A bancada ruralista tentará votar na tarde desta quarta-feira (23), na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado, a proposta que legaliza o marco temporal. O grupo ruralista, que conta com 50 dos 81 parlamentares da Casa, investe na estratégia de dar velocidade ao projeto para tentar se antecipar ao Supremo Tribunal Federal (STF) e converter a tese em lei antes que a Corte julgue definitivamente o caso. Como parte do plano, a tendência é de que o texto seja aprovado na CRA com provável margem de apoio por parte do colegiado, onde a ala conservadora tem maioria.
O marco temporal é discutido no Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei (PL) 2903/2023. A essência da medida consiste em determinar que os indígenas só podem requerer terras que já estivessem ocupando desde antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 ou que naquela época estivessem pelo menos sendo disputadas pelo segmento. A proposta é patrocinada politicamente pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), braço formal da bancada ruralista.
O texto foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados no final de maio, quando ainda tramitava como PL de nº 490/2007, e logo depois seguiu para o Senado, onde precisa passar pela CRA e pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para ser levado ao plenário. O relatório foi lido semana passada na Comissão de Agricultura, quando se tentou votar o PL, mas os governistas negociaram um adiamento da avaliação do texto. Parlamentares do campo progressista se articulam para que o PL seja avaliado também por alguma outra comissão de avaliação de mérito.
“É muito rápido. Nós estávamos com essa matéria na Câmara. No Senado, ela chegou recentemente. Então, era necessário que fizéssemos um diálogo maior sobre esse tema porque inclusive o projeto que está em curso não é só sobre o marco temporal. O PL faz abertura para que se possa arrendar terras indígenas para produtores e para outras atividades, por exemplo. Na minha avaliação, trazer isso pra legislação é uma coisa extremamente equivocada”, avalia o senador Beto Faro (PT-PA), que é membro titular da CRA.
O projeto traz ainda outros pontos considerados críticos para o campo progressista. É o caso da previsão de que as demarcações possam ser impugnadas em qualquer fase do processo administrativo, o que ambientalistas apontam que tem potencial para inviabilizar os trâmites. O texto também permite plantações de transgênicos em áreas indígenas, prática atualmente vetada por conta do risco de comprometimento à biodiversidade.
Além disso, o PL libera para o Estado e a sociedade civil o contato com indígenas isolados para “prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública” por meio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A medida é uma das mais controversas do texto por conta do risco de contaminação cultural e eliminação gradual desses grupos, que geralmente vivem em isolamento por decisão própria.
“Tem estudos mostrando que, quando começam a se relacionar com outros grupos, essas comunidades correm risco de mortes, extermínio e coisas do tipo. Na minha avaliação, é preciso que o Senado debata isso com calma, por isso estamos trabalhando para que o presidente da Casa leve isso pelo menos para a Comissão de Direitos Humanos”, afirma Beto Faro. O petista disse ao Brasil de Fato que irá apresentar diferentes emendas pedindo alteração nos trechos mais polêmicos do PL.
Cenário
As negociações em torno do conteúdo da proposta, no entanto, têm baixa margem de sucesso. Apesar de ter se reunido com interlocutores da sociedade civil e com a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, esta semana, a relatora do PL na Comissão de Agricultura, senadora Soraya Tronicke (Podemos-MS), tem dito que prefere manter o texto como está para evitar que o projeto retorne para avaliação da Câmara. A versão atual do PL é o parecer assinado pelo deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA).
Em entrevista à imprensa na terça (22) logo após reunião com parlamentares da bancada ruralista, a relatora disse que vê no momento atual “um clima mais tranquilo” para avaliação do PL. "Precisamos virar essa página, acabar com as brigas. Tem questões ideológicas que viraram paixões”, disse, ao defender a votação do texto nesta quinta.
A pressa atende aos interesses da FPA, que corre contra o tempo para obter uma aprovação final do PL antes de 7 de setembro, data a partir da qual o STF pode voltar a avaliar o tema do marco temporal. O julgamento do caso foi interrompido em 7 de junho após um pedido de vista do ministro André Mendonça. O regimento interno da Corte prevê 90 dias corridos de prazo para esse tipo de solicitação. Até o momento, o placar no Supremo está em dois votos contrários à tese – que partiram dos ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, sendo o primeiro o relator do caso –, contra uma posição favorável, manifestada por Nunes Marques.
Judiciário
O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR), disse na terça que a frente defende o PL 2903 por questões de “segurança jurídica”. “O reconhecimento do marco temporal vai dar segurança jurídica para os produtores e condições para que continuem se desenvolvendo, crescendo e gerando emprego e renda”, disse. Enquanto a bancada ruralista tenta se antecipar ao STF para aprovar o projeto no Senado, diferentes interlocutores do segmento indígena têm pressionado a Corte para que dê andamento ao caso, cujo julgamento já foi adiado sete vezes.
A leitura do movimento é de que, apesar das salvaguardas previstas na Constituição Federal para os direitos indígenas, a indefinição do julgamento e a forte pressão da bancada ruralista no Legislativo ajudam a trazer maior instabilidade para as comunidades. “Traz uma insegurança jurídica. Há muitas terras indígenas em diferentes fases de tramitação, de identificação, e por isso também a gente vem cobrando que o governo homologue as terras que estão prontas para serem homologadas”, afirma o assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Macuxi, que esteve no Congresso nos últimos dias junto com uma comitiva de lideranças que pressionam os parlamentares a rejeitarem o PL.
