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Venezuela: apesar de acordo eleitoral, tensão entre chavismo e direita cresce após primárias

Governo e oposição trocam acusações sobre votação polêmica realizada no dia 22 de outubro que deu vitória a Maria Corina

Caracas (Venezuela) |
Opositores foram acusados de fraudar resultados de eleições primárias - Juan Barreto/AFP

A Venezuela vive dias de acirramento das tensões políticas e nem o acordo eleitoral assinado em Barbados conseguiu estabelecer um período de harmonia entre o governo e o setor extremista da oposição de direita reunido na coalizão Plataforma Unitária Democrática (PUD).

Isso porque a realização de eleições primárias por parte dos opositores e a vitória da ultraliberal Maria Corina Machado desencadeou uma série de provocações e trocas de acusações que envolveu até uma ameaça dos EUA de retirar os últimos alívios nas sanções contra a indústria petroleira do país.

Por um lado, o governo do presidente Nicolás Maduro e outros setores da oposição acusam a PUD de fraudar a consulta realizada no dia 22 de outubro. Além disso, segundo a delegação chavista que participou dos diálogos em Barbados, as primárias estariam violando os acordos assinados porque não respeitaram os critérios estabelecidos pelo documento, já que a oposição recusou apoio técnico e auditoria do Conselho Nacional Eleitoral (CNE).

A votação, realizada de forma totalmente manual e com ausência de estruturas adequadas denunciadas até mesmo por organizadores, virou tema judicial quando a Suprema Corte venezuelana determinou nesta segunda-feira (30) que os opositores entregassem todas as atas de votação à Justiça. No mesmo dia, o presidente e a vice-presidente da chamada "Comissão Nacional de Primárias", grupo responsável por organizar a votação, foram intimados a depor no Ministério Público após serem acusados de "usurpação de funções eleitorais, de identidades, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha".

Já a PUD e a candidata vencedora das primárias tentam instrumentalizar a votação para atrair mais apoio dos EUA e reivindicar certa legitimidade popular, já que a última eleição nacional da qual Maria Corina Machado participou foi em 2010, quando foi eleita deputada para a Assembleia Nacional do país. O objetivo da consulta era definir uma candidatura presidencial unificada da oposição para a eleição presidencial venezuelana que deve ocorrer no segundo semestre de 2024.

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Em seu primeiro pronunciamento após os resultados, Machado focou seu discurso em "convencer a comunidade internacional" da importância de lutar contra Maduro e mencionou poucas propostas ou, até mesmo, estratégias de campanha, já que uma inabilitação emitida pela Controladoria-Geral da República em 2015 impediria que ela se candidatasse à Presidência em 2024.

Além disso, a postura da opositora segue confrontativa contra o chavismo e em uma coletiva de imprensa chegou a dizer que o presidente Nicolás Maduro "não se atreveria" a participar de um debate com ela. Figura histórica dos setores mais reacionários da oposição venezuelana, Machado aposta em um programa de privatizações massivo para rivalizar com o governo em uma eventual campanha eleitoral e fala constantemente em "varrer o socialismo" da Venezuela.

"O certo é que, com as primárias, ela se coloca como a representante única da oposição, como uma espécie de segundo Juan Guaidó", diz Carlos Dürich. Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista político e membro do coletivo de comunicação venezuelano Tatuy TV afirma que a opositora já se comporta como candidata presidencial, mas deve enfrentar problemas porque o processo que a escolheu "esteve repleto de irregularidades do começo ao fim".

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"Essa autoproclamação não tem muito vigor porque não há como auditar o processo de primárias, já que ele não contou com observadores e nem com o apoio do CNE", explica.

Disputa por números chega à Justiça

A falta de transparência citada por Dürich é um dos principais argumentos utilizados pelo governo e por outros setores da oposição para acusar a PUD de fraudar as primárias. Segundo a comissão organizadora da eleição, mais de 2,5 milhões de pessoas participaram do pleito e Machado teria sido eleita com mais de 92% dos votos.

Os dados foram contestados pelo presidente do Legislativo, o deputado chavista Jorge Rodríguez, que citou uma "contagem própria" feita pelo governo e alegou que a participação teria sido de 598.350 eleitores. De acordo com dados do CNE, cerca de 21 milhões de venezuelanos estavam aptos a votar nas primárias.

