O Haiti vive uma crise política, humanitária e de segurança pública agravada com a fuga de quase 3,6 mil presos de uma penitenciária de Porto Príncipe, em 2 de março. Os detentos conseguiram escapar durante um ataque à prisão por gangues armadas. Com o caso, o governo decretou estado de emergência na capital. Um toque de recolher também chegou a vigorar no país caribenho.
Na semana passada, o primeiro-ministro do Haiti, Ariel Henry, renunciou ao cargo. Ele estava no comando do país desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, quando começou a escalada de violência. Um conselho de transição foi anunciado para governar o país. Durante um evento em Washington nesta terça-feira (19), a titular do Comando Sul dos Estados Unidos, general Laura Richardson, não descartou o envio de forças armadas ao país.
Para o historiador Everaldo de Oliveira Andrade, autor do livro Haiti: dois séculos de história, uma solução apenas internacional não é suficiente para resolver a crise.
"A situação não vai melhorar a partir de uma solução criada fora do Haiti. Acho que é muito importante dizer que o Haiti sofre com intervenções, com supostas soluções construídas por países de fora sem consulta à população há décadas. E esse caos construído ao longo de décadas explodiu agora. Então, esse governo, suposto governo, essa solução, quem está articulando ela? Os Estados Unidos, a França, a ONU, os haitianos estão participando nas organizações? Eu acho muito difícil uma saída rápida, mesmo do ponto de vista da situação da segurança pública no Haiti", argumenta.
O historiador também comenta a suspensão por parte do Quênia de enviar policiais para liderar uma missão internacional de segurança supervisionada pelas Nações Unidas enquanto se forma o conselho presidencial de transição de governo.
"Há muitas incertezas e essa ideia de uma intervenção militar, ou de uma intervenção vinda a partir de policiais do Quênia, também está muito aquém da situação caótica que vive a capital do Haiti e várias cidades do interior. Então, eu acho que eu não sou muito otimista no momento pra ver uma solução rápida para o que está acontecendo lá", segue Everaldo Andrade.
Grupos paramilitares
Agora sem governo, o país se encontra cada vez mais dominado pelas gangues. O historiador pontua que essas gangues não são só de "bandidos comuns", mas muitas delas se formaram na ditadura haitiana.
"Primeiro, é importante dizer que há uma triste tradição – não é só no Haiti, mas no Haiti em particular –, de grupos armados que foram grupos paramilitares que eram utilizados durante a ditadura do François Duvalier, o chamado Papa Doc. Ele e o filho dele governaram o Haiti de 1957 a 1986. E eles criaram uma milícia que reprimia a população. Era um grupo paramilitar, não era polícia, não era exército. Era um grupo político de auxílio ao grupo no poder", explica.
"Com o fim da ditadura, a partir de 1987, vários desses grupos, ou desses paramilitares, se transformaram em bandidos. E alguns deles continuaram articulados com grupos políticos. Uma outra situação também: esses grupos armados não são só de bandidos comuns. São grupos paramilitares com relações políticas, com grupos políticos do Haiti e de fora do Haiti. Eles têm armamentos, têm munições e o Haiti não fabrica munições, não fabrica armas. Elas vêm em grande parte por tráfico ou através de contrabando dos Estados Unidos. Então, essa fonte de violência tem uma origem que não se explica pelo crime comum de quadrilhas e bandidos. Não, ela tem laços com grupos econômicos e políticos poderosos dentro e fora do Haiti", denuncia Everaldo.
Em uma semana, quase 17 mil pessoas se viram obrigadas a deixar suas residências na região metropolitana de Porto Príncipe por causa da ação violenta de grupos armados. O deslocamento aconteceu entre os dias 8 e 14 de março, segundo a Organização Internacional de Migrações (OIM).
A situação tende a piorar se as organizações da sociedade civil não forem consultadas e ouvidas. "Tem uma esquerda, tem uma democracia, tem igrejas, tem organizações sindicais no Haiti. Não tem só bandos armados e gangues. Só que eles não são ouvidos. Vai ser muita matança, muita violência para poder controlar a situação que não foi criada pelo povo haitiano. Por que os sindicatos, as organizações populares, os governos progressistas não conversam com as igrejas populares que têm enraizamento popular? Com as redes populares de organizações que existem no Haiti, que são conhecidas, e permitam, ajudem eles a construir uma solução?", questiona.
"Eles têm que construir uma solução. Isso tem que ser respeitado e tem que ser ouvido. E nas últimas décadas, desde a década de 80, inúmeras intervenções da ONU sempre tiveram o mesmo roteiro. Constrói o caos, provoca o caos, para que o povo haitiano fique de joelhos pedindo ajuda, desesperado e aceitando qualquer solução. Essa é a situação que foi criada", diz o historiador.
A entrevista completa, feita pela apresentadora Luana Ibelli, está disponível na edição desta quarta-feira (20) do Central do Brasil, que está disponível no canal do Brasil de Fato no YouTube.
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O Central do Brasil é uma produção do Brasil de Fato. O programa é exibido de segunda a sexta-feira, ao vivo, sempre às 13h, pela Rede TVT e por emissoras parceiras.
Edição: Nicolau Soares