No momento em que as perspectivas para uma solução do conflito entre Rússia e Ucrânia parecem cada vez mais nebulosas, a política externa brasileira enfrenta o desafio de manter a neutralidade em relação à guerra sem se desgastar com os países envolvidos. Essa tentativa de equilíbrio ocorre enquanto Rússia, Ucrânia e o Ocidente acirram suas posições e o diálogo não avança. Mas, afinal, o Brasil teria passado da fronteira da imparcialidade ao votar a favor de uma resolução na ONU contra a invasão russa e comprometido sua possível capacidade de mediação?
Na véspera da guerra na Ucrânia completar um ano, o Brasil manifestou uma inclinação na direção da Ucrânia, votando junto com outros 140 países a favor de uma resolução da Assembleia Geral da ONU condenando a invasão russa. Chamou a atenção o fato do voto do Brasil ter destoado dos outros países do grupo Brics. Além da Rússia, que naturalmente votou contra a resolução, China, Índia e África do Sul se abstiveram. No total, foram 30 abstenções. Também se levantou o debate se o Brasil estaria flexibilizando sua neutralidade e cedendo ao alinhamento do Ocidente.
Na mesma semana, Lula conversou por telefone com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e defendeu a "integridade territorial da Ucrânia". "Reafirmei o desejo do Brasil de conversar com outros países e participar de qualquer iniciativa em torno da construção da paz e do diálogo. A guerra não pode interessar a ninguém", disse Lula no Twitter.
A posição brasileira na ONU provocou uma reação negativa na diplomacia russa. O vice-chanceler Serguei Ryabkov declarou que Moscou lamenta a posição adotada pelo governo brasileiro e destacou que "não há necessidade de mediação" para a crise ucraniana. O diplomata, no entanto, reforçou a manutenção do diálogo positivo entre Rússia e Brasil.
"Respeitamos completamente a vontade política da liderança brasileira, que quer encontrar uma forma de colocar um fim à guerra. Mas, quando falo que não existe necessidade de mediação, a única coisa que precisa da parte de outros é reconhecer o interesse legítimo da Rússia", disse o diplomata russo. "Se o Brasil fosse capaz de apreciar de forma ampla a lógica intrincada desse caso trágico, então acho que o Brasil votaria numa forma que pelo menos seria de abstenção", completou Raybkov.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, um dos principais especialistas russos sobre América Latina, o Brasil mantém uma coerência em sua posição sobre a guerra. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que o "Brasil demonstra uma posição ponderada, atrelada a princípios multilaterais e à diplomacia da ONU". "Nesse sentido, o Brasil está mais perto do papel de um mediador nessa situação", acrescenta.
O pesquisador observa que, apesar do sinal de apoio à Ucrânia na ONU – que Moscou enxerga como "antirussa" –, o Brasil não prejudica o seu status de potencial mediador do conflito junto ao Kremlin. De acordo com Jeifets, para a Rússia é muito mais importante o Brasil negar o fornecimento de munições ao Ocidente e não participar de sanções unilaterais contra Moscou.
"O fato de que Lula continua não fornecendo armas para um lado ou outro é muito mais importante, porque o Brasil possui reservas de munições que poderiam ser utilizadas no conflito e o Brasil disse um 'não' categórico durante a visita do [chanceler alemão] Olaf Scholz. Então eu acredito que o Kremlin vê isso com entendimento", argumenta.
Apesar de manifestar um "lamento" pelo voto do Brasil na ONU, Moscou não deixou de enviar sinais de que valoriza os esforços de mediação do governo brasileiro. Nas palavras de outro vice-ministro das Relações Exteriores russo, Mikhail Galuzin, Moscou registrou as "declarações do presidente do Brasil sobre o tema de uma possível mediação, a fim de encontrar caminhos políticos para evitar a escalada na Ucrânia".
