Balanço

Para MST, 2023 foi de retomada de governo democrático, mas de descompasso na reforma agrária

Em 2024, movimento seguirá reivindicando o assentamento de 65 mil famílias e prepara as celebrações de seus 40 anos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Em 21 de janeiro de 2024, o movimento completa quatro décadas de existência - Foto: Gilvan Oliveira /MST

“Iniciamos 2023 com uma expectativa grande no fortalecimento da luta pela terra e da democracia”, aponta Ceres Hadich, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ela avalia, no entanto, que há um “descompasso entre política, orçamento e efetivação” das pautas da reforma agrária no país.  

Assim, em 2024 as demandas prioritárias do MST seguirão o assentamento de 65 mil famílias acampadas que aguardam a regularização e o desenvolvimento, por meio de políticas públicas, da produção de alimentos nos territórios já conquistados. Para isso, o movimento afirma ser necessário o investimento de R$2,8 bilhões anuais na reforma agrária. No ano que vem, no entanto, o orçamento previsto pelo governo Lula para a área é de R$567 milhões. 

Ao Brasil de Fato, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) informou que até o fim de 2023, este primeiro ano de gestão terá assentado 5.711 famílias. O número representa 2,8% das 200 mil famílias que o MST pleiteia que o governo assente até o final do mandato. Segundo o Plano Plurianual do governo Lula, a previsão é que em 2024 outras 20 mil famílias sejam assentadas.  

Retrospectiva  

O ano de 2023 para o MST, segundo Hadich, foi marcado pela necessidade de consolidar a retomada de um governo democrático no país e combater o avanço da extrema direita no cenário global. O ano mal tinha começado quando o escândalo do trabalho escravo nas colheitas de uva do Rio Grande do Sul potencializou o debate público sobre a reforma agrária e pautou, em março, o eixo da jornada de mulheres do MST.  

Em seguida, o abril vermelho, mês em que o movimento homenageia os mortos do Massacre de Eldorado do Carajás, foi marcado por marchas, distribuição de alimentos e novas ocupações. As que ganharam maior visibilidade foram as das áreas da Suzano Papel e Celulose na Bahia. Com duração de alguns dias, essas ocupações denunciaram os impactos da monocultura de eucalipto no sul baiano, questionando o que se entende por função social da terra.  

Em maio, depois de cinco anos, o MST retomou a Feira Nacional da Reforma Agrária em São Paulo, uma das maiores interlocuções diretas com a população urbana. Com 1,2 feirantes de 23 estados, palestras e shows, o evento visa mostrar, na prática, a existência viva de um modelo alternativo ao do agronegócio.  

Com ações simultâneas em 17 estados no Dia da Alimentação, em 16 de outubro, os sem-terra apresentaram a demanda por maior orçamento para a reforma agrária. Entre outubro e novembro, o MST enviou cerca de 13 toneladas de alimentos para Gaza, a meta é que o apoio humanitário chegue a 100 mil quilos de comida. 

O movimento chega ao final de 2023 como um dos articuladores da Jornada Nacional de Solidariedade Contra a Pobreza e a Fome  e se prepara para suas celebrações de 40 anos em 2024. Com o aniversário em janeiro, a organização vai se tornar o mais longevo movimento de luta por terra da história do país. É nesse contexto em que será realizado o sétimo Congresso Nacional do MST que, segundo Hadich, deve projetar “um novo ciclo de lutas”.  

Ao Brasil de Fato, Ceres destacou os principais pontos de atuação do MST ao longo do ano, fez uma análise crítica das políticas de reforma agrária do primeiro ano deste governo Lula e levantou as prioridades para 2024, que vê como “emblemático”. Confira a entrevista: 

Brasil de Fato: Quais foram as ações e demandas mais importantes do MST em 2023? 

Ceres Hadich: A nossa caminhada em 2023 se dedicou fundamentalmente a garantir que se estabelecesse novamente esse governo democrático, mas também de combater o avanço da extrema direita não só no nosso país, na América Latina, mas no mundo.  

Um terceiro aspecto de prioridades foi o de retomar a luta pela reforma agrária popular e pelo fortalecimento dos nossos territórios já conquistados. Isso inclui a pressão pela retomada das políticas públicas para a reforma agrária, a agricultura familiar e o assentamento de famílias, uma demanda represada da luta pela terra no nosso país. 

