Eu não tenho ambição de um cargo, dependerá dele. Lula tem liberdade de escolher o que for melhor
O momento auspicioso da América do Sul, que tem oito de seus 12 governos considerados progressistas, pode ganhar ainda mais força caso a eleição no Brasil se concretize com a vitória de um candidato que defenda correntes políticas que se alinhem ao continente. É o que garante o ex-ministro das Relações Exteriores (nos governos Lula) e da Defesa (na gestão de Dilma Rousseff), Celso Amorim.
Ao analisar a conjuntura local, Amorim acredita que o momento atual é diferente da primeira onda progressista que tomou a região, entre os anos de 2002 e 2015, vividos intensamente pelo diplomata, que carrega entre os avanços de sua gestão, a criação de importantes instituições como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos).
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"O Brasil tem uma importância muito grande no conjunto da América do Sul. Se o Brasil estiver caótico como ele está agora, é difícil a América do Sul se ajeitar, porque individualmente, os países podem melhorar, mas a relação deles com o mundo, de alguma forma, envolve o Brasil", explica o ex-chanceler.
O período foi sucedido por uma onda conservadora que tomou o continente, a mesma que fez chegar à presidência do Brasil Jair Bolsonaro (PL). Os conservadores, no entanto, não conseguiram manter o poder sob a região.
"[Isso] se deve ao fracasso total do neoliberalismo, ao crescimento da pobreza, do desemprego, as dificuldades das pessoas mais velhas sobreviverem, até porque os sistemas de saúde, de previdência, de 'securidad social', como eles chamam, é muito afetado. Isso tudo levou a mudanças muito importantes", afirma Celso Amorim.
Amorim está lançando um livro que trata justamente do continente latino-americano e seu momento, até então, mais vigoroso. A publicação "Laços de Confiança - O Brasil na América do Sul", da editora Benvirá, faz um recorrido pela memória dos acontecimentos que marcaram os anos em que foi ministro das Relações Exteriores do ex-presidente Lula, entre 2003 e 2011.
Na publicação, que ele caracteriza como um "copião de um filme, ou como se eu tivesse colocado uma câmera atrás dos atores, para ver eles falando, reclamando às vezes, do papel que lhes é dado", traz histórias dos bastidores das principais lideranças da região.
"É um livro que, digamos assim, pode ter muitos defeitos e erros, não do livro, mas erros de previsão, de cálculo. Ele é muito franco, eu não apaguei aqueles momentos em que eu estava errado, aquilo ficou. Acho que é um livro muito vivo, de como a política externa é feita", aponta.
Convidado desta semana no BDF Entrevista, Celso Amorim revela que, apesar de não ter expectativas para uma nova chance como ministro das Relações Exteriores, em caso de vitória do ex-presidente Lula, nas eleições deste ano, não recusaria a um chamado para exercer a função novamente.
"Olha, eu não tenho ambição de um cargo específico, dependerá dele. O Lula tem a liberdade de escolher o que for melhor para ele, para o governo dele. Se ele achar que eu posso ajudar, pode ser. Eu não sei, pode ser que ele encontre alguém mais moço, alguém com mais energia", afirma o ex-chanceler.
"Agora, aposentadoria também não, eu vou continuar dando palpite. E o que eu falo sempre, de brincadeira, se ele me der uma salinha ali nos fundos do Palácio Planalto, para de vez em quando eu tomar um cafezinho com ele, eu ficaria muito feliz", completa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Gostaria de começar essa conversa falando sobre o seu mais novo livro, "Laços de Confiança - O Brasil na América do Sul", onde senhor faz um recorrido pela memória dos acontecimentos que marcaram a primeira onda progressista da América do Sul, durante os anos do governo do ex-presidente Lula. Era impossível imaginar, naquele momento, que chegaríamos ao estado de caos que vivíamos até meses atrás no continente?
