retirou para a Jamaica. As tropas francesas remanescentes recuaram para a Santo Domingo espanhola e abandonaram o território francês definitivamente. A vitória total ocorreria em 1804 com a Proclamação da Independência do Haiti e liderava por um dos generais de Toussaint Louverture, Jean Jacques Dessalines.
Edição: Rodrigo Durão Coelho