"Não é operação, é vingança". "Chacina no Guarujá: execuções e tortura". "Parem de nos matar! O povo quer viver". As faixas foram erguidas em um protesto nesta quarta-feira (2) que reuniu cerca de 200 pessoas no distrito Vicente Carvalho, no Guarujá (SP). Movimentos de familiares de vítimas da violência do Estado, parlamentares e moradores de comunidades da Baixada Santista sob ocupação da Polícia Militar (PM) reivindicam a interrupção imediata da Operação Escudo.
Deflagrada na última sexta-feira (28), a megaoperação com cerca de 600 policiais é uma resposta à morte do soldado Patrick Reis, da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), na última quinta (27). Até agora, de acordo com a Ouvidoria das Polícias, ao menos 15 pessoas foram mortas pelos agentes estatais. Moradores das comunidades contabilizam 19.
"Essas são operações de morte. A gente vê os crimes de maio voltando à cena", definiu Débora Silva durante o ato, se referindo aos crimes de maio de 2006, quando a polícia matou cerca de 500 pessoas em nove dias, originando o Movimento Independente Mães de Maio, da qual é uma das fundadoras. "É o Estado produzindo uma violência contra a sociedade. A política do extermínio não deu certo, não vai dar", sintetizou.
Depois de negar excessos e afirmar estar "extremamente satisfeito" com o "profissionalismo" da PM, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) declarou, na última terça (1), que "não existe combate ao crime sem efeito colateral". Apesar de, segundo o governo paulista, os autores dos disparos que mataram o soldado Reis terem sido detidos, a previsão é que a Operação Escudo dure, no mínimo, 30 dias.
O governador e o secretário de Segurança Pública, o policial militar Guilherme Derrite (PL), chamam de "narrativa" as denúncias de tortura e execuções e afirmam que as mortes foram decorrentes de "confronto". Não é o que dizem moradores das comunidades.
"Não tem confronto"
Cláudia* chegou ao protesto poucas horas depois de enterrar seu tio, morto pela PM na última sexta (28). Evandro da Silva Belém, conhecido na quebrada como "Meu bom", tinha 35 anos. Segundo sua sobrinha, ele estava recolhendo entulho quando policiais chegaram. Alguns saíram correndo. Ele não.
"Ele não correu porque não devia nada. Arrastaram para um beco e mataram. Ele deixou duas filhas", contou Cláudia, mostrando o braço arrepiado ao falar do tio. "Quer dizer que porque a gente é pobre, tem que ser tratado desse jeito?", se indigna. "Não é operação, é opressão", resume.
Anita*, amiga de Evandro, conta que a família, desesperada, não conseguia se aproximar do corpo. A confirmação de sua morte levou horas. "Mataram ele às 15h, o IML [Instituto Médico Legal] chegou 19h. A família toda chorando, querendo informação, ninguém falava", relata.
"Eles entram na comunidade apavorando os moradores, falam que foi 'troca de tiro com a polícia' e fica por isso mesmo. A gente está assustada, eu mesma estou com medo de dormir até no meu quarto", diz Anita, moradora da comunidade da Prainha. "Não encontro palavras para dizer o que a gente está sentindo nesse momento. Entraram na casa da minha irmã, com criança, apavorando", descreve.
Laís*, moradora do Sítio Conceiçãozinha, outra comunidade alvo da operação, teve sua casa invadida sem mandado, com cachorro. À reportagem relatou que em tom de ameaça os policiais perguntaram quem tinha "passagem" (antecedente criminal). "[A Rota] chegou com muita brutalidade", afirmou, dizendo que fez questão de comparecer na manifestação.
"A intenção deles é sempre saber se alguém tem 'passagem'. Eles estavam entrando com bolsa de drogas porque a intenção é matar e depois alegar que foi troca de tiro, que era traficante", narra.
Dois de seus amigos foram assassinados pela polícia nos últimos dias. "Não teve confronto. Eu faço a pergunta para o Estado: como é que um pai de família com duas crianças dentro de casa consegue trocar tiro com a Rota, gente? Ele tinha uma criança no colo", afirma.
Laís se refere ao pedreiro Cleiton Barbosa Moura, morto aos 24 anos com um tiro no peito. De acordo com sua família, ele estava em casa com um filho de 10 meses no colo e um enteado de 13 anos no último sábado (29). A polícia o teria obrigado a passar o bebê para os braços do menino e sair de casa. Foi assassinado próximo ao mangue.
O outro conhecido de Laís é Felipe do Nascimento, de 22 anos. Trabalhava como ambulante na praia de Astúrias e foi assassinado na comunidade de Morrinhos. Segundo moradores, foi possível ouvir seus gritos por horas antes de ele ser executado.
Aurora* mora há 37 anos na Prainha. "Nunca vi algo como o que está acontecendo agora", garante. Viu a divulgação do ato no Facebook e compareceu com o marido e um de seus 6 filhos. "Estou amedrontada, oito da noite falo para meus filhos não saírem de casa, estão todos sendo enquadrados. A polícia está entrando com pé na porta nos barracos", ressalta.
"Não vi confronto nenhum, isso é mentira. Eu sou moradora. E quando alguém morre, não deixam ninguém chegar perto. A morte do policial aconteceu perto da Vila Júlia, mas todas as favelas estão passando por essa opressão", ressalta Aurora.
Com faixas, gritos de ordem e falas reverberadas por um carro de som, a manifestação durou até o fim da tarde. Organizado por uma série de coletivos, entre os quais o Movimento Independente Mães de Maio, o Movimento Mães do Cárcere e a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, o ato lançou uma nota com a assinatura de cerca de 260 organizações.
O documento reivindica, entre outros pontos, a atuação do ministro da Justiça Flávio Dino na cidade do Guarujá, a retirada dos policiais da Rota da cidade, a investigação de todas as mortes e a proteção das famílias das vítimas e de ativistas. Pede, ainda, a responsabilização do comando militar, do governador Tarcísio de Freitas e do secretário Guilherme Derrite pelos "assassinatos e terror indiscriminado nas comunidades do Guarujá".
*Os nomes foram alterados para a preservação das fontes.
Edição: Thalita Pires