Na busca por uma candidatura unificada para o pleito presidencial de 2024, a oposição da Venezuela decidiu realizar eleições primárias que ocorrem neste domingo (22) em todo o país. Dez candidatos de direita disputam a liderança do campo opositor e tentam angariar legitimação popular para uma eventual candidatura presidencial.
O processo, no entanto, esteve repleto de problemas organizativos e logísticos durante toda a fase de preparação, o que deve desestimular, segundo analistas, a participação na votação deste domingo. A recusa da oposição em aceitar apoio técnico do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão responsável por organizar todas as eleições no país, acarretou em confusões relacionadas a locais de votação e colocou dúvidas sobre a logística do processo.
:: O que está acontecendo na Venezuela ::
Além disso, não há garantias de que o pleito será acompanhado por observadores internacionais independentes, apesar do site oficial do processo afirmar que foram convidados "organizações e personalidades" venezuelanas e de outros países. Todas essas questões provocaram renúncias de membros da chamada Comissão Nacional de Primárias, o grupo responsável por organizar o evento.
Do ponto de vista político, divergências e divisões internas entre os variados partidos e tendências da direita venezuelana marcaram o período de campanha e não há sinais de que elas serão solucionadas após o resultado da consulta. Isso porque nem todos os candidatos assumiram o compromisso de apoiar o vencedor das primárias no pleito presidencial do próximo ano, indicando que poderiam lançar candidaturas concorrentes.
Outro elemento que gera ainda mais incertezas é a inabilitação administrativa que pesa contra Maria Corina Machado. Favorita nas pesquisas para vencer as primárias, a ex-deputada ultraliberal, que tenta pela segunda vez chegar à Presidência, está proibida desde 2015 de assumir qualquer cargo público e não há garantias de que seu status legal possa mudar caso ela conquiste uma vitória neste domingo.
:: O que se sabe sobre a inabilitação da pré-candidata opositora à Presidência da Venezuela ::
Diante da incerteza de que Machado possa apresentar sua candidatura presidencial ao CNE, outros candidatos e partidos passaram a apostar na construção de uma "terceira via", que possa angariar os votos opositores e esteja habilitada para concorrer nas eleições. Segundo analistas, esse movimento aprofunda o isolamento da candidatura de Maria Corina e alimenta a narrativa de sua campanha que aposta em se colocar "contra tudo e contra todos".
"Podemos dizer que Maria Corina é uma espécie de Javier Milei [candidato à Presidência da Argentina] na Venezuela", diz o sociólogo venezuelano Ociel López. Professor da Universidade Central da Venezuela (UCV), o pesquisador explica que Machado tenta construir uma ligação com setores populares se apresentando como uma alternativa "anti-establishment" e "contra os poderosos".
"Apesar de ela vir de uma família rica, de uma das famílias mais proprietárias, mais oligárquicas, escravocratas e altamente elitista, agora ela quer representar o anti-poder", aponta López.
:: Maria Corina Machado: Quem é a opositora venezuelana ::
Inconvenientes ameaçam eleição
Os vários problemas organizativos do processo têm sido denunciados, inclusive, por setores da oposição e ex-membros da Comissão Nacional de Primárias (CNP), que até este domingo alertavam para o risco de cancelamento do pleito por conta das falhas na organização.
As denúncias mais contundentes feitas ao processo vieram da ex-vice-presidente da Comissão Nacional das Primárias Maria Carolina Uzcátegui, que renunciou ao posto na organização. Em entrevista coletiva dada à imprensa venezuelana em setembro, Uzcátegui afirmou que havia "muitos inconvenientes" para a realização da eleição, entre eles a ausência de apoio do CNE, a falta de consenso entre candidatos e a impossibilidade de atender todo o eleitorado venezuelano.
:: Acordo ou tática política: o que está acontecendo no Conselho Eleitoral da Venezuela? ::
Segundo o CNE, existem 21 milhões de eleitores aptos a votar e todos também teriam direito de participar das primárias. No entanto, existem apenas 3.110 centros de votação disponibilizados pela Comissão Nacional de Primárias para a votação deste domingo, número apontado como muito baixo para atender os possíveis eleitores.
"Quantas pessoas podem participar das primárias? Segundo os nossos cálculos, 1,2 milhão de pessoas podem votar se todo o fluxo acontecer de forma correta. Com essa cifra não alcançamos sequer a participação que costuma ser tradicional em primárias, que seria de 10% do eleitorado", disse Maria Carolina Uzcátegui.
Outro problema prático apontado pela ex-vice-presidente da CNP é o fato de que 38% dos centros de votação serão montados em casas de opositores, sedes de partidos e até mesmo em comércios. "Isso pode fazer com que muitas pessoas, horas antes, mudem de ideia e se retirem do processo", alertou.
:: EUA anunciam suspensão temporária de sanções contra petróleo e gás da Venezuela ::
Empecilhos logísticos também ocorrem no exterior, uma vez que a instalação de mesas não segue prerrogativas e critérios de nenhum órgão eleitoral. No Brasil, por exemplo, os votos de venezuelanos migrantes devem ocorrer em um restaurante em Manaus, em um hotel no Rio de Janeiro e em um centro comercial no bairro do Brás, em São Paulo.
Além disso, dois dias antes das primárias, outra confusão envolveu a realização da consulta em outros países. Segundo o site oficial da CNP, 80 cidades em 30 países estariam aptas a receber venezuelanos para votar. No entanto, na última sexta-feira (20), os responsáveis alteraram esse número para 77 cidades em 28 países, excluindo Argentina e Israel.
Para Ociel López, "o que vai acontecer neste domingo é incerto", principalmente por conta da ausência de mecanismos que possam medir a real participação eleitoral no processo. "Seguramente a oposição vai conseguir encher os centros de sempre, zonas de classe média e classe alta e então vai dizer que 4 ou 5 milhões de pessoas votaram. Como não existe nenhum órgão oficial para realizar a apuração, os números podem ser facilmente inflados", diz.
:: Venezuela: aliado de Maria Corina fala em 'desobediência civil', e Maduro convoca 'plano anti-golpe' ::
Até este final de semana, outras denúncias de falhas continuavam a acontecer. Na última sexta-feira, o governador do Estado de Barinas, o opositor Sergio Garrido, havia alertado que ainda não tinha recebido as listas com os voluntários a mesários e testemunhas dos centros de votação.
O candidato do partido Ação Democrática, Carlos Prosperi, também denunciava que ele e seu partido não haviam sido informados sobre quem seriam os representantes da AD nas mesas de votação e que o partido de Maria Corina, o Vente Venezuela, teria mais testemunhas.
Acordo, sanções e disputa política
Nos últimos meses, três candidatos renunciaram à disputa das primárias por motivos diferentes. O ex-governador de Miranda Henrique Capriles, que aparecia em segundo lugar em algumas pesquisas, se retirou por estar inabilitado de ocupar cargos públicos. "Se eu não posso, que venha outro", disse. Capriles possui uma inabilitação de 15 anos por diversos supostos delitos administrativos que ele teria cometido durante seu mandato como governador (2008-2017).
Recentemente, o opositor havia anunciado uma aliança com o atual governador do estado de Zulia, Manuel Rosales. Tradicional político opositor ao chavismo, ele não está inscrito nas primárias e também não descarta lançar sua candidatura presidencial em 2024.
:: Puxado pelo petróleo, comércio entre Venezuela e EUA cresce 555% no 1º semestre ::
Outro a deixar a disputa foi o ex-deputado Freddy Superlano, atual líder do partido Voluntad Popular, o mesmo do autoproclamado presidente interino Juan Guaidó. Após se retirar da disputa, Superlano anunciou apoio a Maria Corina Machado, que não deve encontrar oponentes muito difíceis de superar na votação deste domingo.
Segundo analistas, a vitória quase "garantida" de Machado nas primárias também afastaria a participação de eleitores que se opõem ao projeto da opositora, já que eles não veriam possibilidade de derrotá-la no atual processo. No entanto, as chances reais de uma candidatura presidencial da opositora continuam mínimas por conta de sua inabilitação.
"O que Maria Corina quer é se posicionar como líder da oposição para, então, negociar o que fazer. Ela poderia ser uma espécie de 'vice' de outro candidato definido por consenso, por exemplo, mas acredito que eles vão guardar essa estratégia para alguns meses antes da eleição presidencial do próximo ano", afirma Ociel López.
Os acordos assinados entre o governo e a oposição em Barbados na última terça-feira (17) não mencionam o fim das inabilitações de opositores, embora o chefe da delegação da Plataforma Unitária, Gerardo Blyde, tenha mencionado que o documento poderia servir para alcançar esse objetivo.
Já o representante governista nos diálogos, Jorge Rodríguez, destacou que o acordo prevê a promoção da autorização "a todos os candidatos presidenciais e partidos políticos, sempre que cumpram com os requisitos estabelecidos para participar na eleição presidencial consistentes com os procedimentos da lei venezuelana".
:: Existe consenso para eliminar as sanções contra a Venezuela, diz Maduro ::
Após o acordo, os EUA anunciaram o maior alívio no pacote de sanções contra a Venezuela desde o início do bloqueio, que prevê a liberação de transações petroleiras com o país sul-americano. No entanto, horas após a emissão das licenças, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que essas flexibilizações poderiam ser revogadas caso Maria Corina não tenha sua inabilitação suspensa até novembro.
As declarações foram rechaçadas por Caracas, que classificou as falas como "uma imensa ignorância de como funciona o ordenamento jurídico e a Constituição da Venezuela". Segundo Jorge Rodríguez, o governo respeitará as cláusulas acordadas no documento assinado em Barbados e não aceitará "chantagens ou condicionamentos".
Para Ociel López, apesar dos ruídos entre Washington e Caracas, a estratégia de Maria Corina também não interessa totalmente aos EUA, que agora voltaram a se mostrar interessados em estabilizar o comércio petroleiro venezuelano. "Nem sempre Washington quer um ambiente conturbado, mas Maria Corina não proporciona esse cenário estável que os EUA querem, ou seja, baixar o volume e regularizar a entrada da Venezuela ao mercado petroleiro mundial", diz.
Edição: Leandro Melito