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Que caminhos a integração de uma nova onda de progressismo na América Latina pode tomar?

Com vitória de Petro na Colômbia e favoritismo de Lula nas pesquisas, correlação de forças na região pode mudar

Brasil de Fato |
Petro (Colômbia), Maduro (Venezuela), AMLO (México), Ortega (Nicarágua), Xiomara (Honduras), Díaz-Canel (Cuba), Castillo (Peru), Arce (Bolívia) e Fernández (Argentina) - AFP

A vitória da centro-esquerda nas eleições presidenciais da Colômbia reacendeu a discussão sobre a possibilidade de uma nova etapa do progressismo na América Latina, similar ao que a região viveu no início dos anos 2000, classificada como “a década ganha”.

Gustavo Petro e Francia Márquez não chegam sozinhos ao poder. Se em janeiro de 2021, a balança pesava para o conservadorismo, com governos que defendiam uma agenda liberal na economia e cortes de orçamento para áreas sociais, agora são ao menos 14 governantes afins ao campo da esquerda na América Latina e Caribe.

Diante deste cenário, a possibilidade de eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente do Brasil, em outubro deste ano, aumenta as expectativas sobre um novo período de integração regional. 

“Agora, mais do que nunca, temos a possibilidade de recuperar, fortalecer e instaurar definitivamente uma modalidade de integração sem a influência dos EUA, que olhe para os interesses e necessidades dos povos da América Latina e, para isso, o contexto internacional nos ajuda porque coloca em evidência a debilidade do modelo ocidental”, comenta a socióloga e professora da Universidade Central da Venezuela (UCV), Tibisay Serrada. 

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Unasul, Mercosul e Celac

Na primeira etapa de predominância do progressismo na região, no início dos anos 2000, foram criados alguns instrumentos, como a União das Nações Sul-americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), que poderiam ser novamente impulsionados pelos novos governos de centro-esquerda.

O Mercado Comum do Sul (Mercosul), atualmente sob presidência pró-tempore do Brasil, foi criado em 1991, mas viveu o auge do intercâmbio comercial com os governos do início da chamada década ganha.

Em 2013, as exportações totais dos países do bloco somaram US$ 432 bilhões. No mesmo ano, o comércio intrabloco totalizou US$ 61 bilhões  e representou 14,1% das exportações totais dos países-membros.

“Temos vivido, nos últimos seis anos, um processo de desintegração econômico e comercial, com a diminuição do comércio intrarregional, que é concomitante a um processo de fragmentação e polarização política entre os países e dentro dos países”, analisa o economista e técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Pedro Silva Barros.

Após a última Cúpula das Américas, realizada em Los Angeles entre 6 e 10 de junho, a Celac, que reúne todos os países da região, voltou a aparecer como uma alternativa à Organização dos Estados Americanos (OEA).  

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“A América Latina passa por um bom momento, porque a crise geral do modelo capitalista ocidental abre a possibilidade de que se fortaleçam as resistências a elementos que pareciam ser impossíveis de abandonar como o dólar, como organismos controlados pelos EUA e até as relações comerciais com as multinacionais controladas desde os EUA”, analisa Tibisay Serrada.


A OEA se posicionou pelo fim do governo de Daniel Ortega, reeleito com pouco mais de 70% para um mandato que termina em 2022 / Divulgação

Grupo de Lima, Prosul e OEA 

Além de abandonar organismos de integração criados pelos seus antecessores, a última onda de governos conservadores na região, marcada pela ascensão de Jair Bolsonaro (PL) no Brasil; Mauricio Macri na Argentina; Iván Duque na Colômbia; Lenin Moreno e Guillermo Lasso no Equador; e Sebastián Piñera no Chile, também tentou promover novas iniciativas diplomáticas.