O grupo protocolou um documento no Senado pedindo uma audiência com o presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para tratar do projeto de lei. Também se reuniu no final da tarde de terça (22) com a presidenta do STF, Rosa Weber, para abordar a preocupação com a tese do marco temporal. A ministra se aposenta compulsoriamente em setembro e pretende recolocar o tema em votação antes de se despedir da Corte.
Dados da Funai mostram que há, no país, 137 áreas em fase de estudo, porta de entrada dos processos administrativos de demarcação de terras. O passo a passo é longo, geralmente demora anos para ser concluído e engloba várias fases de análise dos casos. Após a conclusão da primeira etapa, os territórios passam por processo de delimitação, em que os estudos são aprovados pela autarquia – há 44 áreas nessa situação atualmente.
Na sequência, o processo evolui para a fase de declaração, quando o caso é submetido à avaliação do ministro da Justiça. É ele o agente responsável pela indicação dos limites da área, que devem ser formalizados por meio de portaria. Há 73 áreas nesse status do processo no Brasil. Em seguida vem a homologação, situação em que hoje estão oito territórios indígenas. Essa etapa inclui a criação formal da terra por meio de um decreto presidencial, em que são detalhados os limites georreferenciados do local.
Por fim, vem a fase de regularização, quando é feito o registro cartorial da área por meio da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), que recebe o auxílio da Funai durante o processo. Segundo a autarquia, o país tem 475 territórios indígenas regularizados.
Volta ao passado
Para ambientalistas e lideranças indígenas, o PL 2903 representa um retorno ao passado porque, entre outras coisas, prevê nulidade da demarcação de terras que não atendam às regras previstas na proposta e fixa o entendimento de que processos de demarcação ainda não finalizados precisam se adaptar às normas ditadas pelo PL. Também proíbe a ampliação de áreas já demarcadas.
Interlocutores do segmento apontam que essa previsão dificulta a situação de comunidades como as da Terra Indígena (TI) Manoá/Pium, localizada no município de Bonfim, em Roraima. O local reúne mais de 3.200 mil indígenas dos povos Wapichana e Macuxi. O território foi delimitado pela Funai em 67 mil hectares e enfrenta um conflito relacionado à pressão promovida por fazendeiros sobre a TI.
“A área foi homologada em 1982, mas existem 24 mil hectares que ficaram de fora da demarcação. Hoje a comunidade está em processo de retomada, tentando acrescentar essa parte. Essa situação do projeto de lei afeta diretamente a área, e isso é bastante preocupante para nós. Se o marco for aprovado, fica difícil”, desabafa Lázaro Alexandre, do povo Tuxaua, que foi excluído da demarcação. O caso está na Justiça Federal.
Governo
Fontes do movimento ambientalista disseram à reportagem nos últimos dias que têm sentido falta da presença de articuladores políticos do alto escalão do governo nas negociações que buscam barrar o PL do marco temporal. É comum entre especialistas do campo a leitura de que a gestão Lula tem evitado gastar cartuchos com articulações em defesa da agenda ambiental no Congresso.
Igualmente comum é o entendimento de que, diante da correlação de forças desfavorável que o governo tem hoje no Legislativo, a opção da cúpula da gestão tem sido no sentido de direcionar o capital político em prol das votações de pautas prioritárias para a agenda deste primeiro ano de gestão, como a reforma tributária e o novo arcabouço fiscal. Apesar disso, algumas articulações têm surgido em outras frentes de comando. Além da pressão feita pela ministra Sônia Guajajara junto a lideranças partidárias nos últimos dias no Congresso, houve uma tentativa de diálogo por meio da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju) do Ministério da Justiça.
O secretário, Marivaldo Pereira, é um dos convidados de uma audiência pública prevista para ocorrer na CRA do Senado na tarde desta quinta antes da votação do PL. Em conversa com o Brasil de Fato, ele disse que o governo propôs na semana passada a criação de uma mesa de diálogo para “construir um consenso”. A proposta foi feita em reunião com assessores de parlamentares do Senado.
“Da forma como está colocada a proposta, ela inviabiliza a demarcação das terras indígenas, então, era muito importante que se buscasse um consenso. Eu acompanho esse tema há muito tempo e pela primeira vez vejo uma possibilidade de se construírem propostas para mitigar os conflitos eventualmente decorrentes de demarcações sem inviabilizar as demarcações. Então, há uma boa vontade do MPI e do governo, porém na reunião não houve uma sinalização favorável à constituição da mesa de diálogo para que a gente pudesse avançar nisso”, afirma Pereira. Ele destaca que as resistências partiram de nomes da bancada ruralista.
“É uma pena porque, se a gente começasse a dialogar, há uma disposição do Ministério dos Povos Indígenas para sentar à mesa, há disposição de todo o governo para dialogar e buscar consensos. Acho que, quanto a essa disposição, é muito ruim se perder essa oportunidade”, emenda o secretário. Questionado sobre como seria possível formatar um acordo com a FPA, dada a forma rígida como o grupo vê a proposta e especialmente diante da diferença entre esse posicionamento e as manifestações já feitas por nomes do governo, contrários ao PL, Pereira defende que a Constituição seja utilizada como referencial no debate.
“Há inúmeros pontos que o Supremo já consolidou, como sobre o que acontece com os indígenas que foram expulsos de suas terras antes de 1988 e foram impedidos de retornar a elas. Se uma lei for aprovada contrariando entendimentos do STF, é um trabalho que tende a ser questionado, e aí não vai prevalecer. Isso não ajudaria ninguém porque o que todo mundo quer é segurança jurídica. O melhor caminho para se construir isso é o diálogo, por isso vamos insistir muito neste ponto nesta quinta no Senado”, reforça Marivaldo Pereira.
Edição: Rodrigo Chagas