Haiti

EUA e Haiti: uma história de intervenções e lucro sobre a barbárie

Os EUA interviram diversas vezes no Haiti, e, em cada uma delas, deixou uma país ainda mais mergulhado no caos

Brasil de Fato | Nova York (EUA) |
Quem se beneficia do caos é o complexo industrial militar dos EUA, que vende mais armas e munições - AFP

O Haiti vive hoje uma grave crise. De acordo com a ONU, mais de 80% do território da capital, Porto Príncipe, está controlado por gangues. Rapidamente, a palavra intervenção volta a ser falada - mas seria essa a solução?

O que o país vive hoje é uma escalada de uma crise que se acentuou após o terremoto de 2010, mas a instabilidade vem desde a independência, em 1804. Na época, a revolução da população escravizada foi duramente atacada por outros países, e o reconhecimento da independência só veio com o pagamento de uma multa aos franceses que deixou o Haiti em estado de eterna dívida.



O país também passou por uma série de intervenções estadunidenses no último século. Entre 1915 e 1934, o Haiti foi ocupado pelos Estados Unidos, um momento importante para entender a realidade atual.

Uma intervenção que deixou marcas

“Mais do que qualquer coisa, os EUA treinaram um exército”, explicou o antropólogo Greg Beckett, da Western University, ao Brasil de Fato, “e treinaram um exército que só fez uma coisa na história haitiana, que foi atacar civis haitianos”. 

Becket explica que “esse exército se tornou a base de apoio de governos autoritários durante o século 20 que os EUA apoiaram. Na era mais recente, depois da ditadura, os EUA intervieram no Haiti repetidas vezes, desde os anos 90. Intervieram politicamente. Seja via missões da ONU ou comandadas pelos EUA , entre outros tipos de intervenção. É bem nítido que essas intervenções foram pensadas para bloquear qualquer tipo de política progressista no Haiti.”

A intervenção do início do século 20 foi comandada sobretudo por estadunidenses sulistas, da região mais racista dos EUA. No Haiti, um país com uma população 95% negra, os estadunidenses deram mais poder aos cidadãos de pele clara, sobretudo imigrantes judeus e árabes. Hoje, eles são a elite econômica, e muitos nem sequer vivem no país.

Jean Eddy Saint Paul, haitiano e professor de sociologia do Brooklyn College, falou sobre essa divisão racial de classe no Haiti:

“Você pode ter pessoas no Haiti que têm um passaporte haitiano, que falam crioulo haitiano, que comem a comida típica haitiana etc… Mas na cabeça deles, eles nunca se consideraram haitianos. Porque eles veem o Haiti como  um lugar para transações econômicas”, diz o professor.

Milícias armadas para sustentar o poder

Durante décadas, líderes políticos apoiados por essa elite econômica utilizaram milícias armadas para se manter no poder. Mais recentemente, após o terremoto de 2010, que devastou o país, os EUA pressionaram para que eleições fossem realizadas.

O candidato apoiado pela Casa Branca era Michel Joseph Martelly, um músico que usava o nome artístico de Sweet Micky. Ele tem ligações com o tráfico de drogas e anos antes tinha lançado uma música entitulado Bandi Légal (Banditismo Legal em tradução livre), uma espécie de símbolo do que aconteceu depois. Martelly presidiu o país entre 2011 e 2016. 

“Ele dizia que seu governo era um ‘banditismo legal’”, conta Jean Eddy, “então ele foi  muito instrumental em fundir o povo haitiano e a sociedade haitiana com esses grupos para quem ele dava armas e munições para que protegessem o seu poder”.

No contexto pós-terremoto, uma onda de corrupção também devastou o país, com uma disputa crescente entre grupos econômicos e políticos sobre quem iria gerir os fundos de apoio financeiro para a reconstrução do Haiti. Essa disputa deu ainda mais poder aos grupos armados.

“Existiu um grande esforço para reconstruir o Haiti depois do terremoto de 2010, que foi um dos maiores desastres da história moderna. E parte desse esforço foi em forma de bilhões de dólares indo para o Haiti”, conta Beckett, “parte da história tem que ver com o que aconteceu com esse dinheiro. Nós sabemos que ele não foi usado para reconstruir a infraestrutura no Haiti. Parte foi reconstruída, é claro, mas não tanto quanto se esperava com essa quantidade de dinheiro”.

O professor estadunidense explica que “uma das coisas que aconteceu é o que podemos chamar de “ganguerização” do Estado haitiano. O surgimento de dois grupos políticos que querem controlar o Estado para controlar esses fundos de reconstrução. E parte disso tem sido esses grupos financiarem gangues para que eles se mantivessem no poder”.

Um problema lucrativo

Em 2021, o presidente Jovenel Moise foi assassinado. No lugar dele ficou Ariel Henry, nome chancelado pelos Estados Unidos. 

“Ariel Henry não foi eleito pelo povo pobre haitiano”, explica Jean Eddy, “ele era muito impopular e os EUA apoiaram o seu regime por mais de 30 meses. Ele nunca chamou uma eleição e sob o seu governo líderes de gangues ganharam mais e mais poder”.

No dia 11 de março, Henry renunciou ao cargo com um vídeo gravado em Porto Rico e postado nas redes sociais. A mudança acontece às vésperas do envio de tropas estrangeiras ao país, desta vez lideradas pelo Quênia.

Jean Eddy Saint Paul, no entanto, não acredita que mais uma intervenção vá resolver o problema. Muito pelo contrário, não resolver o problema é um negócio muito lucrativo para os Estados Unidos.

“É claro, essas armas são produzidas nos Estados Unidos da América”, diz o professor haitiano. “Os EUA são um império, e a única motivação dos EUA, os mestres do sistema, você sabe, as corporações ricas, é fazer mais dinheiro. Então, claro, se o Haiti é um país onde não se tem lei e ordem, é claro que os EUA vão tirar proveito para vender mais armas e munições, porque isso é muito bom para o complexo industrial militar”.

Edição: Rodrigo Durão Coelho