Celso Amorim: Primeiro, é preciso dizer que é óbvio, aliás, mas é sempre bom lembrar, que o Brasil tem uma importância muito grande no conjunto da América do Sul, e que se o Brasil estiver caótico como ele está agora, é difícil a América do Sul se ajeitar, porque individualmente, os países podem melhorar, mas a relação deles com o mundo, de alguma forma, envolve o Brasil.
É um país muito grande, um país que é metade da América do Sul do ponto de vista de Produto [Interno] Bruto, do ponto de vista de território, população. Então, como o Brasil continua sendo um caos isso, de certa maneira, impregna o conjunto do relacionamento da América do Sul. Mas a evolução nos países tem sido positiva, para falar das coisas mais recentes, o Chile, a Colômbia e eu acho que o encaminhamento em geral é positivo.
Não é simples, é um continente muito desigual, ainda é muito dependente da exportação de commodities. Há uma presença muito grande dos Estados Unidos, agora também a presença da China que começa, pelo menos, a haver um equilíbrio em torno disso.
Mas, digamos assim, é um continente, considerando a América do Sul como um continente, ainda muito desintegrado. Melhorou muito nesses anos que você mencionou, por exemplo, do ponto de vista do Brasil, a América do Sul, nesse período da primeira década do milênio, passou a ser mais importante do que os Estados Unidos como mercado para os produtos brasileiros, mas mesmo assim, ainda é um continente muito pouco integrado e muito pouco coerente nas suas posições, e isso enfraquece nas colocações no mundo.
Eu tenho esperança de que as coisas continuem caminhando positivamente e, obviamente, se elas caminharem positivamente no Brasil, como todos queremos e esperamos, isso terá uma influência muito grande na região.
Como foi buscar essas memórias, sobre esses tempos vividos?
Esse livro levou muito tempo para ser produzido, para ser consolidado como um livro mesmo. Na realidade, ele se baseia essencialmente nas minhas próprias notas, que eu tomei, aliás, sobre outras regiões, sobre outros fatos também, mas eu nunca tinha escrito. Já tinha escrito sobre a relação do Oriente Médio, tinha escrito sobre a ALCA, obviamente a América do Sul sempre estava presente nos livros, de uma maneira ou de outra.
Já tinha escrito sobre a própria Unasul e a comunidade sul-americana, mas nunca tinha escrito sobre as relações bilaterais do Brasil com os países da América do Sul. Então, recolhendo essas anotações, que são várias e qualquer pessoa que abrir o livro verá que são muitas, eu estruturei o livro em torno delas, país por país, da Argentina, seguindo a ordem de sul para o norte: Argentina, Uruguai, Paraguai, assim por diante.
Obviamente, eu não podia me limitar às minhas anotações porque, em alguns casos, elas poderiam ficar incompreensíveis se você não desse um contexto, em outros casos era preciso explicar por que as coisas mudaram, e de que maneira. E em outros casos ainda havia lacunas que eu tive que preencher, seja com a memória, que também funciona, com documentação e com pesquisa.
O livro é uma combinação disso, países por países. Em alguns momentos ele vai mais atrás, porque tem anotações que correspondem ao período em que eu fui ministro do governo Itamar Franco (1992-1995), em outros ele vai mais para frente, porque ele tem anotações que correspondem ao período em que eu fui ministro da Defesa da presidenta Dilma Rousseff (2011-2015). Poucas, mas tem também, sobretudo com Suriname e Guiana - eu acho que, provavelmente, pouquíssimas pessoas escreveram sobre as relações do Brasil com o Suriname e do Brasil com a Guiana.
É um livro que, digamos assim, pode ter muitos defeitos e erros, não do livro, mas erros de previsão, de cálculo. Ele é muito franco, eu não apaguei aqueles momentos em que eu estava errado, aquilo ficou. Acho que é um livro muito vivo, de como a política externa é feita. Não uma análise, mas como se você visse o copião de um filme, aquilo que foi mesmo filmado, ou como se eu tivesse colocado uma câmera atrás dos atores, para ver eles falando, reclamando, às vezes, do papel que lhes é dado.
