Opinião

Comitês Populares: brotos de solidariedade sob novas arenas

Cozinhas Solidárias, Pontos de Cultura, cooperativas, capacitações, hortas comunitárias são alguns caminhos possíveis

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Urge, diante disso, semear e cultivar entre a esperança que ainda resta (e sempre resta) - Foto: Tanam A. Hennicka

Uma noite especial marcou, na última quarta-feira (6), a inauguração do Comitê Popular de Luta do Bairro Farrapos, em Porto Alegre (RS). Localizado em uma das principais vias de acesso do Quarto Distrito de Porto Alegre, deverá ser um espaço de organização social dos moradores para a reivindicação e a defesa de seus direitos, entre outros objetivos de interesse popular.

O clima de festa despertava a atenção dos transeuntes, condutores e passageiros que passavam no local e expressava bem mais do que uma festa eventual. No caminho a uma arena em que os gaúchos costumam se dividir entre o azul e o vermelho, brota outra vez um entusiasmo mais duradouro, de cores inúmeras, que singularizam, unem e misturam passados, sonhos, lutas, conquistas e, sobretudo, esperanças e utopias, entre elas – e sobre elas – a de um país mais justo e melhor para se viver. É o calor da organização popular sobre velhas e novas arenas.

A movimentação entre pessoas do cotidiano do bairro com ilustres lideranças comunitárias, estudantis, sindicais e políticas em um modesto e caprichosamente decorado prédio expressava também a importância desse comitê para aquela comunidade, protagonista de grandes lutas e de exemplares conquistas. O significado de comitê, como um grupo de indivíduos que trabalham juntos para resolver um problema ou realizar um projeto, foi ampliado e ressignificado ao longo da história da humanidade.

Na França do fim do século XVIII o Comitê de Salvação Pública era centro de articulação das demandas pró-república; na Rússia pré-revolucionária do início do século XX o comitê central inspirará mais tarde os chamados sovietes, conselhos locais de trabalhadores e soldados em que se tomavam decisões de interesse coletivo na construção do governo popular; em povos de culturas tradicionais milenares, como a africana e a indígena, lembram também os comitês as organizações coletivas tribais de decisão para responder a demandas locais, sob códigos morais de uma comunidade, uma casta ou uma aldeia.

No Brasil, no início da década de 1990 – entre os escombros sociais dos regimes militares a herança do entreguista governo Collor e as mazelas dos governos neoliberais de FHC – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criava a Ação da Cidadania que tinha como objetivo maior combater a fome no Brasil, aliando a isso cidadania e dignidade. Nesse período, pela sua potência de mobilidade, pluralidade e apelo social, esses comitês provocaram grandes mobilizações, combinando cooperação, solidariedade e conscientização.

Ainda naquele momento histórico, aqui em Porto Alegre, no primeiro governo da esquerda na Capital, Olívio Dutra inaugurava em sua Administração Popular o Orçamento Participativo, uma experiência de democracia direta que projetou a cidade pelo país e pelo mundo e que tinha nos conselhos e comitês populares sua base de decisão e de transparência. Mais tarde, os governos Lula, irá também seguir essa orientação, fortalecendo e criando conselhos, em diferentes áreas e níveis, espalhando nacionalmente essa identidade de participação popular e de aprofundamento da democracia nos governos de esquerda.

Portanto, assim como as fomes, de pão, de liberdade e de dignidade não são novidade na trajetória dos povos, também têm sido marcantes na história de nossas gentes as reações visionárias, as iniciativas solidárias contagiantes e as grandes transformações que elas produziram a partir delas, desde os debaixo. E os comitês, em suas diferentes formas, têm se constituído, canais para isso.

Mas no Brasil de 2022, a aridez econômica, social e política que nos joga o governo Bolsonaro impõe aos comitês populares um desafio maior. O avançado nível da insensibilidade social e das violências de uma cultura antipolítica difundidas por esse governo substanciam a insegurança alimentar e o individualismo sistêmicos, que geraram uma apatia social mais profunda. E nessa conjuntura, o desafio dessas iniciativas de mobilização social é a de serem, ao mesmo tempo, acolhedoras, organizativas, resolutivas, conscientizadoras e mobilizadoras.

Urge, diante disso, semear e cultivar entre a esperança que ainda resta (e sempre resta), uma sinergia de forças populares, que possa recuperar os ânimos nas esferas da vida, da comunicação, da cidadania, da dignidade e das utopias. Cozinhas Solidárias, Pontos de Cultura, cooperativas, capacitações para a geração de renda, hortas comunitárias, são alguns desses caminhos possíveis para os quais os comitês devem facilitar a organização e a resposta às demandas urgentes das periferias. E os comitês populares têm um papel estratégico e cotidiano nessa construção.

Então, muita vida para o Comitê Popular de Luta do Bairro Farrapos!

*Ronaldo M. Botelho é jornalista.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko