"Queremos deixar absolutamente claro que fornecemos um quórum para a resolução. Trabalhamos arduamente para chegar a um acordo majoritário. Apesar da irregularidade que devemos reconhecer na forma como lidamos com esta questão. Sejamos honestos, não percamos nossa honestidade intelectual: se houvesse outro setor político governando o país, estaríamos gritando aos céus. Vamos dizer isso com todas as letras", afirmou um dos principais porta-vozes da "oposição colaboracionista", o deputado Nicolás Massot, no congresso argentino.
Após três dias de um dos mais longos debates da história do país, na última sexta-feira (2) o governo de ultradireita de Javier Milei conseguiu uma "aprovação geral" para seu polêmico megaprojeto "Ley Bases y Puntos de Partida para la Libertad de los Argentinos" - conhecido como a "lei omnibus".
Embora esse seja o primeiro passo para a aprovação, o projeto de lei ainda tem um longo e difícil caminho legislativo pela frente. A "lei omnibus" é um ambicioso projeto do governo que pretende modificar vários aspectos sociais, econômicos e políticos do país. Este projeto propõe a redução dos direitos trabalhistas e o aumento da repressão aos protestos sociais. Ao mesmo tempo, dá poderes extraordinários ao presidente para legislar sem passar pelo Congresso e permite uma massiva privatização de empresas públicas, entre outras coisas.
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A votação ocorreu de um modo irregular: o conteúdo do projeto de lei não era conhecido em detalhes e, no momento da votação, ainda estava sendo negociado entre o partido do governo e as diferentes forças da "oposição colaboracionista". Mesmo sem um acordo nas negociações sobre o conteúdo final do texto, ele foi aprovado com 144 votos positivos contra 109 votos negativos.
O presidente do principal bloco de oposição (Unión por la Patria) ilustrou a situação afirmando que "95% de nós aqui sentados não sabemos o que será considerado quando chegar a hora da votação".
Poucas horas antes da votação, o governo emitiu uma declaração nas mídias sociais anunciando que daria por terminado o debate. Pressionando seus legisladores a votar imediatamente - embora não se soubesse o texto exato que estava sendo aprovado.
A urgência da votação se deveu ao desejo do governo de chegar a uma decisão antes da viagem que o presidente Milei fará a Israel na segunda-feira (5), onde deverá se reunir com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o presidente Isaac Herzog. O governo pretende, dessa forma, chegar a Tel Aviv - um aliado estratégico para o governo de extrema direita - para demonstrar que estão sendo tomadas medidas concretas em direção às mudanças estruturais que pretende fazer.
Entretanto, para que a lei entre em vigor, ela ainda tem um longo e complicado caminho a percorrer. Com a "votação da lei em geral", o Congresso apenas aceitou o projeto de lei, que ainda precisa ser aprovado artigo por artigo. Em um recesso de três dias, onde se espera que os artigos a serem incluídos no texto final sejam finalizados, o projeto de lei terá que ser submetido a votação na próxima terça-feira (6) para aprovação artigo por artigo.
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A minuta original do governo contava com 664 artigos, que após negociações foram reduzidos para aproximadamente 382. Entre as seções que foram removidas encontrava-se todo o capítulo fiscal, um aspecto particularmente sensível, pois está diretamente relacionado às exigências do Fundo Monetário Internacional para a Argentina.
Os artigos que forem aprovados na votação a partir de terça-feira (6) serão enviados ao Senado, onde o projeto também terá de ser aprovado ou rejeitado. Esse processo pode levar várias semanas e, enquanto isso, tudo indica que ele continuará sendo emendado. Quanto restará do projeto de lei original elaborado pelo governo e quanto as modificações o tornarão praticamente uma nova lei elaborada pela "oposição colaboracionista", ainda está por ser visto.
Milei tinha proposto aprovar a lei rapidamente. Determinado a dar algum golpe de mão rápido que mudará quase toda a estrutura legal do país de uma só vez. "Ou eles fazem parte das forças de mudança ou fazem parte do fracasso do passado", repete o ultradireitista com desdém, atacando as funções do Congresso.
O fracasso manifesto dos últimos governos joga a seu favor. Mas o tempo de graça que a paciência social concede nunca é eterno. Ele sabe que o ajuste de choque que está implementando testará, talvez como nunca antes, a paciência de uma sociedade cansada, que vive cada vez pior há anos. Compartilha a lição que Macri afirma ter aprendido com seu governo: as reformas estruturais devem ser implementadas de forma rápida e decisiva. Nesse implacável raciocínio, a busca de consenso só pode levar a um novo fracasso de suas ambições. Dificilmente essa visão conseguirá se compatibilizar com um espírito democrático.
A queda de braço de Milei consiste em tudo ou nada. Ele sabe que o experimento ao qual pretende submeter o país, mais cedo ou mais tarde, enfrentará a resistência de uma classe trabalhadora com uma enorme tradição de mobilização.
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No entanto, a própria fraqueza legislativa da ultradireita, junto com suas próprias deficiências, além da resistência de uma enorme diversidade de setores afetados pelo megaprojeto de lei, conspirou para atrasar os prazos estipulados pelo governo.
Embora o partido governista se canse de repetir que venceu com 54% dos votos e que isso lhe dá a legitimidade necessária para fazer o que quiser, isso é uma meia verdade. Os 54% dos votos foram obtidos em um segundo turno, entre apenas duas opções. Além disso, os votos nunca são um cheque em branco. Por outro lado, a realidade é que o resultado da eleição geral resultou em um Congresso fragmentado e sem maiorias.
Dos 257 assentos na Câmara dos Deputados, o partido de extrema direita de Javier Milei tem apenas 40 representantes. O partido governista mantém uma aliança estreita com o PRO, o partido do ex-presidente Mauricio Macri, que tem 39 deputados. Eles afirmam não co-governar, mas vários de seus líderes fazem parte dos ministérios de Milei - como a ex-candidata Patricia Bullrich - enquanto seus legisladores votam a favor das iniciativas do governo sem objeção.
A oposição tem 104 deputados. A principal força de oposição tem 99 parlamentares, ligados ao antigo governo Unión por la Patria. Enquanto os 5 restantes fazem parte da Frente de Unidade da Esquerda e dos Trabalhadores (FITU).
As 74 cadeiras restantes fazem parte das várias "oposições colaboracionistas". Tanto o partido do governo quanto a oposição precisam dos votos desse setor. Até agora, sua estratégia tem sido a de negociar reformas com o governo.
Com a aprovação geral do megaprojeto de lei, o governo obteve mais um alívio do que um triunfo. Embora seja, sem dúvida, uma derrota para os setores mobilizados contra a reforma.
Foram vários dias de debate em que o partido governista mostrou toda a sua fraqueza institucional. As poucas intervenções feitas pelos libertários exibiram uma incapacidade manifesta de defender seu próprio projeto. Sem praticamente nenhum argumento para acrescentar ao debate, suas intervenções se limitaram a atacar a administração peronista anterior.
"Vocês vão trabalhar hoje? Porque até agora nós fomos os únicos que defendemos a lei. Se dependesse de vocês, isso já teria fracassado", recriminou com raiva o presidente do principal bloco aliado ao partido governista, Cristian Ritondo. O discurso cheio de ironia ocorreu na manhã de quinta-feira e estava dirigido ao líder do bloco libertário.
Poucas vezes uma votação foi submetida a uma situação tão grotesca. Em meio a um Congresso totalmente fragmentado, onde o partido governista representa uma minoria parlamentar, foi a própria "oposição colaboracionista" que reuniu os votos para obter a aprovação. Proporcionando ao partido governista uma salva-vidas que permitirá que o governo que não se naufrague.
Muitas coisas parecem estar em jogo. No centro da batalha reside uma questão central: a possibilidade de que Milei consiga realizar um novo ciclo de reformas neoliberais. Mas, para isso, ele deve primeiro conseguir consolidar seu controle sobre o poder, e não apenas a resistência do parlamento, mas, acima de tudo, a resistência nas ruas.
Durante os três dias de debates legislativos, houve grandes manifestações em rejeição ao megaprojeto de lei. Nas três ocasiões, o governo empreendeu uma forte repressão ilegal que deixou mais de 150 pessoas feridas, incluindo mais de 30 profissionais da imprensa, e uma dúzia de pessoas foram detidas.
Como resultado desses eventos, os sindicatos de imprensa e as organizações de direitos humanos apresentaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra o governo de Javier Milei e sua ministra da Segurança, Patricia Bullrich, pelos graves atos repressivos. A denúncia se soma às várias apresentações feitas à CIDH sobre as medidas repressivas adotadas pelo governo desde que assumiu o cargo em 10 de dezembro.
Menos de dois meses após a sua posse, o sentimento de frustração e angústia parece estar se espalhando. Além dos níveis extremamente altos de rejeição do sistema político de forma geral, vem ocorrendo uma vertiginosa deterioração na aprovação dos rumos do governo.
Todas as pesquisas de opinião concordam em relação a uma queda na imagem positiva de Milei. Após a brutal medida de desvalorização em dezembro, a inflação se acelerou nas últimas semanas, punindo ainda mais o já deteriorado poder de compra. Enquanto isso, o caos do debate no Congresso sobre o "megaprojeto" é percebido como uma falta de direção, deteriorando as expectativas de um horizonte de melhoria no curto prazo.
De acordo com uma pesquisa de opinião publicada recentemente pela consultora Zuban Córdoba, estima-se que mais de 64% da população rejeita, de alguma forma, a aprovação do megaprojeto de lei.
Nesse contexto complexo, o sistema político balcanizado procura restabelecer seu curso. Sem uma liderança clara e com um conflito social que está aumentando em uma velocidade nunca vista antes, o governo de Milei estará enfrentando suas primeiras escaramuças nas próximas semanas.
Edição: José Eduardo Bernardes