VITÓRIA

Famílias do MST em PE conquistam na justiça o direito à terra após décadas de impasse

Assentados pelo Incra na década de 1990, trabalhadores estavam desde 2018 ameaçados por uma ordem de despejo

Brasil de Fato | Recife(PE) |
O sistema de abastecimento d'água foi uma das conquistas do assentamento ao longo dessas décadas de impasse judicial - Afonso Bezerra

A Justiça Federal de Pernambuco homologou, no último dia 15 de dezembro, um acordo entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a empresa Negócios Imobiliários sobre as terras do atual assentamento Antônio Conselheiro, na cidade de Gameleira.

A negociação garantiu a permanência de quase 100 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no assentamento. O impasse sobre as terras durou quase trinta anos e foi marcado por muita luta, diversos processos judiciais e até greve de fome

A negociação foi mediada pela Comissão de Conflitos Fundiários, do Tribunal Regional Federal da quinta região, no Recife. 

Com essa decisão, as terras de São Gregório, Alegre 1 e Alegre 2, que estão no assentamento Antônio Conselheiro, foram adquiridas pelo Incra e permanecem destinadas para fins de reforma agrária. 

"É uma decisão válida que gera efeitos, de modo que, com ela, as famílias estão finalmente, depois de 26 anos, estáveis no assentamento em que moram. Ou seja, não existe mais, a priori, ameaça a sua presença, a sua permanência nas terras de São Gregório, Alegre 1 e Alegre 2", pontuou o advogado do setor de direitos humanos do MST, Roberto Efrem Filho. 

História de luta

Em 1995, os trabalhadores do MST ocuparam as terras de uma usina de açúcar da região. Depois de vários despejos e uma forte mobilização de massa, o MST conseguiu, junto ao Incra, o título de posse. O órgão constatou, naquela época, que a área em questão era improdutiva e, por isso, poderia ser destinada para a Política Nacional de Reforma Agrária. 

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Uma decisão de primeira instância, na justiça, também reconheceu a desapropriação feita pelo Incra. 

"Em 1996, teve uma greve de fome para garantir a desapropriação, foram 14 pessoas na greve de fome, para garantir a desapropriação desse assentamento, São Gregório e Alegre, e o assentamento Normandia, em Caruaru. Eu fui um dos que estavam e participei da greve de fome", recorda João Batista, um dos assentados que participaram da ocupação das terras, ainda na década de 1990. 

"Este foi um caso emblemático para o país inteiro. Tanto é que as terras são gigantes. E a luta por essas terras foi longa. Até que houve a ocupação, a vistoria do Incra e o decreto presidencial", recorda Roberto Efrem. 

Desde então, o Incra e a empresa que reivindicava a posse das terras travaram uma longa disputa judicial. Inicialmente, as terras eram ligadas a Usina Estreliana. Os advogados de defesa, ainda no final dos anos 1990, questionaram a validade do decreto presidencial que confirmava a improdutividade das terras e a destinação delas para Reforma Agrária.

Eles acionaram o Supremo Tribunal Federal com mandado de segurança para contestar a legalidade do decreto, na época assinado pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. 

A tese dos advogados foi acolhida depois pelo Supremo Tribunal Federal. Mas, na sequência, uma decisão da primeira instância apontou que o suposto erro formal do Incra não poderia prejudicar as famílias que estavam assentadas na região. 

"Apesar de conhecer a decisão dos ministros do STF, que declarou o decreto presidencial ilegal, esse juiz decidiu pela manutenção do assentamento, sob um argumento que nós, que acompanhamos o caso há bastante tempo, continuaríamos acionando: o de que aquela centena, mais de centena de famílias, de trabalhadores rurais, que já estavam assentados naquelas terras não poderiam ser prejudicados em razão de um erro anterior do Incra. Os direitos dessas famílias teriam prioridade, primazia em relação aos direitos da usina.", explica Roberto Efrem. 

O caso vai parar no Tribunal Regional Federal da Quinta Região (TRF-5), no Recife, que representa a segunda instância. Segundo Efrem Filho, o colegiado formado por três desembargadores "votou favoravelmente ao argumento dos advogados da usina, na apelação e, portanto, segundo esses desembargadores do Tribunal Regional Federal da Quinta Região, a usina teria direito de propriedade e posse sobre o imóvel, tendo em vista que o decreto era ilegal."

A decisão demorou muito tempo para ser tomada e, enquanto ela não acontecia, a ministra do Supremo Tribunal Federal à época, Ellen Gracie, afirmou que as famílias deveriam permanecer nas terras até o caso ser transitado e julgado.

Em 2018, o caso foi concluído favorável à usina e, com essa decisão, veio a ordem de despejo das famílias.

Enquanto corria a disputa judicial, o assentamento crescia e tomava forma, com escolas, sistema de abastecimento, igrejas, além dos hectares destinados para a produção de alimentos. Mesmo assim, ao longo desse período, as famílias viviam ameaçadas por ordens de despejo. 

"Mexeu muito com as famílias, principalmente os idosos. A gente teve muitos problemas do emocional dos idosos, porque cada momento, cada ordem de despejo que vinha, era uma ordem de despejo que vinha, mas que vinha trazer com muito impacto de violência, tipo não violência brutal, mas violência psicológica", conta Vilma Maria, da coordenação regional da mata sul do MST, em Pernambuco. 

"De 2018 para cá, portanto, o nosso esforço foi de tentar reverter judicialmente essa possibilidade de despejo .Acordos haviam sido tentados inicialmente com a usina, entre a usina e o Incra, mas os valores que a usina apresentava eram valores vultuosos demais, excessivos e o Incra não aceitava", explica Efrem Filho.

Em 2020, com a pandemia, veio a ADPF 828 do STF, uma decisão provocada por partidos políticos e movimentos populares contra os despejos durante a pandemia. Dessa forma foi possível mediar um acordo entre o Incra e a Negócios Imobiliários, empresa que sucedeu a Usina na disputa pelas as terras. Com o acordo, o Incra pode, a partir de agora, retomar os investimentos no assentamento. 

O acordo entre o Incra e a empresa representa, ao fim, um alívio para as famílias assentadas. 

"Foi um resultado imenso e muito importante para o nosso povo, para os nossos assentados, porque passam a acreditar na justiça,  passam a acreditar na reforma agrária e passam a acreditar em nós, da direção do MST,  para a gente conduzir o processo da reforma agrária e conquistar outros assentamentos", concluiu Vilma. 

Edição: Rebeca Cavalcante