Os últimos anos em Cuba foram marcados por importantes conquistas legislativas para a comunidade LGBTIQIA+. Em 25 de setembro de 2022, um novo Código da Família foi aprovado no país por referendo popular, revogando o que estava em vigor desde 1975. A nova legislação introduziu direitos como o casamento igualitário, casais homoafetivos adotarem crianças, maior proteção contra a violência doméstica, entre outros avanços.
O resultado foi o produto de décadas de lutas culturais, sociais e políticas e o debate, aberto pelo referendo, gerou embates públicos que Cuba não presenciava havia muito tempo. A discussão, tanto a favor quanto contra o novo código opôs neoconservadores que se articulavam contra o código e ativistas que lutam para a ampliação dos direitos na ilha.
O progresso feito pelo Novo Código da Família é ainda mais relevante, considerando que muitos países do Caribe têm sido historicamente hostis aos direitos LGBTIQIA+ e, somente nos últimos anos, ocorreram avanços legislativos na descriminalização da homossexualidade.
Em 2022, dois países do Caribe - Antígua e Barbuda, por um lado, e São Cristóvão e Névis, por outro - derrubaram as leis que tornavam crime a homossexualidade e a diversidade de gênero. Nesse contexto, a legislação aprovada coloca Cuba entre os países mais avançados em termos de direitos civis e representou um salto importante na conquista de direitos na região.
O direito de existir
"Nos últimos anos, houve um boom de ativismo em Cuba", diz o ativista Merle Rodríguez ao Brasil de Fato.
"A educação e a criação de espaços para o diálogo são muito importantes, mas não podemos parar por aí. Também é importante ir para as ruas e ajudar as pessoas, tentar aliviar as dificuldades daqueles que precisam", afirma ele, que coordena o grupo "Trans Masculinos Cuba" em Havana. Sentado em uma praça no bairro Sevillano, em um município 10 de Octubre, Merle conversou com a reportagem.
A alguns metros de distância, alguns meninos e meninas brincam juntos, correndo com seus carrinhos, enquanto os adultos que responsáveis por eles se exercitam. Merle fala enquanto cumprimenta os vizinhos que passam.
"Nosso objetivo é ajudar nossa comunidade. E não apenas materialmente, mas também criando redes de apoio. Muitos desses jovens vêm para o grupo fugindo de uma sociedade que os estigmatiza, zomba deles e, às vezes, até mesmo fugindo de suas próprias famílias que não os entendem, apoiam ou nem mesmo reconhecem sua identidade."
"Eles vêm para este grupo, onde os reconhecemos, dizemos a eles 'sim, você é um menino trans'. Nós os ajudamos com apoio psicológico, financeiro, assessoria se quiserem mudar de nome e uma rede de apoio", diz Marle sobre o trabalho que realizam.
O grupo nasceu no início do ano e nesse período Merle teve que assumir sua primeira grande missão na entidade: organizar uma feira para arrecadar fundos para comprar vários suprimentos para o tratamento das pessoas que fazem parte do coletivo. O bloqueio contra Cuba, somado à crise no país, dificulta o acesso de muitas pessoas transgênero aos tratamentos hormonais de que necessitam.
"Há alguns anos, eu fazia parte de um pequeno grupo que se dedicava basicamente a fazer campanhas de informação nas redes sociais. Passávamos muito tempo lá, discutindo e tentando informar tanto a comunidade trans como a comunidade LGBT em geral. Mas foi com o debate sobre o novo código de família que tudo começou a se tornar mais visível. De repente, não eram apenas alguns debates nas redes sociais, mas praticamente todos nós estávamos discutindo essas questões. Foi quando percebemos, no grupo, que tínhamos de sair e fazer essas discussões. Lembro que imprimimos alguns adesivos a favor do código e saímos para colá-los pela cidade", relembra Merle.
Foi por meio desse ativismo na mídia social que ele conheceu sua namorada, Verde Gil, jovem ativista do estado de Santa Clara. Por um tempo, o relacionamento foi meramente virtual. Mas há dois anos, Merle e sua namorada viajaram para Santa Clara para participar de um dos festivais mais importantes da ilha, o Trova Longina.
"Foi Verde quem deu início à ideia de criar um espaço para as masculinidades trans. Um espaço onde possamos nos encontrar, trocar experiências e acompanhar os processos uns dos outros. Há muito desconhecimento sobre as masculinidades trans, especialmente no interior do país", diz Merle.
Apesar das diferentes políticas públicas implementadas contra a discriminação, bem como da ampliação de direitos que a legislação atual concede, a discriminação é uma realidade social que esses grupos enfrentam todos os dias. A experiência da Trans Masculinos Cuba indica que ainda há muito pelo que lutar.