Dentro da OEA, em 2017, foi criado o Grupo de Lima, entre Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Colômbia, Equador, Panamá, Peru, México, Paraguai e Uruguai, para promover atos hostis contra a Venezuela, argumentando que o país em crise colocava a região em risco. A partir do Grupo de Lima saiu a proposta de ativação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), que prevê o deslocamento de tropas para deter alguma ameaça regional. 

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Já em 2018, com certa paralisação do Grupo de Lima, o Brasil assumiu a presidência do Processo de Quito, grupo formado pela Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Costa Rica, Guiana, Uruguai e Chile, para discutir a crise migratória venezuelana.

“O Grupo de Lima foi um esforço de intervenção que partiu de uma política de direita alinhada com os interesses dos EUA”, comenta Serrada.

Em 2019, o governo brasileiro, de maneira unilateral, rompeu com a Unasul dois meses antes de assumir a presidência do bloco. Em seguida, o presidente Jair Bolsonaro, junto ao colombiano Iván Duque e o chileno Sebastián Piñera, anunciaram o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul). No entanto, tanto o Processo de Quito, como o Prosul não deslancharam. 

As vitórias de Andrés Manuel López Obrador no México; Alberto Fernández na Argentina; Pedro Castillo no Peru; Luis Arce na Bolívia; Xiomara Castro em Honduras; Gabriel Boric no Chile e agora Gustavo Petro na Colômbia esvaziaram de sentido estes espaços promovidos pela direita.

“Esse processo anterior de integração foi completamente fragmentado e iniciativas que não contavam com a participação de todos os países ganharam espaço, como é o caso do Grupo de Lima para tratar da Venezuela ou do Fórum Prosul, que pretendia ser um substituto da Unasul, dizendo que esta seria ideológica e que o Prosul seria pragmático e concreto. O que a gente viu foi justamente o contrário”, comenta o ex-diretor brasileiro da Unasul, Pedro Silva Barros.

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Para o economista, o Brasil, como maior potência econômica regional, teria a capacidade de liderar a reativação de mecanismos, como a Unasul, Mercosul e Celac, com a participação de todos os países interessados, comprometidos com uma agenda ampla e independente da ideologia dos governos de turno.

“Há muitas áreas com temas de convergência, como saúde pública, durante a pandemia nos custou caro não ter os mesmos instrumentos de governança regional que tínhamos anteriormente”, analisa Barros.


Marcha da Cúpula dos Povos pela Democracia em Los Angeles / Divulgação

Recuperação econômica 

A integração regional pode ser central para a recuperação da América Latina pós-pandemia. A Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) estima que a região deve ter um crescimento de 2% ao final de 2022, diminuindo os prognósticos do início do ano. As previsões regionais ficam abaixo dos 3,6% de aceleração econômica global, prevista pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).

No Brasil, no primeiro trimestre de 2022, a indústria de transformação representou 53,9% das exportações brasileiras, contra 22,7% de bens agropecuários. Os principais compradores foram a China (US$ 19,8 bilhões), União Europeia (US$ 10,7 bilhões), Estados Unidos (US$ 7,6 bilhões) e Argentina (US$ 3,2 bilhões). 

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“Mais de 80% das exportações do Brasil para os países vizinhos são produtos industrializados, já para China é somente 3% e para a Europa só 35%. Então a região é muito estratégica para o esforço de retomada industrial”, comenta o economista Pedro Silva Barros.

No início dos anos 2000, os países-membros da Aliança Bolivariana para a América Latina (ALBA-TCP) propuseram a criação do Sucre, como uma moeda regional. Agora, o ex-ministro e pré-candidato ao governo de São Paulo, Fernando Haddad (PT) propõe a criação da Sur - uma moeda digital que estimule o comércio intrarregional sem depender do uso do dólar para estas transações. 

O Sur poderia ser a modernização necessária ao Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR) da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), uma organização criada em 1980, para dar suporte ao comércio entre Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. 

O Brasil abandonou a participação no Convênio da Aladi, de forma unilateral, por uma decisão do Banco Central de abril de 2019. 

