Após semanas de intensos combates, a Rússia conseguiu estabelecer um cerco sobre os últimos focos de resistência ucraniana em Severodonetsk, cidade do leste ucraniano que virou o epicentro da guerra.
Na última segunda-feira (13), a última ponte que conectava Severodonetsk à vizinha Lysychansk foi destruída pelas forças russas, deixando a cidade isolada do restante da região de Lugansk que ainda é controlada pelo exército ucraniano.
O cientista político Ivan Preobrazhenskii diz ao Brasil de Fato que, após protagonizar diversos equívocos no início da guerra na Ucrânia, que levou Moscou a recuar dos arredores de Kiev e evidenciar fracassos da operação militar, a Rússia vem sendo bem sucedida nesta etapa da estratégia na Ucrânia.
De acordo com ele, se o exército ucraniano não receber armamentos mais pesados ou não criar nenhuma nova estratégia de resistência, tudo indica que “o exército russo tomará todo o território das regiões de Donetsk e Lugansk, e passará à ofensiva contra a região de Transnístria, na Moldávia".
Desde a crise na Ucrânia em 2014, que resultou na guerra civil no país e levou à anexação da Crimeia pela Rússia, a região de Donbass vem sendo uma arena de combates dividida por uma linha de contato que separa o exército ucraniano e as forças separatistas pró-Rússia de Donetsk e Lugansk. Nos últimos meses, as forças russas ultrapassaram essa linha de contato e conseguiram exercer o controle de quase toda a região de Lugansk.
Com uma população de cerca de 100 mil pessoas e conhecida por uma ser um importante centro industrial na Ucrânia, Severodonetsk é uma das últimas cidades que impedem a Rússia de controlar plenamente a região de Lugansk.
O êxito na tomada de Severodonetsk dá vantagem às tropas russas para abrir caminho para uma ofensiva sobre e a vizinha Lysychansk e Kramatorsk, outra importante cidade mais ao Oeste da região de Donbass. O avanço pode significar a tomada de todo o corredor que liga o leste e o sul da Ucrânia, aumentando a conexão da Rússia com a Crimeia.
De acordo com o diretor do Instituto Russo de Iniciativas de Manutenção da Paz e Estudos de Conflitos, Denis Denisov, “a ofensiva a essas três cidades, com a ocupação e o efetivo controle sobre esses territórios, permitirá anunciar que a primeira etapa preliminar da operação especial militar foi realizada”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que, com isso, todos os territórios das regiões de Donetsk e Lugansk que estiveram dentro das fronteiras estabelecidas pela Ucrânia até 2014 estarão sob o controle das forças armadas das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk e da Federação Russa.
As áreas reivindicadas pelas autoridades das repúblicas separatistas contêm hoje áreas que não estão sob seu controle administrativo, mas de Kiev. Ou seja, após a movimentação separatista desencadeada pela crise de 2014, as autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk delimitaram o seu território de acordo com os limites fronteiriços originais, mas sem exercer o pleno controle dos territórios reivindicados. Agora, este controle estaria perto de se estabelecer plenamente com a ajuda militar de Moscou.
“O mais provável é que, após a conclusão da operação em Donbass, haverá a ativação de ações militares e avanços das tropas russas para o Oeste, ou seja, sobre a região de Nikolayev e Odessa, até a fronteira da república da Transnístria, na Moldávia”, observa Denis Denisov.
As conquistas militares no leste da Ucrânia podem significar a consolidação dos objetivos da Rússia anunciados com a "segunda fase” da operação militar, quando o Kremlin recuou dos arredores de Kiev e passou a concentrar os combates em Donbass. A conquista desses objetivos, no entanto, não demonstra que a Rússia tem planos de anunciar uma vitória parcial e declarar o fim da guerra contra a Ucrânia,
O analista Denis Denisov lembra que os objetivos iniciais da operação militar anunciada por Moscou — "desmilitarização e desnazificação" da Ucrânia — não se limitam à incursão nas fronteiras de Donbass e, por isso, não representam a etapa conclusiva dessa operação. “Então pelo visto a operação especial militar continuará”, completa.