O senhor tratou com diversos atores políticos, muito importantes, com personalidades muito fortes. Tem alguma que se destaca aí, na tua opinião? Imagino que o Hugo Chávez seja um desses personagens difíceis, mas ao mesmo tempo adoráveis de lidar.
Bom, o Lula não conta, né? Obviamente, falando dos estrangeiros. Sim, o Chávez era uma grande personalidade. Difícil, muitas vezes, até de ser convencido de certas coisas que seriam do interesse dele, da Venezuela. Mas, ao mesmo tempo, um homem muito inteligente, obviamente com expectativas que muitas vezes não correspondiam ao que era possível, uma visão muito utópica acho eu…mas utopia é necessária também para o progresso. Mas, algumas vezes, perdendo um pouco o sentido do que era viável imediatamente.
Eu tenho um episódio, que eu já contei em outras entrevistas, mas eu vou contar para você, porque eu acho interessante. O Chávez era uma pessoa que falava com todo mundo, claro que ele dava grande prioridade a falar com os presidentes, no nosso com mais razão, que era com o presidente Lula, mas se não desse para falar com o Lula, ele falava com quem dava.
E quando nós estávamos negociando a entrada da Venezuela para o Mercosul, que foi uma proposta brasileira, mas que tinha que obedecer certas regras, o Chávez tentou ligar para o Lula, não conseguiu, eu estava viajando também. Eu sei que ele acabou falando com um assessor meu, o embaixador Marcondes [José Antônio Marcondes de Carvalho]. Não sei nem se ele já era embaixador na época. Ele era um negociador de tarifas para o Brasil.
E era uma discussão sobre a adaptação da Venezuela ao sistema tarifário do Mercosul. E estavam discutindo se era de quatro anos, cinco anos, e aí depois ele ligou para mim. Quando eu cheguei no Brasil, eu sabia que tinha uma ligação do Chávez e liguei pra ele. E ele disse: "No, Marcondes és muy duro". E começou a falar "dos burócratas". "Eso es un proyecto político, no es burócrata". Aí eu perguntei para ele: "Presidente, o senhor me permite falar uma parábola?"
"Claro, Celso, conte a parábola". Eu contei a parábola do rei grego que queria aprender geometria e mandou chamar o Euclides, que era o maior geômetro da Grécia. E lá vai o Euclides falar com um bando de livros - naquela época, nem sei como eram os pergaminhos - e o rei diz: "não, eu não quero saber desse negócio de postulados, axiomas, eu quero ir direto às conclusões."
E aí, o Euclides, segundo a parábola, disse ao rei: "majestade, no ay camino real para la geometria". O Chávez riu, achou muita graça, contou uma história lá dele também, de quando teve que ensinar alguém a ser paraquedista - porque ele era paraquedista. E no final da história, retomamos a conversa e falamos de um aspecto qualquer da tarifa e ele disse: "No, Celso, eso que está pedindo já está en el ACE" - o acordo de complementação econômica. "Ves, ya estoy aprendiendo la geometría."
Uma outra história rapidinha que eu conto também e que envolve o presidente do Equador - a única briga que nós tivemos, séria, realmente direta, curiosamente foi com um presidente cujas as ideias nós concordávamos, mas ele teve um procedimento que nós não aceitamos, porque afetava o BNDES e afetaria todo o sistema de crédito recíproco, que era o que permitia empréstimos aqui na América Latina.
Alguns anos depois, quando eu já era ministro da Defesa, eu estive novamente com o [Rafael] Correa e era ele na presidência, e ele contava, "quando nós tivemos aquela coisa, o Chávez me falou: Rafael, com Lula uno no se pelea. A Lula uno pide consejos."