Com uma moeda regional e crédito conjunto, os países latino-americanos, principalmente Argentina, Brasil e México, que atravessam um processo de desindustrialização, poderiam pensar no financiamento da indústria e intercâmbio de matéria-prima para desenvolver áreas como a produção de fertilizantes — hoje afetada pela guerra na Ucrânia — e a extração de minérios.

As propostas de criação de empresas estatais para a extração de lítio e de cobre, defendidas pelos governos boliviano, mexicano e chileno, poderiam abrir caminhos para o desenvolvimento de tecnologia de ponta, aliando a indústria brasileira, com o Polo Digital de Manaus ou ainda ajudar a reativar a indústria automotora da Argentina e do Brasil, com protótipos de carros elétricos. 

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Para a Secretária-executiva do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), Karina Batthyany, os novos governos progressistas deveriam pensar a integração latino-americana como uma forma de desenvolver as economias e combater de maneira política as desigualdades sociais.

“E isso passa por reforçar as soberanias a nível nacional, por trabalhar a soberania num sentido amplo. E deve ser promovido apesar da aparente nova divisão do mundo em dois blocos e do aumento da influência da China na região, que se tornou um ator de peso para todos os países da América Latina”, defende Batthyany.


Mais de 50% das reservas atuais de lítio e cobre estão concentradas em locais de alto estresse hídrico. / Infográfico: Brasil de Fato

Questão energética

Em abril deste ano, a Bolívia reduziu 30% do abastecimento de gás ao Brasil, preferindo exportar para a Argentina, que agora recebe 14 milhões de m³ de gás por dia do país vizinho. “Não se trata de um complô socialista, é uma questão de oportunidade comercial”, declarou o ministro boliviano de Energia e Hidrocarbonetos, Franklin Molina. 

O preço pago pelos argentinos pela cota extra de gás foi de US$ 20 o milhão de BTU — ante os cerca de US$ 7 o milhão de BTU pagos pelo Brasil.

Atualmente a Petrobras e a estatal boliviana YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) vivem uma polêmica por um contrato assinado durante a gestão da ex-presidenta golpista Jeanine Áñez. O acordo previa que a YPFB pagasse pelo transporte de gás ao Brasil no lado boliviano do gasoduto Gasbol, gerando um custo de cerca de US$ 70 milhões por ano. Pelas divergências entre as duas estatais, hoje o Brasil recebe apenas 4 milhões de m³ diários, 10 milhões de m³ a menos do que o contratado. 

Além disso, em 2026 o Paraguai já teria pago sua parte do fornecimento de energia e deveria ser revisto o tratado de Itaipú, usina hidrelétrica que fornece cerca de 10,8% da energia consumida no território brasileiro e 88,5% do consumo paraguaio.

Outro assunto sensível do ponto de vista energético é a relação com a Venezuela. Desde 2019, o Brasil decidiu parar de comprar energia da PDVSA e reativou as termoelétricas para abastecer o estado de Roraima. A operação implica a importação de óleo diesel e é sete vezes mais cara para o consumidor.

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O economista do Ipea Pedro Silva Barros defende que é momento de planejar a criação de um mercado comum de energia, já que a região abriga a maior reserva de petróleo do mundo, na Venezuela; uma das maiores reservas de gás, na Bolívia; além de ser uma das regiões com melhores condições para explorar fontes de energia renovável.  

“Tão importante quanto integração comercial e industrial, é a agenda energética. Com isso seria possível recuperar no curto prazo a interdependência perdida. Criar um mercado sul-americano de energia poderia ser mais rápido”, conclui Barros.

A socióloga venezuelana Tibisay Serrada concorda. “Alguém poderia dizer que esse é um ponto de vista idealista, que seria uma ilusão a implementação de um modelo de integração da América Latina sonhada pelos libertadores e pensada pelos últimos líderes progressistas, mas eu acredito que para além do sonho e da esperança o que existem hoje são dados e fatos que nos permitem apontar para esse caminho”.

Edição: Thales Schmidt