Desde que anunciada, a sede da atual Copa do Mundo de futebol de homens tem evocado protestos de pessoas e grupos em várias partes do mundo. Catar é um país conservador do Oriente Médio que, como outros da região, transpira testosterona e pratica uma masculinidade ortodoxa, criminalizando a homofobia e erotizando sua realidade a partir da lógica seletiva da heteronormatividade.
Mas a questão é que, ao defender valores tão restritos como os da monogamia, da “família tradicional”, do sexo apenas entre homens e mulheres (cisgêneros, diga-se de passagem), des-erotiza uma porção de outras coisas, pessoas e situações, incluindo o futebol. Na execução de uma masculinidade dominante, bruta e violenta, mulheres precisam apanhar para serem corrigidas e pessoas LGBTQIA+ devem morrer. Para o Catar, isto vale lá, na Copa e para o resto do mundo.
Porém, tanto a vida quanto o futebol são mais do que isso. Futebol é tradição, mas também é invenção; compõe-se de chutes diretos ou de jogadas mirabolantes (como o gol do Pombo, no primeiro jogo do Brasil contra a Sérvia); faz-se de táticas e regras, e mesmo assim ainda é arte. Ele pode ser jogado por mulheres, homens de quaisquer expressões de gêneros ou orientações sexuais.
Frente a este cenário tão odioso e funesto, ONGs e instituições de direitos humanos tinham a ilusão de que diante da grandiosidade do megaevento futebolístico, o Catar pudesse fazer algo diferente: talvez ser acolhedor, talvez incentivar o turismo de pessoas LGBTQIA+ para suas cidades, talvez acolher mais mulheres em estádios de futebol, talvez…
Antes mesmo do início da competição, havia uma alta expectativa sobre a Campanha #OneLove, que começou a ser movimentada nas redes sociais por equipes europeias participantes do torneio, cujos capitães usariam braçadeiras com o símbolo do arco-íris em mensagem contra a homofobia e em prol de aceitação da diversidade de gênero e sexualidade no futebol.
Jogadores como Manuel Neuer, goleiro da Alemanha, e Harry Kane, atacante da Inglaterra e artilheiro da Copa de 2018, foram os mais destemidos e os que mantiveram suas intenções de uso até mesmo quando já havia rumores de que a FIFA proibiria manifestações do tipo, como sempre faz em respeito a atos políticos.
Um dia antes do início do torneio, portanto, a FIFA publicou que, caso algum jogador usasse tais braçadeiras, a arbitragem lhe imputaria um cartão amarelo e, assim, suas equipes começariam a competição em desvantagem perante outras. A campanha colorida naufragou diante de uma opaca e sem vida braçadeira oficial dos organizadores com a insossa mensagem NO DISCRIMINATION. A única pessoa no contexto a usar a tal braçadeira foi Nancy Fraser, ministra alemã que via o primeiro jogo de seu país da arquibancada.
A principal polêmica diz respeito à homossexualidade (de gays e lésbicas), que no Catar é criminalizada porque as expressões de sexualidade dela derivadas vão contra os preceitos do Islã e da “natureza” do encontro entre homens e mulheres, criados por Allah.
O que se viu, então, desde o início do torneio foi uma série de aberrações da FIFA e do Comitê Organizador, direcionadas às livres expressões de torcedoras/es no Catar: fans ingleses fantasiados de cavaleiros medievais foram proibidos de circular (porque tal indumentária faria referência ao movimento das Cruzadas, que matou muçulmanos nos séculos XI e XIII), torcedores LGBTQIA+ foram impedidos de portarem bandeiras coloridas nos espaços da competição (depois foi liberado o uso nas arquibancadas) e mesmo o brasileiro Victor Pereira, morador do Recife e correspondente no evento, foi apreendido com sua bandeira do Estado de Pernambuco por ter sido confundida com a do movimento LGBTQIA+.
Além disso, o italiano Mario Ferri, que costumeiramente invade jogos em Copas do Mundo do futebol de homens, paralisou o jogo entre Portugal e Uruguai, ainda na fase de grupos no dia 28 de novembro, protestando com uma uma bandeira LGBTQIA+ nas mãos e vestindo uma camiseta defendendo o fim do conflito na Ucrânia e em defesa das mulheres iranianas.
O que o Comitê Organizador faz (endossado pela FIFA) não é apenas uma política de impedimento e castração em nome de valores tradicionais de um lugar não-ocidental como o Catar. Ele pratica, deliberadamente, uma política de aniquilamento, de extermínio, do diferente, daquele que não se alinha com o que é pregado pelos costumes da localidade-sede – nesse sentido, leia-se o triste depoimento do torcedor inglês que, vivendo abertamente como gay na Inglaterra, teve que voltar para dentro do armário ao viajar para torcer nos jogos da Copa.
Esquecem-se, ambos, de que o mercado da bola é global e, em assim sendo, muita coisa é posta em circulação, inclusive pessoas, costumes, práticas e outras formas de vida, incluindo outras expressões de gênero e sexualidade. A tênue fronteira entre o permitido e o interdito não é fixa, não deveria se basear em limites terrestres ou costumes locais, mas precisaria estar assentada nas formas de aceitação irrestrita do outro, indepentemente de onde este outro está ou para onde se desloca em dado momento.
Sem isso seremos sempre, de quaisquer pontos de vista que se tomem, etnocêntricos, reprodutores de valores morais xenófobos, racistas, homofóbicos, etc., projetos de ditadores em potencial, prontos a executar políticas aniquiladoras, baseadas sempre nas melhores intenções.
* Wagner Xavier de Camargo é antropólogo que se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas áreas de Educação Física e Esportes. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela UFSCar, Doutorado em Ciências Humanas pela UFSC e estágio doutoral na Freie Universität von Berlin (Universidade Livre de Berlim), na Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.