Alfabetizei por seis anos, desde que me formei no magistério até terminar a faculdade de Direito. Quando escrevo tema 1046, imediatamente lembro dos olhos iluminados e cheios de promessas das crianças que todos os dias ansiavam para saber qual seria o tema, a tarefa de casa, ao final de cada encontro. Crianças que já viraram adultos. Com alguns, cruzei por vezes. A luz nos olhos estava lá, mas já não era a mesma. Havia menos ingenuidade, menos avidez por conhecer o mundo. Alfabetizar é incrível. Tem sempre o momento em que a criança percebe que finalmente compreendeu como decifrar o mundo das palavras. É como se uma grande janela se abrisse. Os olhos, então, brilham ainda mais. Os sorrisos reúnem satisfação e alegria genuína diante do mundo novo que para elas se descortina. Todo o rosto se ilumina e a frase “profe, eu li”, resume o encanto da conquista. Trago esses sorrisos comigo na lembrança.
É neles que penso e deles retiro forças para falar do tema que é título desse artigo.
O Supremo Tribunal Federal nomina tema as matérias que elege para fixar verbetes, com pretensão de virarem súmula. E súmula, sabemos bem, é ainda mais difícil de ser interpretada. A lógica pela qual se aplicam as súmulas evoca uma espécie de retorno à ideia, que tantos julgam superada, do juiz boca da lei. Ser “boca da súmula” é ainda mais definitivo para alguns. Se existe súmula, é como se houvesse uma autorização para não mais pensar sobre a matéria.
Entenda: Decisão do STF abre debate sobre preservação de direitos trabalhistas por categorias
Recentemente, no julgamento do ARE 1121633, analisando o Tema 1046, o STF fixou a seguinte tese: “São constitucionais os acordos e convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
Há muitas questões importantes para a nossa reflexão nessa tese. Não se trata apenas do fato de a Corte Constitucional, cuja existência se justifica para guardar e fazer valer a Constituição, estar atuando de forma tão eficiente para enfrentar questões trabalhistas desde uma perspectiva que os fragiliza. Importa principalmente o que foi inoculado no texto. Na primeira parte, a tese fixada a partir do tema refere-se à necessidade de observância da adequação setorial negociada. Mas o que significa exatamente essa expressão? Criada pela doutrina, revela simbolicamente a dificuldade que ainda temos em compreender a categoria dos princípios para o Direito. Para reafirmar, sob novas bases, o compromisso do Direito com a moralidade, os princípios ganharam normatividade.
Leia também: Artigo | Mais um ataque do STF aos sindicatos: o julgamento do "negociado sobre o legislado"
Com isso, foi possível justificar a necessidade de alçar direitos sociais à categoria de direitos fundamentais, mantendo a lógica capitalista de regulação social. Toda essa bem intencionada reformulação teórica havida durante o século XX nos conduziu, porém, a uma construção fraca, confusa, aberta do que são princípios. E o legado disso é terrível.
Cada doutrinador passa a construir o seu próprio rol de princípios e a justificá-los como deseja. Decisões são fundadas em princípios como o da dignidade humana, da preservação da empresa, da razoabilidade, sem referência alguma à regra que autoriza ou impede determinada conclusão judicial. Todos têm um princípio para chamar de seu. Poucos deles realmente se constituem como justificativa histórica para a criação de um determinado conjunto de regras jurídicas.
No caso do Direito do Trabalho, esse movimento tem efeito devastador. O que está no princípio e justifica a existência de regras trabalhistas é a proteção a quem trabalha. Não porque trabalhadoras e trabalhadores sejam hipossuficientes. Nem porque são, em regra, pobres. Mas sim pelo reconhecimento da desigualdade intrínseca à troca de trabalho por capital que, em uma sociedade como a nossa, é a condição para sobreviver fisicamente. Nem mesmo o alimento é produzido para ser distribuído. Tudo precisa ser comprado. A venda da força de trabalho é o modo de obter o dinheiro que permite comer, vestir, morar. Daí porque, inclusive para viabilizar a continuidade do sistema que necessita de consumidores, regras trabalhistas são construídas, impondo limites à troca entre trabalho e capital.
Leia também: "Reforma" trabalhista não criou empregos como prometido, diz estudo da USP
Na ânsia de teorizar, de inovar diante das expressões já utilizadas, a doutrina criou monstros. E, como no livro de Mary Shelley, a criatura virou-se contra o criador.
Expressões, como adequação setorial negociada, passam a constituir razão de fundamento para que a ordem jurídica seja ignorada. A tal autonomia da vontade coletiva converte-se em razão para estimular sindicatos a serem algoz dos direitos trabalhistas. O tema que daí devemos levar para casa é o de refletir sobre a responsabilidade que temos quando teorizamos.
E tem mais.
A tese extraída do tema 1046 afirma que há possibilidade de acordos e convenções que afastem ou limitem direitos trabalhistas mesmo sem contrapartida especificada. Nossa tarefa aqui é perceber, finalmente, que normas construídas por entidades sindicais não são fruto de negociação. Nunca foram. Não se trata de um negócio jurídico. Trata-se de mobilização coletiva, cujo resultado é a construção das regras para determinada categoria. E não há sentido algum para que essas regras sejam piores do que o que o Estado já estabelece. Não existe razão para que pessoas em condição similar de vida e de trabalho se reúnam, organizem um sindicato, contribuam, façam reuniões, se mobilizem para obter uma condição de trabalho pior do que a que teriam caso nada fizessem.