"Gostaria de enfatizar que a Rússia valoriza a posição de equilíbrio do Brasil na atual situação internacional, sua rejeição a medidas coercitivas unilaterais tomadas pelos EUA e seus satélites contra nosso país e a recusa de nossos parceiros brasileiros em fornecer armas, equipamentos militares e munição para o regime de Kiev", destacou o diplomata.
O papel de países terceiros não envolvidos no conflito já teve momentos de êxito na mediação entre Rússia e Ucrânia. O caso mais emblemático desde o começo da guerra foi a participação da Turquia no acordo sobre a liberação da exportação de grãos ucranianos, que estavam bloqueados no Mar Negro desde o começo do conflito. Moscou e Kiev não dialogaram diretamente, mas chegaram a um acerto por intermédio de Ancara e da ONU.
O professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, acredita que o Brasil possui uma posição ainda mais privilegiada do que a Turquia no atual cenário, principalmente porque não está implicada no fornecimento de armas a nenhuma das partes do conflito. A Turquia, por sua vez, é responsável por entregar drones Bayraktar TB2 a Kiev e faz parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Para Jeifets, o Brasil tem uma posição "quase ideal" para desempenhar o papel de negociador do conflito.
"Em primeiro lugar, deu a entender clara e distintamente que apoia a soberania territorial da Ucrânia que não deve ser alterada pelo caminho militar. E isso não pode deixar de ser visto como um passo a favor da Ucrânia. Em segundo lugar, o Brasil deu a entender que não se deve adotar uma posição para um lado ou outro, mas que deve encarar a questão da segurança estratégica de todos os países envolvidos, inclusive a Rússia. Isso não pode deixar de ser visto como um passo na direção da Rússia”, analisa.
Como a Ucrânia vê a posição do Brasil?
No ano passado, quando o presidente Lula ainda estava em campanha presidencial e manifestou uma crítica contundente à Ucrânia e o Ocidente por não realizarem esforços para pôr fim à guerra, o centro de inteligência do governo da Ucrânia chegou a incluir o então candidato à presidência em uma lista na qual era acusado de fazer "propaganda russa". Posteriormente, o petista foi retirado da lista.
Na mais recente conversa telefônica com Lula, Zelensky agradeceu o Brasil pelo voto contra a condenação da invasão russa na ONU e reiterou o convite para o presidente brasileiro visitar Kiev.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, afirmou que Kiev apreciou a proposta brasileira para elaborar um grupo de paz entre países não envolvidos no conflito, mas, ao mesmo tempo, reforçou que "não há qualquer discussão séria sobre isso".
Ele lembrou que a Ucrânia tem o seu próprio plano de paz, que consiste em dez pontos, entre os quais se destacam a restauração da integridade territorial da Ucrânia; a retirada das tropas russas e o fim das hostilidades; e a instauração de um tribunal para processar os crimes de guerra russos. Para Bortnik, o plano de paz de Zelensky "praticamente pressupõe a capitulação da Rússia e a Ucrânia por enquanto não está pronta para avaliar ativamente outros modelos".
O cientista político observou, entretanto, que a iniciativa do Brasil é frutífera, pois, ainda que não tenha respaldo em termos práticos atualmente, a mediação brasileira via G20 pode ser uma base de um modelo a ser apoiado no âmbito da ONU.
"O formato do G20 é talvez mais produtivo hoje para soluções de paz, porque ele inclui o G7, com os países mais ricos e fortes do mundo, da parte ocidental, e inclui países do Oriente, do Sul. É um formato mais equilibrado, de mais compromisso", acrescenta.
A próxima oportunidade para o Brasil avançar na tentativa de se firmar como um mediador na crise ucraniana já tem data marcada. Esta prevista uma visita do chanceler russo, Serguei Lavrov, ao Brasil em meados de abril, e a proposta de Lula de criar um grupo de países mediadores para a paz deve ser uma das pautas centrais do lado brasileiro.
Edição: Thales Schmidt