Desde o dia 7 de outubro, com a ação do Hamas no sul de Israel e da nova rodada de bombardeios israelenses sobre a Faixa de Gaza, fomos inundados com acusações de crimes, responsabilidades e atrocidades.
Os debates desencadeados também nos colocaram em um turbilhão de termos – terrorismo, direito de defesa, ocupação ilegal, direito de resistir -, que revelam as limitações do complexo labirinto do direito internacional dedicado a um confronto colonial como o palestino-israelense.
Para além das possibilidades de responsabilização, ele parece reforçar a assimetria entre as partes e, assim, os mecanismos de fundo da produção da violência.
"Terrorismo, terrorismo, terrorismo"
O primeiro ato, o ataque do Hamas a cidades ao sul de Israel que matou cerca 1,4 mil pessoas, foi imediatamente classificado como terrorismo. O fato, hoje, é que não há um consenso sobre o termo.
O professor Reginaldo Nasser, do departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, explica ao Brasil de Fato que há duas correntes de interpretação acadêmica para defini-lo. Uma concentrada na classificação do ator como tal, em geral não-estatal. A outra fenomenológica, que classifica pelo ato. “O terrorismo seria o uso da morte de civis, de um ou de muitos, para enviar uma mensagem, que é o medo e o terror”.
Para o que nos interessa, não existe uma definição normativa consensuada internacionalmente. Em texto de 2005 “Uma maior liberdade: tempo de decisão na ONU”, o então secretário-geral, Kofi Annan, apontava para a necessidade de formular “uma ampla convenção contra o terrorismo” de modo a combatê-lo. Ele destacava, no entanto, que não havia uma definição ampla travada nos “debates sobre ‘terrorismo de Estado’ e o direito de resistir a uma ocupação.”
Essa brecha permite, então, o uso do conceito como instrumento de perseguição política. Em visita a Israel no dia 24 de outubro, o presidente francês, Emmanuel Macron, propôs a expansão da coalizão estabelecida em 2014 para combater Estado Islâmico e a Al-Qaeda contra o Hamas. A coalizão a qual Macron se referiu, um grupo de 86 países, poderia realizar operações conjuntas com Israel em Gaza ou compartilhar informações e minar as finanças do grupo palestino.
Tahseen Ellayan, pesquisador legal da ONG palestina Al Haq, sediada em Ramallah e consultora do Conselho Social e Econômico da ONU, crítica a designação do Hamas e outros grupos de resistência palestinos como ‘terroristas’. “Isso busca distorcer a luta do povo palestino contra o domínio colonial, subjugação e fragmentação. É uma manifestação do abuso de poder da União Europeia (UE) e dos EUA”, afirma ao Brasil de Fato.
O jornalista e escritor Robert Fisk definiu com precisão como esse conceito ambíguo se manifesta. Em seu Pobre Nação, livro de suas coberturas como correspondente no Líbano, ele diz: “’terrorismo’ não mais significa terrorismo. Não é uma definição; é uma criação política. ‘Terroristas’ são aqueles que usam a violência contra o lado que está empregando a palavra.”
Crimes de guerra em um confronto colonial
O caráter do Hamas como parte do movimento de libertação nacional palestino, que por sua vez leva adiante uma guerra de libertação nacional, estaria protegido pela Lei Humanitária Internacional, especialmente no Protocolo I Adicional à Convenção de Genebra, de 8 de junho de 1977).
Mas então aqui recairia uma outra acusação contra o Hamas, o cometimento de crimes de guerra por conta das mortes civis. De acordo com o diário israelense Haaretz, de 902 nomes identificados mortos, 273 são soldados, 59 são policiais e 554 são civis.
Marco Longobardo, pesquisador na Universidade de Westminster e autor do livro “O uso de forças armadas em território ocupado”, explica que a Lei Humanitária Internacional que regula episódios de guerra é um legado do Tribunal de Nuremberg pós-2ª Guerra Mundial. “Acredito que membros do Hamas foram responsáveis por crimes de guerra por, de forma proposital, matar civis, tomar reféns e lançar ataques de foguetes a Israel de forma indiscriminada”, explicou ao Brasil de Fato.
Acusação semelhante foi feita à ação israelense, já que os bombardeios à Gaza atingiam alvos civis de diversas ordens. Já no dia 13, quarto dia da operação, acusações mais graves começaram a surgir diante da desproporção da ação do exercito de Israel. “No caso israelense não seria o mesmo crime do Hamas, mas também constituiriam crimes de guerra ao lançar ataques indiscriminados contra a população palestina e produzir políticas para fazê-la passar fome”, afirma Longobardo.