"O que ocorreu no domingo não foi uma eleição, foi uma farsa. Uma eleição tem elementos que devem ser respeitados para que a votação possa ser auditável, justa e livre. Isso que ocorreu no domingo não pode ser auditado", disse o deputado.

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As acusações do governo chegaram ao Ministério Público dias depois e se converteram em intimações formais nesta segunda-feira, quando o presidente da "Comissão Nacional de Primárias", Jesús Maria Casal, e a vice-presidente, Mildred Camero, comparecem à sede do MP em Caracas para prestar depoimento.

Além disso, mediante um recurso apresentado pelo deputado opositor José Brito, que faz parte da coalizão Aliança Democrática que rivaliza com a PUD, o Tribunal Supremo de Justiça anulou os resultados das primárias e exigiu que os organizadores apresentassem todos os materiais que foram utilizados para apurar os resultados.

Maria Corina, por sua vez, segue se classificando como "perseguida política" e qualificando o governo como "um regime autoritário". Segundo analistas, a vitória de Machado nas primárias acabou ameaçando a estabilidade dos acordos assinados em Barbados, já que não está claro se a opositora vai apoiar o documento ou se utilizará da força para reverter sua inabilitação.

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"O bloco político de Maria Corina sempre esteve associado ao extremismo que apostou em insurreições, como o golpe contra o ex-presidente Hugo Chávez em 2002 e as guarimbas de 2014 e 2017. Por isso, o que parece se apresentar caso sua inabilitação não seja revertida é um cenário de tensão e possivelmente de insurreição", afirma Dürich. 

EUA ameaçam Venezuela

O cenário ficou ainda mais complexo após os EUA ameaçarem não renovar os alívios no bloqueio contra o petróleo venezuelano caso Maria Corina permaneça impedida de concorrer à Presidência. Após o acordo assinado em Barbados, Washington emitiu licenças gerais que, na prática, suspenderam temporariamente algumas sanções contra o setor energético da Venezuela e permitirá o país a voltar ao mercado internacional.

No entanto, o secretário de Estado estadunidense, Antony Blinken, disse logo após as primárias que se a inabilitação de Machado não fosse cancelada, as licenças não seriam renovadas dentro do prazo de seis meses estipulado pelo Departamento do Tesouro como limite.

As ameaças foram mal recebidas por Caracas, que pediu respeito às leis nacionais e aos acordos firmados com a oposição. "Quando disseram o que disseram, expressaram uma imensa ignorância sobre como funciona o ordenamento jurídico e a Constituição da Venezuela. Eles já deveriam saber que a Venezuela não aceita pressões, nem chantagens, nem subornos, nem ingerência de poder ou de país algum", respondeu Jorge Rodríguez.

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"As falas de Blinken mostram que não há uma posição homogênea na Casa Branca a respeito do que fazer com a questão venezuelana", opina Sergio Rodríguez Gelfenstein. Ex-diplomata da Venezuela e doutor em Estudos Políticos, ele levantou ao Brasil de Fato a hipótese de que, enquanto defendem publicamente uma narrativa de apoio a Machado, os EUA estão mais interessados em preservar seus próprios interesses.

"Há um ponto que agora eles chamam de 'linha vermelha', que era o tema das inabilitações, mas as inabilitações não estão nos Acordos de Barbados, elas ficaram de fora, o que mostra claramente que os EUA estão trabalhando em função de seus interesses e não em função dos interesses da oposição venezuelana, eles já os usaram e agora os descartam, como sempre fazem", afirma.

Gelfenstein ainda explica que a guerra na Ucrânia acelerou a necessidade de Washington buscar novas fontes de combustíveis, já que a importação de mercadorias russas foi interrompida. Até o mês de setembro, antes da suspensão de sanções, a Venezuela produzia entre 700 a 800 mil barris de petróleo por dia, segundo dados da OPEP.

"Não é que do dia para noite o presidente Joe Biden descobriu que a Venezuela pode ser um país amigo, ou que ele acredita que o presidente Maduro está fazendo uma boa gestão e que os dois países, apesar das diferenças, podem ter boas relações. Não, não é nada disso. Essa situação responde ao grave problema que Washington tem em matéria petroleira e à situação política interna, já que no próximo ano há eleições presidenciais nos EUA", diz.

Edição: Leandro Melito