A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) se reuniu, nesta sexta-feira (6), no Haiti, em Porto Príncipe, com familiares de alguns nove jovens mortos em Paraisópolis, no Baile da 17, em dezembro de 2019, para falar sobre ações militares em bailes funks e o genocídio de afrodescendentes no Brasil.
A audiência é realizada ao mesmo tempo em que a Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) admite que as mortes decorreram de uma ação dos agentes de segurança paulista, mas alega legítima defesa e evoca o excludente de ilicitude.
A reunião foi convocada após a Coalizão Negra por Direitos denunciar o caso na CIDH. Na denúncia, a coalizão descreve o que aconteceu naquele primeiro de dezembro e afirma que “o discurso oficial, somado às ações concretas da Polícia Militar, configuram criminalização de expressões culturais da periferia e genocídio contra a população negra, jovem e moradora de periferia. As respostas oficiais do governo de São Paulo, nesse primeiro momento, se esforçam em retirar qualquer responsabilidade dos fatos pela atuação policial”, diz o texto.
Cinco dias após o massacre, a Comissão já havia se posicionado sobre o caso ao cobrar o Estado brasileiro a investigar as mortes de forma imparcial, bem como a reparar às vítimas e os familiares.
Na época, a CIDH lembrou que, em novembro de 2018, durante uma visita ao Brasil, identificou que as forças policiais brasileiras realizam operações em favelas sem a observância de normas internacionais de direitos humanos e sem mandados judiciais.
“Legítima defesa”
O relatório final da Corregedoria da PM-SP concluiu que agentes da corporação foram responsáveis pela morte dos nove jovens em Paraisópolis.
O órgão da corporação culpou a ação policial desencadeada na madrugada do dia 1º de dezembro, mas falou em legítima defesa como excludente de ilicitude para pedir que os agentes não sejam punidos. No entanto, o Ministério Público Federal (MPF) solicitou novas diligências.
No documento, obtido pela Folha de S. Paulo, o capitão Rafael Oliveira Casella, presidente do Inquérito Policial Militar (IPM) que investiga o caso, afirma que não houve crime, uma vez que os policiais teriam agido “em legítima defesa própria e de terceiros” depois de serem agredidos com “garrafas, paus, pedras e demais objetos” pelas pessoas no local.
“Aponto o nexo de causalidade entre a ação dos 31 policiais militares averiguados e a morte das nove vítimas na comunidade de Paraisópolis, porém marco que houve excludente de ilicitude da legítima defesa própria e de terceiros”, diz trecho do documento.
Gravações de moradores mostram agentes acuando e espancando jovens em ruelas e becos. Os policiais envolvidos contam que estavam perseguindo dois suspeitos em uma motocicleta, que teriam atirado em meio aos participantes do baile e que os mortos e feridos foram pisoteados em meio à confusão.
Moradores contestam a versão, e a Corregedoria não confirmou que disparos teriam sido feitos por bandidos. “Acuados, os militares sozinhos naquele momento, tentam utilizar meios não letais, a fim de repelir uma injusta agressão pontual e iminente, zelando pela integridade física daquela equipe”, diz um trecho.
“Neste momento há um tumulto generalizado naquele local, assim iniciando uma evasão em massa. Nesta ocasião, por falta de conhecimento do local (geografia), bem como interesse em fugir daquela autoridade pública, muitas pessoas optaram por adentrar a uma viela (Viela do Louro) existente na Rua Ernest Renan, entre as ruas Herbert Spencer e Rudolf Lotze, onde houve o pisoteamento e aglomeração.”
É a partir desse momento que a Corregedoria concluiu que houve uma relação de causalidade entre a ação policial e a morte dos nove jovens. Além de citar a ação dos agentes como responsável, também culpou pais e mães dos jovens pelas mortes: “Notadamente, todos negligenciaram o ‘pátrio poder’ e subsidiariamente têm suas parcelas de responsabilidades pela omissão na guarda dos menores.”
Denúncias
A reunião foi convocada após a fusão de duas denúncias feitas pela Coalizão Negra por Direitos sobre o aumento da violência policial no Brasil, mais especificamente em São Paulo e no Rio de Janeiro.
De acordo com o Observatório de Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), a letalidade policial aumentou 46% somente no Rio de Janeiro, entre os meses de janeiro e junho de 2019, em comparação ao mesmo período de 2018; em São Paulo, o aumento foi de 12% entre os anos citados.
Uma das denúncias sobre a ação policial em bailes funks em São Paulo cita, além do massacre de Paraisópolis, outros casos de violência praticada por agentes de segurança.
Em novembro de 2018, três pessoas morreram pisoteadas em um baile funk de Guarulhos, Grande São Paulo, após dispersão provocada por ação policial.
Em outubro de 2019, na Brasilândia, Zona Norte paulistana, durante uma ação policial contra um baile funk, policiais militares invadiram uma casa, encurralam mãe e filho em uma escada e agrediram o garoto com um skate. Um mês depois, uma adolescente de 16 anos foi baleada no olho durante dispersão de um pancadão, em Guaianases, na Zona Leste.
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, a PM realizou, em 2019, 7.597 operações em 14 mil pontos para “garantir o direito de ir e vir do cidadão e impedir a perturbação do sossego”.
Uma segunda denúncia também foi apresentada pela Coalizão Negra por Direitos: sobre as atuais políticas e protocolos de uso da força implementados pela polícia brasileira, em especial no Rio de Janeiro.
Nesta, a Coalizão cita especificamente o caso das seis crianças assassinadas por militares na capital fluminense, em 2019: Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Ágatha e Kethellen. “Seis crianças que em 2019 tiveram suas vidas interrompidas pela violência perpetrada pela polícia militar no Rio de Janeiro", diz o texto.
Edição: Leandro Melito