Durante mais de dez dias, diferentes congregações religiosas de Cuba se reuniram em Havana para o 30º Seminário Ecumênico Sócio-Teológico. Organizado pelo Centro Martin Luther King, uma associação macro-ecumênica de inspiração cristã, o seminário foi dedicado às Teologias da Libertação e sua relevância no contexto atual.
O evento contou com a participação de diferentes comunidades de fé de todo o país, centros educacionais, grupos de estudantes cristãos, assim como educadores populares laicos.
Nesta edição, o encontro recebeu a teóloga brasileira Ana Claudia Figueroa, professora da Universidade Metodista de Angola, que proferiu palestras sobre a história da Teologia da Libertação e sua ligação com os movimentos sociais na América Latina e no Sul global.
Ana Claudia Figueroa, teóloga brasileira, discursa em painel de debate durante o encontro / Gabriel Lopes
"Às vezes, se pensa que a Teologia da Libertação é uma teologia ligada apenas ao catolicismo. Mas não é assim, há também uma teologia da libertação ligada a outras denominações, como as tradições do protestantismo. Ao mesmo tempo, pode-se pensar na teologia da libertação como um conjunto de textos, ou como a entendemos um conjunto de práticas eclesiais e de movimentos sociais", reflete Ana Claudia Figueroa para o Brasil de Fato.
::Centro Martin Luther King: como Cuba conjugou fé e revolução em um só lugar::
Pertencendo àqueles que resistem, lutam e acreditam
Em 1960, um ano após o triunfo da Revolução, um grupo de jovens crentes decidiu fundar o Movimento de Estudantes Cristãos. Esses jovens se sentiam identificados com o processo revolucionário que estava ocorrendo e, ao mesmo tempo, entendiam que sua militância deveria estar vinculada a seus espaços eclesiásticos.
O nascente Movimiento de Estudiantes Cristianos (MEC) conseguiu reunir várias personalidades que, mais tarde, ocupariam posições de destaque na vida religiosa do país. Entretanto, como resultado de seu ativismo e compromisso social, as hierarquias da igreja não apoiaram o movimento nascente, mantendo tensões importantes com seus membros.
Um jovem teólogo presbiteriano chamado Sergio Arce Martínez, que anos mais tarde se tornaria reitor do Seminário de Teologia em Matanza, juntou-se ao grupo e foi um dos principais promotores do que eles chamavam de "assembleias de estudo bíblico". Essas reuniões tinham como objetivo desenvolver uma teologia que estivesse em sintonia com as mudanças sociais e políticas pelas quais Cuba estava passando.
Com a participação de religiosos de diferentes denominações, além de trabalhadores e estudantes que se reuniam para discutir aspectos bíblicos e teológicos, assim como a realidade social, as assembleias de estudos bíblicos acompanharam as vertiginosas mudanças sociais que ocorriam no país no início da década de 1960. Arce começou a sistematizar esses debates em uma série de reflexões - divulgadas em vários livretos - que giravam em torno da necessidade de os cristãos lutarem contra as injustiças produzidas pelo sistema capitalista.
Dessa experiência surgiu o que viria a ser conhecido como a "teologia da revolução". Uma teologia que adotava abertamente os pressupostos marxistas e colocava no centro de suas reflexões as relações entre as pessoas e a natureza, assim como as relações entre as pessoas. Anos mais tarde, Arce sistematizou esses estudos teológicos em um livro de mesmo nome, "Teologia da Revolução". Após o processo de reaproximação entre as autoridades estatais e os líderes religiosos do país, Arce tornou-se deputado na Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba.
A teologia da revolução foi um dos antecedentes imediatos do que mais tarde seria chamado de "teologia da libertação" na América Latina.
Educação popular
"Uma das coisas que mais me atrai e que me faz apaixonar por esses espaços é que eles me fazem participar. Você aprende de forma coletiva, constrói coletivamente o conhecimento, um compromisso, um projeto e um processo. As pessoas são incluídas nesse processo educativo, a partir do que elas sabem sobre o mundo", diz Daimi Ruiz Varela, integrante da Rede de Educadores Populares, para o Brasil de Fato.
Daimi Ruiz Varela é uma das educadoras laicas que participaram do encontro deste ano. Ela coordena a Rede de Educadores Populares na província de Camagüey, uma das mais afetadas pelas recentes enchentes no país. A Rede de Educadores Populares é uma das organizações que tem trabalhado em diferentes projetos de solidariedade e acompanhamento para aqueles que perderam tudo em decorrência das fortes chuvas na ilha.