Por outro lado, a longa duração da guerra na Ucrânia representa um obstáculo econômico e técnico em relação às capacidades russas de manter sua ofensiva. Especialistas vêm identificando o desgaste na reposição de equipamentos militares. O cientista político Ivan Preobrazhenskii, por sua vez, comenta que a “Rússia tem uma margem de segurança para manter uma guerra ininterrupta por no mínimo dois anos”.
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Ele aponta que, de acordo com especialistas militares, uma boa parte dos armamentos modernos foram gastos e, considerando as sanções, não é possível fazer a reposição de maneira rápida.
"Mas com os grandes arsenais soviéticos que podem ser usados por anos — sobretudo se não forem respeitadas as convenções internacionais, as proibições de uso de bombas de fragmentação, etc. —, é possível manter os combates não só por dois anos, mas por uma década no mínimo”, argumenta.
Ao avaliar se os êxitos militares da Rússia em Donbass podem representar uma vitória que indique a suspensão da operação militar, o cientista político destaca que este é um cenário desejado para parte da elite política russa, considerando a insatisfação com o prolongamento da guerra. No entanto, ele destaca que essa não parece ser uma opção para o presidente Vladimir Putin.
“Para o presidente Putin, os objetivos claramente não foram resolvidos e ele não pretende parar na chegada do exército russo na fronteira das regiões de Donetsk e Lugansk. Enquanto essa estratégia estiver funcionando, a Rússia manterá a ofensiva. A vitória será anunciada no momento em que começar uma derrota”, argumenta.
De acordo com ele, “assim que Vladimir Putin receber a informação de que a ofensiva foi interrompida ou que começou o recuo das tropas russas, aí sim será anunciada uma vitória”.
Anexação de territórios de Donbass fica mais explícita
Em 30 de abril, o presidente russo Vladimir Putin assinou um decreto de fornecimento de garantias sociais adicionais às pessoas enviadas a Donbass. O documento prevê pagamentos de 3 e 5 milhões de rublos aos participantes da operação militar. A ajuda financeira adicional, no entanto, não se restringe a militares, mas também a especialistas das áreas de infraestrutura, economia, engenharia.
O cientista político Ivan Preobrazhenskii destaca que isso mostra que já em 30 de abril havia sido tomada a decisão de que os territórios do leste ucraniano seriam integrados à Rússia, e seriam administrados por aquelas pessoas enviadas por Moscou.
“O Kremlin começou a se preparar para isso tecnicamente. O mesmo havia acontecido na Crimeia após a anexação nos primeiros anos. Todas as questões técnicas foram resolvidas por pessoas vindas da Rússia, por um ano ou dois, com grandes salários”, explica.
As perspectivas de que os territórios controlados no leste ucraniano sejam integrados à Federação Russa em um futuro próximo ganharam mais ressonância no começo da semana, quando o presidente Vladimir Putin abertamente comparou suas ações na Ucrânia à conquistas do czar russo Pedro, o Grande, no século XVIII contra a Suécia.
Em encontro com um grupo de jovens empresários em São Petersburgo, Putin afirmou: “Você tem a impressão de que lutando contra a Suécia ele estava conquistando algo. Ele não estava pegando nada, ele estava pegando de volta".
O presidente destacou que cabia às autoridades russas “devolver e fortalecer” os territórios, assim como fez o primeiro imperador russo, segundo Putin. "Aparentemente, também coube a nós devolver [o que é da Rússia] e fortalecer [o país]", disse o líder russo.
O pesquisador Ivan Preobrazhenskii destaca que essas declarações surgem no contexto em que, após mais de 100 dias de conflito, "a população ainda não entendeu o porquê desta guerra". Assim, de acordo com ele, “acaba sendo necessário se dirigir à população com mais transparência e começar a explicar que ‘sim, nós realmente estamos começando a estabelecer um império, essa variável lhes agrada?’".
“E assim o Kremlin aguarda para ver como a população reage a isso no curto prazo. (...) Então é preciso prepará-los moralmente de que essa é a decisão correta”, completa.
Edição: Thales Schmidt