A 4ª Convenção de Genebra proíbe “a violência à vida e à pessoa, em particular assassinato de todos os tipos, mutilação, tratamento cruel e tortura”. Também considera crime “a tomada de reféns”.
Ainda que a lei humanitária internacional preveja a noção de proporcionalidade para agentes estatais, uma espécie de limite ou cota, os chamados “danos colaterais”, Longobardo concorda que Israel pode ter passado dos limites, já que em Gaza “a ampla perda de vida civil e o enorme dano a objetos civis são alarmantes”.
Na quinta, dia 26 de outubro, de acordo com dados do Ministério da Saúde de Gaza, os ataques de Israel haviam causado 7.028 mortes, sendo de 2.913 crianças, 18.482 feridos e havia 1,4 milhão de palestinos e palestinas deslocados internamente no território. Cerca de 45% das moradias foram destruídas e se tornaram inabitáveis. De um total de 35 hospitais, 12 tiveram que interromper atividades. De 72 clínicas de saúde, 46 já não conseguiam operar.
Foi assim, nesse acúmulo e escalada que começaram a se configurar crimes mais graves do exército de Israel.
E então o genocídio
Raz Segal, pesquisador da Universidade de Stockton, estudioso do Holocausto e dedicado à investigação do conceito de genocídio, no quarto dia das operações israelenses levantou em artigo a possibilidade de Israel estar cometendo o que chamou de “genocídio de manual”. Dos cinco critérios da normativa, Israel implementava três: matar membros do grupo; causar dano sério corporal ou mental a membros desse grupo; deliberadamente infligir sobre o grupo condições de vida calculadas para trazer a destruição física de seu todo ou de parte.
Segal escrevia no dia que o exército de Israel, em comunicado militar, impunha à população do norte de Gaza, cerca de 1,1 milhão de pessoas, uma evacuação em direção ao sul do território. Se esse movimento fosse parte de um plano para deslocar palestinos de Gaza permanentemente para o Egito, isso configuraria uma forma de eliminação prevista, por exemplo, em definições de limpeza étnica.
O Artigo 49 da 4ª Convenção de Genebra afirma que “transferências forçadas de indivíduos ou de massas (…) do território ocupado para o território do poder ocupante ou para qualquer outro país, ocupado ou não, está proibido, não importa o motivo.”
Ellayan e Longobardo apontam que outro elemento que configura o crime de genocídio são as declarações de oficiais israelenses dadas no decorrer das ações de Israel. Yoav Gallant, o chefe do Estado Maior do exército, por exemplo, disse, ao informar que ordenava “o completo cerco de Gaza”, que “Não haverá eletricidade, nem comida, nem combustível, tudo estará fechado”. E completava: “Nós estamos lutando contra animais humanos, então vamos agir dessa maneira”. Já o presidente Isaac Herzog, no dia 13, dizia que não haviam civis em Gaza, ou seja, todos podiam ser alvos.
Direito de defesa de Israel X Ocupação ilegal?
Explosões manifestas de cenas chocantes podem encobrir a história mais profunda da violência da questão colonial, um crime que na Palestina começa muito antes do 7 de outubro.
Rania Madi, palestina-suíça, é conselheira legal de organizações internacionais em Genebra e representante do setor Law for Palestine (Lei para a Palestina) da ONU, um arquivo de documentação sobre a questão. Ao Brasil de Fato, ela destaca que “as condições pré-existentes na Faixa de Gaza já tinham levantado discussões sobre o genocídio antes mesmo deste outubro”. Isso ocorreu em “debates entre especialistas, por exemplo, no Tribunal Russel para a Palestina, em 2014, e no Centro de Direitos Constitucionais, em 2016”, diz ela.
O próprio secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, levantou essa questão na reunião do Conselho de Segurança do dia 24 de outubro. Em discurso, ele reforçava a condenação aos “atos de terror horrorosos e sem precedentes de 7 de outubro pelo Hamas em Israel”. Mas fez questão de afirmar que “é importante também reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram no vácuo. O povo palestino tem sido subjugado há 56 anos em uma ocupação sufocante. Eles têm visto sua terra ser gradualmente devorada por assentamentos e contaminada por violência; sua economia represada; sua população deslocada e suas casas demolidas”. O trecho de Guterres causou revolta na diplomacia israelense, com pedidos de sua demissão e anúncio que Tel Aviv interromperia a emissão de vistos para funcionários da ONU.