Ao longo dos anos, desde que o Estado começou a intervir no movimento sindical brasileiro, difundiu-se a ideia de que ao fazer greve e exigir melhores condições de trabalho, categorias organizadas não estavam promovendo a elevação dos padrões normativos da troca. Estavam apenas negociando. Essa palavra teve uma força simbólica importante. Especialmente após a Constituição de 1988 e, pois, o reconhecimento da fundamentalidade das normas coletivas. Disseminou-se a cultura que equipara norma coletiva a negócio jurídico.
O movimento sindical tem sua tarefa de casa: compreender como assimilou essa cultura, promovendo inclusive campanha na década de 1990 para a aprovação de lei que estabelecesse o negociado sobre o legislado. E como, de lá pra cá, vem firmando convenções e acordos coletivos que limitam ou afastam direitos trabalhistas. Afinal, não existissem normas que rebaixam condições de trabalho já disciplinadas em lei e não teria o Estado a oportunidade de firmar tese para legitimar essa forma de violação à ordem jurídica.
Mas não é só isso. O verbete 1046 também se refere a direitos absolutamente indisponíveis. Existe um jargão entre quem lida com o Direito: a lei não tem palavras inúteis. Algumas regras jurídicas desafiam essa afirmação. De qualquer modo, para o que aqui interessa, precisamos saber se as teses, os temas, as súmulas as contêm. Essas tais palavras inúteis. Sabemos que não. Eis mais um vírus inoculado no texto do Tema 1046. A expressão “absolutamente indisponíveis” guarda consigo a pressuposição de que existe uma outra categoria, a dos direitos relativamente indisponíveis. Uma contradição em termos. Um direito é ou não é indisponível. E aqui não se trata de maniqueísmo. Trata-se de uma característica inventada para a regra, a fim de fazer com que assumamos com ela efetivo compromisso. Por trás da expressão direito indisponível há uma história de luta de trabalhadoras e trabalhadores, de morte, de sofrimento, de crises de consumo, de consciência acerca do sentido de viver em sociedade.
Alguns direitos são indisponíveis porque sem eles não há como construir um convívio social minimamente decente. Existe direito do trabalho porque, quando se trata de troca de tempo de vida por dinheiro como condição para o acesso aos bens indispensáveis à vida, a vontade individual não tem força. E não porque não saibamos o que fazer com nossa vontade, mas porque em uma sociedade de trabalho obrigatório simplesmente não há como expressá-la, no âmbito de uma relação de trabalho.
Basta pensarmos na nossa própria realidade. Ainda quando trabalhamos naquilo que escolhemos, em algo que enche nossa vida de significado, não o fazemos no ritmo, na intensidade, na forma que desejamos. Não escolhemos a quantidade de trabalho ou mesmo o modo como ele será realizado. Precisamos consentir, adaptar até mesmo nossa condição fisiológica às regras do ambiente de trabalho. Então, não será nossa vontade a determinar as condições para a troca. E por não haver espaço para a vontade individual de quem precisa vender trabalho para viver, em uma relação social como essa, é que regras imperativas foram criadas determinando o máximo do tempo de vida a ser negociado, o mínimo de salário a ser recebido, etc.
O direito do trabalho é indisponível ou não é… direito do trabalho. Pode ser direito empresarial, econômico, comercial (o direito civil há tempo já reconhece a imperatividade de várias normas que se referem a relações nas quais a vontade individual não consegue atuar). Mas certamente não é direito do trabalho. Eis a gravidade de uma tese em que a palavra absolutamente parece estar sobrando, mas não está ali por acaso. Tem potencial para abrir uma fissura que eliminará, no limite, tudo o que compreendemos como direito do trabalho.
Aquelas crianças que passaram pela minha sala de aula, cujos olhares brilhavam diante de um livro infantil que finalmente poderiam ler sozinhas, hoje trabalham para sobreviver. Disso eu sei. Não sei se ainda acreditam nas possibilidades que o mundo lhes reserva. Suspeito que andam por aí entristecidas, como eu. Ou anestesiadas, absorvidas pelo metaverso digital. Que talvez se perguntem porque escolhemos viver em uma sociedade, na qual a vida vale tão pouco. Por que no fim das contas é isso.
Se a maioria precisa trabalhar para sobreviver e estamos nos esforçando tanto para criar doutrinas, teses ou temas que tornam pior a vida de quem trabalha, qual o sentido?
Eis nosso desafio: recuperar o sentido do direito, das decisões judiciais, de nossos escritos, do movimento coletivo.
Uma sociedade capitalista sem direito do trabalho não faz sentido; é barbárie.
Meu tema aqui é reafirmar pra vocês que o Direito do Trabalho não está disponível para ser eliminado. Ou está?
*Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
***Leia mais textos como este na coluna de Valdete Souto Severo, do Brasil de Fato RS.
Edição: Katia Marko