"Quando alguém passa por uma tragédia como as enchentes, essas pessoas precisam se apegar à fé. E o povo cubano é um povo muito espiritualizado, com muita fé. Este seminário é muito importante porque nos permite nos sentirmos parte da comunidade de fé e dialogar. Ele também nos permite encontrar pontos em comum entre as diferentes comunidades, bem como, como no meu caso, entre nós que somos laicos e essas comunidades de fé", acrescenta Daimi Ruiz Varela.
Mais amor, mais direitos
Em 25 de setembro de 2022, uma nova regulamentação foi aprovada em Cuba, conhecida como o novo Código das Famílias, que aumenta os direitos relacionados ao casamento igualitário, às famílias não tradicionais e aos direitos reprodutivos, entrou outros. O novo código de família foi submetido a um referendo popular, o que levou a um intenso debate e campanha - a favor e contra - nos meses que antecederam a votação.
Como parte desses debates, muitas igrejas conservadoras começaram a se agrupar para expressar sua rejeição aos novos direitos regulamentados pelo código em discussão.
O Movimiento Estudiantil Cristiano (MEC) lançou, então, uma campanha chamada "Más Amor, Más Derechos" (Mais Amor, Mais Direitos), na qual se posicionou a favor de todos os direitos para mulheres e pessoas LGBTIQ+. A posição do MEC não veio de graça: muitos setores religiosos começaram a assediá-los por suas posições políticas. No entanto, isso também permitiu que muitos jovens vissem outras formas de ser cristão.
Entre os temas discutidos, está a necessidade de garantia dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+ / Gabriel Lopes
"Quando vi a campanha, fiquei chocado. Fiquei muito impressionado com o fato de que os cristãos estavam fazendo campanha pelos direitos das mulheres e pela diversidade sexual. Então escrevi para eles e entrei em contato. Fui cristã durante toda a minha vida e, naquela época, já me considerava feminista. De alguma forma, eu estava tentando conciliar as duas coisas, mas muitos dos lugares onde eu estava envolvida em termos religiosos eram muito conservadores e isso criou muitas contradições para mim", disse Laura Vichot Borrego, professora da Universidade de Matanzas.
Laura diz que o contato com o MEC lhe deu a oportunidade de vincular sua crescente militância feminista à sua identidade e fé cristãs. Ela viajou de Matanzas, onde leciona Sociedade e Religião e Comunicação e Gênero na Universidade, para participar da reunião socioteológica.
"Para nos emanciparmos, temos de transformar as relações de dominação, não apenas interpretá-las. E essa é uma lição que o movimento de Jesus nos ensina. No contexto da romanização - que hoje poderíamos equiparar ao imperialismo - quando Jesus encontra os mercadores no templo, a reação é radical. João relata o episódio da seguinte forma: 'fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas e virou as mesas'. Jesus quebra as mesas, remove o que está lá e expulsa os comerciantes do templo. Em outras palavras, há um chamado não apenas para interpretar as estruturas de dominação, mas também para combatê-las", reflete Laura Vichot Borrego.
Diálogo no continente
"Vim a Cuba porque o povo cubano é um povo de grande coragem. Eles estão passando por uma luta difícil há anos. Uma luta que está ocorrendo aos pés do império", reflete Ana Claudia Figueroa.
E acrescenta que "o poder dos Estados Unidos, em nossa região, é um poder que não nos faz bem. É um poder que nos esmaga. Para muitos de nós, a experiência do povo cubano é uma experiência que precisa ser conhecida. Ao mesmo tempo, é necessário cultivar uma aliança com esse povo. Porque isso nos incita a superar a dominação que existe sobre nós."
Durante o seminário, Ana Claudia continuou perguntando aos participantes sobre a situação do país. Ela os ouve e está interessada nas diferentes opiniões que eles lhe dão. Longe de ser uma conferência em que "os que sabem" falam e os demais ouvem, as reuniões com Ana Claudia são mais parecidas com uma grande conversa. Sem falsa condescendência, ela discute quando acredita que uma posição é simples demais ou cheia de preconceitos.
"E acredito que o povo cubano, com todas as contradições que tem enfrentado desde o triunfo da revolução, é um interlocutor privilegiado. Sua história faz a diferença para aqueles que querem pensar sobre a história das lutas na América Latina. Tanto para seus sucessos quanto para seus erros. Estar em diálogo com essa experiência é fundamental para fortalecer nossas lutas. E que juntos possamos pensar de forma criativa os caminhos que temos que seguir", diz Ana Claudia Figueroa.
Edição: Patrícia de Matos