O orçamento para a reforma agrária tem sido uma demanda central do MST. Em 2023 o governo herdou o orçamento da gestão Bolsonaro, mas para o ano que vem, são feitas escolhas políticas do que vai ser priorizado. O MST reivindica que até o fim do governo Lula, 200 mil famílias sejam assentadas. Em 2023, o Incra prevê assentar apenas 5.711 famílias. O movimento demanda orçamento de R$2,8 bilhões por ano para a reforma agrária. O governo prevê, no entanto, R$ 567 milhões para esta área em 2024. Como vocês avaliam que as reivindicações estão ou não sendo atendidas? 

Esse foi um ano bastante desafiador. Primeiro no sentido em que, diferente das outras vezes em que o PT governou o país, dessa vez se colocou a necessidade de superação de um processo de golpe, de desmonte das políticas públicas e da democracia no nosso país.   

Então, por um período, pelo menos durante os primeiros três meses do governo Lula, a gente compreendeu essa nova condição. A gente teve que entender não só um orçamento destinado à reforma agrária infinitamente menor, mas que as próprias normas e regulações que se apresentaram neste Estado tiveram um impacto no funcionamento da pauta. 

Porém, desde as nossas primeiras jornadas de luta em março com as mulheres, depois em abril, julho, seguimos em outubro e agora em dezembro estamos preparando mais uma vez o “Natal sem fome”, estamos em diálogo com a so

ciedade sobre a reforma agrária e a produção de alimentos saudáveis.  

E apresentamos uma pauta concreta ao governo: a demanda represada de assentar quase 70 mil famílias que seguem em acampamentos aguardando a regularização dos seus territórios. E a retomada das políticas públicas que fortalecem os territórios de reforma agrária já existentes. Hoje são mais de 500 mil famílias assentadas em todo o Brasil.  

Vemos essas políticas como investimentos do Estado brasileiro. Quando a gente fala em R$2,8 bilhões é um investimento para fortalecer a economia, a justiça social, a produção de alimentos. E hoje o que o governo aponta como orçamento está muito aquém. Nos preocupa olhar já para 2024 entendendo que no próximo ano este orçamento tampouco está contemplado.  

O governo anunciou o assentamento de cerca de seis mil famílias até o final do ano. É um índice infinitamente menor do que precisamos, estamos olhando para um passivo de 65 mil famílias.  

Outra questão que a gente assume como prioridade é o combate à fome. A gente olhar o que foi o orçamento destinado só ao PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] pela Conab [Companhia Nacional de Abastecimento]. Então o governo herda do governo anterior um orçamento de pouco mais de R$2,3 milhões, faz um exercício de suplementação orçamentária para esse ano de 2023, alcançando os R$500 milhões, que era um pouco menos da metade da demanda apresentada por organizações e entidades para executar os projetos de PAA.  

Mas até agora, em dezembro de 2023, sequer conseguiu executar metade deste orçamento. O PAA só conseguiu executar 51% do orçamento que de fato existia. Então existe um descompasso entre a demanda, o ter e o efetivar. E precisa resolver isso logo. É mais do que número, é mais do que política, é uma questão concreta. Quando a gente fala em PAA, a gente está falando em resolver um problema concreto que é a fome. Então, nos preocupa esse descompasso. 

Quais são as prioridades do MST para o ano que vem, tanto no sentido de ações quanto de celebração dos 40 anos do movimento? 

O ano que vem é muito emblemático para nós. Em janeiro de 2024 a gente vai completar 40 anos de história e caminhada. Parece muito, porque vamos nos transformar efetivamente no movimento social mais longevo da história do Brasil na luta pela Terra. Mas ao mesmo tempo, do ponto de vista da história da luta por terra e da efetivação da justiça agrária no país, para nós é pouco tempo.  

Estamos chegando no final de um ciclo que aponta para outro muito maior de lutas. Temos entendido que o nosso papel será seguir organizando as famílias. A gente sempre diz que a luta pela reforma agrária não se dá por paixão - ainda que a paixão seja necessária para motivar os nossos sonhos -, mas se dá por uma necessidade concreta. Enquanto houver povos sem-terra e terra sem cumprir a sua função social, o MST vai seguir tendo motivo para existir e fazer luta. 

Então no próximo ano, a gente vai seguir apresentando nossas pautas para o assentamento das famílias acampadas e o desenvolvimento dos nossos assentamentos. Vale lembrar que também é um ano de eleição. A gente vai estar diretamente ligado a esse processo, porque é um momento importante de diálogo com a sociedade brasileira.  

E também no próximo ano a gente pretende realizar, no marco dos nossos 40 anos, o sétimo Congresso Nacional do MST. O evento deve projetar um novo ciclo de lutas para o nosso movimento.  

Edição: Nicolau Soares