Essa era, digamos, a dicotomia dessa personalidade muito especial. Mas muitos outros, o Evo Morales é um personagem importante, pelo que ele simbolizava. E muitos outros, que não eram presidentes, mas que eram pessoas importantes, como também falando da Bolívia, o [David] Choquehuanca. É até injusto falar de alguns e não de outros, como o [Nestor] Kirchner e a mulher, Cristina [Kirchner].
O senhor comentou sobre o Chile e a Colômbia. Dos 12 países da América do Sul, oito hoje são governados por lideranças progressistas. Ao que se deve essa reviravolta no continente?
Se deve ao fracasso total do neoliberalismo, ao crescimento da pobreza, do desemprego, as dificuldades das pessoas mais velhas sobreviverem, até porque os sistemas de saúde, de previdência, de "seguridad social", como eles chamam, é muito afetado. Isso tudo levou a mudanças muito importantes.
Há um avanço, sem dúvida, mas é um avanço também que a gente vê que tem que enfrentar muitas dificuldades. Nós estamos vendo agora, por exemplo, no Chile, a dificuldade de aprovar a nova Constituição, não é um caminho simples, "no ay un camino real" para chegar, digamos, a uma social democracia que todos desejamos.
Ele envolve muita negociação, envolve recuos, como nós aqui tivemos, no nosso caso mais grave, mas mesmo sem ruptura institucional necessariamente, passamos por momentos difíceis. Mas eu acho que, quanto mais integrada a região está, mais um país fortalece o outro, de certa maneira.
Agora, todos eles dependem muito do Brasil, com exceção do Chile e do Equador, que mesmo assim têm relações muito próximas - Equador, inclusive, é um país amazônico - todos eles têm relação muito forte, muito presente com o Brasil. Então, o que acontece no Brasil terá uma influência muito grande no conjunto da região, sobretudo na questão da integração. E integração, por sua vez, tem uma influência na institucionalidade política.
Justamente sobre isso, eu conversava recentemente com o ex vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, que afirmava que uma retomada do protagonismo da América do Sul para o mundo, necessariamente passava por uma guinada progressista do Brasil, citando uma possível eleição do ex-presidente Lula, agora neste ano. A gente pode encabeçar, de fato, essa integração do cone sul?
Eu acho que nós estamos em um momento um pouco diferente. O Brasil dará grande impulso, eu não tenho a menor dúvida sobre isso. O Brasil do presidente Lula, com a credibilidade que ele tem. Porque há esse fato também muito especial, o Lula é um líder comprovado, o Lula foi das pessoas mais importantes.
Você olha a história e começa a olhar o que aconteceu no governo Lula, não só os prêmios que ele recebeu, o Príncipe das Astúrias. A gente sabe que todos esses prêmios são políticos, mas tem um grande significado político dar o prêmio para o presidente do Brasil, naquele momento.
Nenhum outro ganhou tantos e nenhum outro viajou a tantos lugares quanto ele, foi tão bem recebido. Foi chamado pelo presidente dos Estados Unidos para mediar um acordo com o Irã, por exemplo. Depois não concordou, acabou fazendo mais ou menos o que a gente tinha definido - um pouco diferente - mas, de qualquer maneira, seguindo as pegadas do que a gente começou.
O Brasil tem uma presença muito grande, é o único país da América Latina que participou, por exemplo, da reunião de Annapolis, nos Estados Unidos, sobre o Oriente Médio, sobre a retomada do Plano de Paz. Isso que eu estou falando parece até um pouco assim, auto elogioso, mas não é. Eu ouvi isso e continuo a ouvir isso.
Isso que você ouviu do García Linera…imagina, é um país que, inclusive, teve problemas com o Brasil e ele reconhece essa realidade. Eu ouvi do [José] Mujica, por exemplo: "Isso que o Brasil está fazendo é muito importante para a América Latina", a propósito do Oriente Médio.