"Essas pessoas geralmente pensam que estão sozinhas, por causa de tudo o que passaram. Porque a sociedade, as escolas, as famílias viram as costas. Eles acham que são eles contra o mundo. Mas não são."
"Somos muitos que passaram pela mesma coisa, discriminados, estigmatizados, marginalizados e, felizmente, neste momento eles também estão se unindo, apoiando uns aos outros. Estamos mostrando ao resto da sociedade que também importamos e que não estamos sozinhos. Que temos a nós", reflete Merle.
O ativista fala enquanto observa as crianças brincando na praça. Sorri e diz: "Se não entendemos certas coisas, é somente o amor que deve falar. Além de crenças, ideias ou o que você acha que é certo ou errado, além de sua verdade. O amor que você sente por outra pessoa deve ser suficiente para apoiá-la e ajudá-la".
Restam desafios
Ely Malik está no último ano do curso de Educação Física. Ele conta que, quando decidiu iniciar a transição de sua identidade de gênero, foi como "sair do armário pela segunda vez". Atualmente, participa do Masculinidades Trans Cuba.
"A identidade de gênero não é uma escolha simples, como escolher qual par de tênis usar", afirmou ao Brasil de Fato. "Sempre temos que deixar claro que uma pessoa da comunidade não está escolhendo, porque ninguém vai escolher ser marginalizado, agredido, discriminado. Simplesmente é assim que somos".
"Atualmente, temos muito mais direitos com o novo código, isso é muito importante, mas temos que continuar lutando. Porque, embora seja um grande avanço o fato de haver casamento igualitário, a verdade é que, como pessoa trans, ainda não posso me casar respeitando minha identidade", diz Ely.
Uma lei que permita o reconhecimento legal da identidade de gênero é uma das principais demandas da comunidade trans em Cuba. Permitir que o gênero seja reconhecido legalmente sem a exigência de exames psiquiátricos ou físicos ou que a pessoa tenha que se submeter à cirurgia de mudança de sexo, existe em vários países do continente, como Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador e Peru.
O grupo também busca desconstruir o significado do "masculino". Em uma sociedade, como as latinas, em que o machismo ainda é um grande problema, eles repensam e discutem que tipo de homem querem ser. Ely está convencido de que essa não é apenas uma luta muito importante, mas também difícil.
"Eu escolho a pessoa que quero ser. E não quero ser o homem normativo. Não quero ser um homem machista, um homem que maltrata. Quero ser algo totalmente diferente, quero ser um homem que possa compreender e um homem igualitário", acrescenta Ely.
"Costuma-se dizer que as mulheres são fracas. Eu acredito no contrário. Porque é preciso ter uma força enorme para fazer tudo o que elas fazem. Mesmo que muitas vezes elas tenham que suportar muita injustiça."
"Acho que nós, homens, poderíamos ser muito mais livres se nos permitíssemos estar mais conectados com o que acontece conosco: com nossas dores e medos. Mas, acima de tudo, se aprendêssemos a pedir ajuda. Há muito sofrimento e muita violência nos mandatos do que é ser um homem", reflete Ely.
Foi a namorada de Ely que o levou ao ativismo LGBTIQIA+. Durante anos, ela esteve envolvida em um ativismo duplo: ativismo racial negro e de dissidência sexual. Foi ela quem o convenceu de que acabar com todas as formas de opressão, inclusive entendendo como elas relacionam umas com as outras, se cruzando.
"A discriminação é o escudo do covarde. Aquele que não é corajoso, que não se atreve a ir além do que conhece. Aquele que vê algo diferente e não é capaz de entender. Em vez de procurar entendê-lo, ele usa a discriminação.
Ely começou a praticar atividade física ainda muito jovem. Durante anos, teve de suportar o preconceito quando treinava. Hoje, sonha em abrir uma academia onde a comunidade LGBTQIA+ possa se exercitar sem ter que passar pelo desconforto que muitas vezes existe no mundo das academias por causa da zombaria ou da incompreensão. Ao mesmo tempo, ressalta que o compromisso com a transformação é acompanhado pelo compromisso de criar espaços onde as crianças possam crescer livres de preconceitos.
"Algo que me preocupa muito e está em minha mente são as crianças transgêneros. Em Cuba, temos muitas crianças que estão sendo criadas novamente sob o patriarcado, sob o machismo, e elas não se sentem seguras."
"Talvez se você der a elas um lugar onde possam ser elas mesmas, isso as ajude. E isso os prepara de uma maneira diferente para o futuro e eles nascem como jovens mais capacitados, algo que eu não tive. Porque, na minha época, eu me sentia uma criança, o que recebia era gozação e cancelamento: 'não se comporte assim', 'não faça isso'. É isso que estou buscando, que nós que estamos envolvidos nisso nos tornemos mais fortes e que as crianças trans aprendam e tenham um lugar para serem elas mesmas.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho