"Não vou conhecer meus bisnetos, mas não quero deixar isso para eles", enfatizou o auditor Francisco Fernández ao apresentar o relatório "Dívida pública: acordo com o FMI. Impacto sobre a solvência e a sustentabilidade", durante a sessão da Auditoria Geral da Nação (AGN) da Argentina, no último dia 17. "A forma ligeira com que se aumentou a dívida externa argentina nesse período e as consequências que se apresentam hoje para nosso país certamente pesarão sobre as gerações futuras."
O relatório da AGN fez o questionamento sobre a legalidade da dívida externa argentina voltar à tona. O empréstimo de US$ 45 bilhões outorgado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) violou regras e normas tanto do governo do país como do próprio Fundo e consiste, hoje, no principal fator condicionante das políticas econômicas da Argentina.
O crédito aprovado pelo FMI à gestão de Mauricio Macri (2015-2019) em 2018 foi de US$ 57 bilhões de dólares – dos quais US$ 45 bilhões foram liberados – o maior empréstimo já concedido pelo órgão. O valor, conforme afirma o relatório, excedeu 127 vezes a capacidade de endividamento do país.
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O governo macrista realizou o processo às pressas, ignorando as massivas manifestações contrárias ao FMI e as regulamentações que preveem que, para contrair uma dívida externa, o tema deve passar pelo Congresso Nacional ou via decreto. "É uma dívida externa. E como dívida externa, deveria cumprir os passos normativos que a regulamentação argentina exige", pontuou a auditora María Graciela de la Rosa durante a sessão da AGN.
Além disso, o acordo de Macri com o Fundo previa um pagamento em cinco anos, até 2024, o que é considerado por especialistas como um prazo impossível para a arrecadação do país. Por isso, o governo do atual presidente, Alberto Fernández, encarou uma renegociação, firmada no ano passado, em 2022.
A partir do acordo, o FMI audita trimestralmente as contas macroeconômicas da Argentina para garantir o cumprimento do acordo segundo as exigências do órgão. Significa, em outras palavras, ajustar os gastos do Estado priorizando o pagamento da dívida. Nos últimos três anos, mesmo com superávit comercial de US$ 15 bilhões, a Argentina perde a capacidade de acumulação de dólares ao direcionar suas reservas à dívida externa.
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O relatório da AGN não é o primeiro a apontar as irregularidades no empréstimo. "O Banco Central publicou um relatório em maio de 2020 em que denuncia que dos US$ 100 bilhões que entraram na Argentina durante o governo de Macri, 86% foi retirado do país", diz o professor de economia política e presidente da Fundação de Pesquisas Sociais e Políticas, Julio Gambina, mencionando o esquema de fuga de capitais.
A herança deixada por Macri ao governo seguinte, assumido pela coalizão Frente de Todos, se refletiu em todos os projetos de orçamento público anuais da gestão de Fernández. "Esses projetos começam dizendo que, primeiro, temos que resolver a dívida com os credores privados e com o FMI para ter a possibilidade de construir políticas econômicas", analisa Gambina.
"Isso é um problema, porque a crise de empobrecimento da Argentina, a inflação elevada e a tendência de desaceleração do crescimento econômico estão estreitamente ligados ao fato de que tudo está subordinado e condicionado ao pagamento da dívida", afirma.
Impacto na população
Pelo menos a próxima década já está comprometida com as consequências do retorno do FMI à Argentina. A renegociação firmada por Fernández com o Fundo, e aprovada pelo Congresso, prevê um esquema de pagamentos até 2034.
O governo busca antecipar repasses do Fundo após uma seca severa prejudicar as exportações e, portanto, diminuir a entrada de dólares e reduzir as reservas da moeda dos EUA no Banco Central da Argentina. O FMI, contudo, resiste em liberar os recursos.
Enquanto isso, a inflação é crescente e está em 108% no índice de crescimento anual. Mas foi a partir de 2022, ano em que Fernández firmou o novo acordo de pagamento da dívida do FMI, que o indicador disparou: 2022 fechou com 94,8% de inflação anual.
Na população, isso se reflete em números igualmente dramáticos. Atualmente, cerca de 11 milhões de pessoas, ou 39% da população, na Argentina está em situação de pobreza. A taxa do desemprego segue em queda, situado em 6,3%, mas, com a alta inflação e a desvalorização real da moeda, cerca de 30% dos trabalhadores são pobres, incluindo empregados formais.
Em paralelo, a escassez de reserva de dólares entra como um novo problema constante. Atualmente, as reservas do Banco Central da Argentina são de US$ 36 bilhões, uma queda de 4,2% em relação ao mês anterior e de 15,5% interanual.
Analía Zárate é militante da Coordenação pela Mudança Social, integrante da Frente de Organizações em Luta (FOL), que reúne movimentos de base nascidos durante as mobilizações da crise econômica de 2001 na Argentina. Ela destaca o impacto direto das políticas econômicas orientadas pelo FMI na população.
"Os setores mais afetados pelo desemprego acabam sendo os que menos recursos recebem. Com o desespero do governo pela escassez de dólares, começam a arquitetar estratégias de desvalorização gradual para evitar desvalorizar a moeda em sua totalidade", pontua, destacando que o grande empresariado e o setor exportador são os que recebem maiores benefícios.
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É o caso, por exemplo, do dólar agro, uma melhor cotação específica para agroexportadores. A medida busca incentivar o setor a liquidar seus cultivos, e evitar que guardem seus grãos especulando com o aumento do dólar.
"Parte da luta que temos hoje é contra os cortes dos alimentos dos refeitórios populares", conta Zárate. "Vem pouca mercadoria, de má qualidade, estragada. Outro ponto é o programa de emprego, dependente do Ministério do Desenvolvimento, o Potenciar Trabalho, que teve muitos cortes e gera uma espécie de contaminação social: as pessoas não podem acessar o emprego e não podem se alimentar", enfatiza.
Neste mês, dezenas de movimentos populares marcharam rumo ao Ministério do Desenvolvimento contra cortes no orçamento público. Foram movimentos sociais que não costumam estar juntos: estavam desde o movimento piqueteiro, como os da FOL, até organizações ligadas ao governo nacional, como o Movimento Evita.
"Como a Argentina quer pagar o FMI e os credores, enquanto cumpra esses pagamentos, deve restringir o gasto em saúde, educação", destaca Julio Gambina. "Por isso, a crise atual, expressa em inflação e empobrecimento da população, o condicionante da dívida e especialmente do acordo com o FMI é o que explica a crise econômica atual da Argentina."
Edição: Thales Schmidt