Vamos tomar uma situação atual: nós estamos em plena guerra, na Terra Coração para os geopolíticos, que é a Eurásia. Inclusive para o [Samuel P.] Huntington, que falou sobre o "Choque das Civilizações", uma das linhas divisórias, sobretudo a que separa a civilização ocidental das demais civilizações, é o rio Dniepre, que passa no meio da Ucrânia. A América Latina não dá um piu a esse respeito.
Eu não vou dizer que o Lula fosse resolver isso, é uma questão muito complexa, nós acabamos de ver essa reunião de Madrid complexíssima, com a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) nominando a Rússia como principal inimigo e a China como um desafio estratégico, mas o Lula estaria ligando para as pessoas e estariam ligando para ele.
Essa questão da Ucrânia, por exemplo, só poderá ser resolvida quando tiver uma confluência de posições externas e de países capazes de falar tanto com o [Volodimir] Zelenski, quanto com o [Wladmir] Putin - óbvio, com o Zelenski o ocidente já fala o tempo todo, mas enfim, de convencê-lo e também com o Putin.
Agora, quem é que pode ter influência sobre o Putin hoje? É a China, principalmente. É muito melhor que não seja só a China, mas que sejam os Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], por exemplo. O que acontece é que o Brasil, hoje, não tem diálogo. O presidente brasileiro foi nessa Cúpula das Américas, porque ia ser um fiasco. O México não ia, outros não iam, ele não estava indo por outras razões.
Mas, normalmente, ele não tem opinião sobre nada. "A Cúpula das Américas terminou assim e foi ideia do presidente Bolsonaro". Não foi, porque não tem ideias. Ele só está interessado na posição dele, em ser reeleito. É uma situação totalmente diferente da que foi a do presidente Lula.
Acho que, obviamente, isso daria uma outra posição para nós, para com o Brasil e para América do Sul e para América Latina. O México, hoje em dia, tem um grande presidente, um homem de uma coragem extraordinária que é demonstrada com as suas atitudes, que é o AMLO, que é a abreviatura do Andrés Manuel López Obrador.
Mas o México tem uma limitação da proximidade com os Estados Unidos. O México pode ir até certo ponto, porque na hora de ver como é a imigração da América Central, ele não tem como descontentar os Estados Unidos. Já com o Brasil no jogo, de uma maneira importante, o próprio México ganha fôlego.
Nós temos uma situação em que, se houver no Brasil uma vitória do presidente Lula com o Alckmin, nós vamos ter uma situação inédita, com a grande maioria dos países, inclusive os países maiores, com governos progressistas e isso é uma coisa nova e vai ter uma influência, não só na região, mas no mundo.
Nessa conversa, o Linera falava sobre agir como um bloco. E para agir como um bloco, são importantes as organizações multilaterais que nós temos aqui no continente. No entanto, o Mercosul foi paralisado, não conseguiu, por exemplo, acordo com a União Europeia, a Unasul foi escanteada, a Cúpula das Américas sofreu um duro golpe nesta última edição. Inclusive teve uma fala muito interessante do presidente argentino, Alberto Fernández, que expôs indignação com o Joe Biden por não ter convocado Cuba, Venezuela e Nicarágua para o encontro. E ainda criticou o embargo estadunidense para esses países. Como o senhor avaliou esse encontro?
Esse encontro foi um fiasco para os Estados Unidos. Não sou eu que estou comentando isso, os próprios analistas norte-americanos o fizeram. É um sinal de desprestígio como nunca houve. Independentemente de ideologias, os Estados Unidos é um país muito grande. A economia americana é oito vezes a economia brasileira, algo assim.
Cada vez que os Estados Unidos faziam assim, todo mundo vinha, agora eles tiveram… e o caso do Bolsonaro é muito ilustrativo, nesse sentido. Eles mandaram um emissário especial, uma pessoa conhecida, de prestígio, que veio até o Brasil pra falar com a pessoa que disse que o Biden foi eleito numa eleição fraudulenta.
Além do México não ter ido, dentre os países que foram, Argentina e Chile, pelo menos do que eu ouvi, foram muito críticos. Outros países, até pequeninos países do Caribe, alguns não foram, outros foram, mas foram críticos. Países da América Central, Honduras, Guatemala e El Salvador não foram, pelo menos, em nível presidencial.
Eu acho que foi um fiasco total, ninguém nem comenta o resultado. O que se resolveu? Alguma coisa sobre imigração, mas nada…Você está esperando uma espécie de Plano Marshall para a América do Sul, pós-pandemia e não vem absolutamente nada, vem mais votação para crítica aos governos autocráticos.
Eu tenho muita admiração pelos Estados Unidos. É um país dinâmico, um país em que ocorrem muitas coisas ruins, matanças frequentes, pena de morte, muita coisa que a gente critica, racismo que continua existindo lá, mas existem também medidas de direito positivo muito avançadas.
Eu me lembro que eu brincava um pouquinho com a Condoleezza Rice [ex-secretária de Estado dos Estados Unidos] e ela me dizia: "não sabemos quando haverá o próximo homem branco como secretário de Estado". Porque desde o [Warren] Christopher (1993-1997), se não me engano, tinha sido a Madeleine Albright (1997-2001), que era uma mulher branca, depois o Colin Powell (2001-2005), homem negro, e depois ela Condoleezza Rice (2005-2009), uma mulher negra. E ainda teve outra mulher depois dela, que foi a Hillary Clinton (2009-2013).
Comparando com o Brasil, eles estão muito avançados nesse aspecto. Quer dizer, no aspecto legal, pelo menos. Ao mesmo tempo, tem as barbaridades que são cometidas pela polícia. É tudo muito cheio de contradições, mas é um país que merece, em muitos aspectos, sobretudo esse das ações afirmativas, a gente ter que olhar e ver também muitas coisas positivas que eles fazem.
Agora, eles não podem impor a vontade deles, não podem pensar que a América Latina e a América do Sul são o quintal, como eles consideram, estratégico deles. Tudo bem que eles considerem uma região de importância estratégica, mas eles têm que respeitar a nossa independência.
E a vitória do Gustavo Petro e da Francía Marquez na Colômbia é histórica e importantíssima para a Colômbia, mas também para a região, porque os Estados Unidos sempre tratou a Colômbia como um quintal, com bases militares, realizou diversas intervenções e todos os presidentes conservadores e liberais que foram se sucedendo na Colômbia tiveram um alinhamento muito grande com os Estados Unidos. Isso pode mudar agora?
Sem dúvida. Eu acho que a vitória do Petro e da vice-presidente é uma coisa espetacular. Você andava pelos salões de Bogotá, você não via um negro sequer, até porque lá, o racismo e as diferenças raciais tem uma dimensão geográfica. Em Cartagena você via, mas em Bogotá você não via ninguém.
Então eu acho isso uma coisa espetacular, realmente mostra que a América Latina e América do Sul pedem mudanças e é uma mudança que vem para ficar. Mas para que ela tenha solidez internacional, para que ela possa se expressar como uma força, digamos, na configuração da ordem mundial, aí tem que vir o Brasil.
Falando sobre um futuro governo Lula, o senhor tem interesse em participar desse futuro governo ou não? Agora é aposentadoria, ficar mais recolhido? O que o senhor pretende fazer?
Olha, eu não tenho ambição de um cargo específico, dependerá dele. O Lula tem a liberdade de escolher o que for melhor para ele, para o governo dele. Se ele achar que eu posso ajudar, pode ser. Eu não sei, pode ser que ele encontre alguém mais moço, alguém com mais energia.
Agora, aposentadoria também não, eu vou continuar dando palpite. E o que eu falo sempre, de brincadeira, se ele me der uma salinha ali nos fundos do Palácio Planalto, para de vez em quando eu tomar um cafezinho com ele, eu ficaria muito feliz.
A minha aspiração vai até aí. Aposentadoria só conheço uma e eu pretendo adiá-la, enquanto for possível.
Edição: Thalita Pires