A questão aqui é se o direito de defesa de Israel se choca com o controle ilegal que exerce sobre os Territórios de Cisjordânia e Faixa de Gaza. Em 2004, a Corte Internacional de Justiça (principal corpo jurídico dentro da ONU) emitiu uma Opinião Consultiva sobre “Consequências Legais da Construção do Muro no Território Palestino Ocupado”. De acordo com Longobardo, a Opinião não afirmou que a ocupação israelense é ilegal, mas que “algumas medidas adotadas por Israel em território ocupado são ilegais”. Ele afirma que isso não anula o “direito de defesa” de Israel, mas aponta um dado interessante da conclusão de 2004 da Corte: “Israel não poderia evocar o direito de defesa contra ataques que se originam dos Territórios Palestinos Ocupados com base na Carta da ONU”.
Madi aponta um ciclo vicioso na convivência desse direito de defesa com a manutenção de uma brutal ocupação em Cisjordânia e Gaza|: a soma desses fatores consolida a impunidade israelense. Desde que Israel reformula seu controle sobre Gaza com a retirada e a implementação do cerco, o modo de ação são bombardeios (2008, 2012, 2014 e 2021) ou linhas de atiradores (2018). O que tivemos foi “o silêncio da comunidade internacional, apesar das muitas resoluções da ONU que pediam que Israel parasse de bombardear as populações de Gaza”. No período de setembro de 2000, quando explode a 2ª Intifada, até 5 de outubro de 2023, a contagem era de 10.559 palestinos mortos por forças israelenses em Gaza (dados do Btselem). Um dado central é que, já em 2012, a ONU previa que por volta de 2020, devido ao bloqueio israelense, a Faixa seria um local inabitável, entre outras coisas porque não haveria água potável. Assim, na prática Israel invoca seu “direito de defesa contra formas de resistência como base para justificar violações de lei internacional”, afirma a consultora em Genebra.
O direito à resistência como um desafio à ordem colonial
Palestinos e palestinas têm o direito de resistir à ocupação ilegal de seus territórios. O consenso atualmente é que a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, parte do que foi a Palestina histórica, são de direito palestino e externos à Israel.
Longobardo aponta a grande contradição na lei humanitária internacional quando se refere a territórios ocupados. “Pela lei, a população local não é proibida de resistir à ocupação, mesmo que à força, mas o poder ocupante pode lutar contra essa resistência”. Ele diz que esse foi o consenso possível quando o texto foi consolidado na primeira metade do século 20.
Mas o que ocorre, depois da 2ª Guerra e a partir dos processos de descolonização, é que há um apoio crescente à legitimidade da luta armada contra poderes ocupantes em nome do princípio da autodeterminação dos povos. De fato, já em 1960 temos a Declaração da Garantia de Independência aos Povos Coloniais e Territórios e, em 1977, o Protocolo Adicional I à Convenção de Genebra, que inclui a regulação de conflitos armados no qual “povos estejam lutando contra dominação colonial e ocupação estrangeira, e contra regimes racistas no exercício de sua autodeterminação, como exposto na Carta da ONU...”.
Para Madi, a legitimidade da resistência é impulsionada pela gravidade da ilegalidade da própria ocupação, aumentada pela ausência de vontade política da comunidade internacional para acabar com a posição assimétrica entre uma população subjugada colonizada e o poder colonial. E ela faz uma observação importante, talvez o cerne da questão dentro desse labirinto de prescrições legais: “a afirmação da legitimidade da resistência é clara quando fontes são lidas com a justa consideração das posições de Estados e pesquisadores do Sul Global no fazer da lei internacional”.
Para onde a Palestina vai?
Diante de limitações e distorções da própria lei que supostamente deveria evitar violações, qual seria então uma perspectiva de abordagem sobre a Palestina?
Ellayan diz que a abordagem, deveria levar e, consideração a “ocupação militar prolongada que se estende desde o projeto colonial de assentamento sionista sobre toda a Palestina do Mandato (Britânico). As numerosas leis, políticas e práticas moldadas para servir como instrumento de dominação e fragmentação do povo palestino, para privá-lo de seu direito de autodeterminação, são manifestações desse projeto”.
Longobardo diz que por ora o consenso é que a Palestina está sob ocupação israelense e, por isso, a lei humanitária se aplica. No entanto, ele aponta para uma nova realidade a partir do que se vê nos territórios. “Há alegações sobre a imposição de um sistema de apartheid na Palestina, ou seja, a negação da autodeterminação palestina foi igualada ao apartheid”. Assim, entramos em mais um caminho do labirinto legal aplicado à Palestina/Israel.
Edição: Rodrigo Durão Coelho